Um
Caso de Morte Literária
Cesar
Luis Theis
SINOPSE: O trabalho em uma delegacia de polícia nunca foi fácil, especialmente épocas carnavalescas no Rio de Janeiro, onde o delegado Diógenes Cadena já presenciou inúmeras atrocidades, especialmente nestes tempos bárbaros, porém, no ofício policial todos os crimes merecem atenção, e o caso do sobrado no n.º 1006 da rua do Ouvidor no centro da cidade não será diferente, mas, este caso se revelará extremamente complexo, mesmo para alguém preparado.
Rio
de Janeiro, 14 de fevereiro de 2018.
O
despertador não parava de reclamar atenção, e não estava disposto
a levantar, porém seus constantes protestos me impediam de pensar
outra maneira de resolver o litígio. Mais uma manhã cinza, tomei um
banho e depois o café, antes de sair escovei os dentes, a caminho do
trabalho observava pela janela do carro, nada parecia diferente, o
trânsito de sempre, os mesmos sinais fechados e as músicas
repetidas tocando no rádio, um pensamento fugaz, outro dia cotidiano
se anuncia.
Cheguei
ao trabalho no horário costumeiro, deixei o carro no estacionamento,
desembarquei e caminhei em direção a entrada da delegacia, ao me
aproximar como habitualmente, investiguei o ambiente com um olhar,
enquanto vinha em minha direção Mônica, nossa nova estagiária,
estava agitada, passos apressados, seu intento era interceptar-me,
parei e preparei o sorriso que acompanharia o bom dia, enquanto
imaginava o motivo do seu desassossego, mas, ainda era incapaz de
desvendar o mistério que envolvia seus motivos, intimamente
pressentia que não se tratavam de boas notícias... e na cidade
maravilhosa em plena quarta-feira de cinzas não havia mesmo como ser
diferente.
Nem
tive o tempo de cumprimentá-la, Mônica me recebeu com um - vamos
chefe, temos outro - talvez aquela frase até fizesse sentido, afinal
estes
são tempos bárbaros, e este parecia
outro dia cotidiano de trabalho, seguimos ao centro da cidade,
chegamos precisamente às 9h18min, alcei um olhar ao local, em frente
a um sobrado no número 1006 da rua do Ouvidor, que contrastava com
as outras construções arquitetônicas daquela rua.
A
rua é famosa... prostitutas,
cafetões e traficantes, criaturas soturnas que se esgueiram
sorrateiramente pelas sombras do centro da cidade, já havia
investigado naquela vizinhança mais de uma dúzia de assassinatos,
de modo que conhecia até alguns mendigos que perambulavam por aquela
área da cidade.
Naquele
momento, enquanto o olhar passeava pela extensão da rua uma cruel
rememoração de sangue me veio a memória, o corpo do mendigo
queimado embaixo do viaduto, a prostituta encontrada com a garganta
dilacerada num beco escuro ali próximo, o bêbado esfaqueado em um
bar na outra esquina, por que não tinha dinheiro para pagar a conta,
e novamente o pensamento recursivo em ocorreu “estes são tempos
bárbaros”.
Mas,
fui chamado a realidade do ofício, inicialmente isolar a área,
afastar os transeuntes curiosos, que sempre contaminam a cena de
crime, também jornalistas, sedentos por uma foto para as famigeradas
notícias do meio dia, e a presença da imprensa sempre complica a
investigação em qualquer caso, e anteriormente, no caminho, Mônica
havia me informado, se tratava de um famoso escritor.
Sempre
avistava os repórteres rodeando como abutres a delegacia ou de
plantão na porta do hospital a espera de alguma de qualquer
desgraça, prontos a estampar em rede nacional o na capa dos
famigerados jornais uma foto de um tiroteio ou de algum corpo... era
sempre a mesma coisa, nós tentávamos encontrar vestígios que
pudessem leva a prisão do criminoso, eles alardeavam qualquer
bobagem pela audiência ou para vender jornal.
Subimos
pelas escadas de um sovino corredor, as paredes revelavam rachaduras
dos açoites do tempo, pelo chão lascas de tinta, entrei e enquanto
cruzava a sala avistei o corpo, estava sentado em uma cadeira de
madeira sem pintura, e de repente avistei a silhueta de um corpo em
frente a máquina de escrever.
O
corpo debruçado sobre a máquina, sem nenhuma folha de papel, o
sangue que escorreu do furo na lateral da cabeça e depois por entre
as teclas, manchou o canto da pilha de folhas sobre a escrivaninha, e
seguindo fez leito a procura de destino, até formar uma poça... o
odor é inconfundível, cheiro de sangue.
E
como o prenúncio de um último insulto velado, o rosto estava
coberto com uma máscara, me aproximei e enquanto me abaixava
avistei, era o coringa, especificamente o tradicional joker das
cartas de baralho. Embora aquela não era uma simples mascara, destas
compradas em lojas de fantasias de carnaval, possuía um material de
qualidade e acabamentos coloridos bem refinados, sem dúvida o
material branco era porcelana, tinha adereços feitos de tecido e uma
pintura colorida que guardava um estilo veneziano.
Continuei
o escrutínio da cena, no centro o corpo mascarado debruçado sobre a
máquina de escrever, os músculos rígidos, a pele pálida com tom
amarelado-acinzentado, a cianose dos lábios e das unhas, o copo com
uísque pela metade, a garrafa próxima a máquina de escrever ao
alcance da mão direita, quase vazia, mostrando que ele era destro,
não havia marca ao redor do copo, então bebia o uísque puro, pois
se tivesse colocado gelo o suor das bordas do copo deixaria a marca
circular na madeira da escrivaninha.
Na
estante de madeira branca ao lado da escrivaninha inúmeros livros, a
maioria com as capas desgastadas, porém, nenhum parecia ausente,
definitivamente até a sequência dos volumes estava correta, ou
alguém havia tido frieza suficiente para organizá-los ou aquele
homem possuía hábitos metódicos, o que não seria algo muito
incomum ao perfil de qualquer pessoa velha e solitária.
Curiosamente,
embora nada parece faltar uma pequena imagem de nossa senhora estava
em uma das prateleiras, solitária, parecendo contrastar com aquela
sistemática arrumação, talvez uma pista, uma ação deliberada ou
um descuido cotidiano de alguém contratado com a incumbência de
faxinar a casa do escritor. A pequena imagem era...
E,
fui interrompido, pelo legista, vinha removê-lo, confirmou a
identidade, registrou a temperatura corporal, tirou várias fotos da
cena e inclusive do revólver, preencheu o formulário padrão do
relatório, então inesperadamente se virou
e fez uma inflexão acintosa carregada de ironia quase jocosa, - é
doutor, aparentemente este foi suicídio, acho que foi o último
carnaval do coringa - propositadamente ao mesmo tempo me entregou a
cópia carbonada do formulário com as informações pré-autopsia.
Nada
me causava mais náuseas que a leviandade frente a morte, pois destes
que se foram, nenhum eco de um grito poderá ressoar em resposta as
zombarias dos que ainda vivem, contudo, nada é mais inexorável que
um silêncio, ao menos para os que sabem ouvir!
Percebi
que mesmo eu estava apático, afinal estes são tempos bárbaros, e
nossa humanidade está constantemente sendo escamoteada, até o ponto
da conformidade se transformar em indiferença... e por conseguinte
até mesmo em um doentio escarnio com a brutalidade do mundo.
Mas,
era a hora de recomeçar o trabalho investigativo, o perímetro da
cena estava isolado, o corpo havia sido removido, as funções
burocráticas cumpridas, geralmente preferia fazê-lo sozinho, afinal
do que servem grilos falantes para quem quer resolver um enigma,
Mônica meio a contragosto voltará para a delegacia, queria ficar,
contudo, a voz de que precisava era do meu pensamento.
Precisava
interrogar a cena, idear ser o próprio suicida ou assassino,
conjecturar os passos pela casa, dimensionar as ações, pressupor os
movimentos, talvez presumir motivos e finalmente prognosticar a
conclusão, afinal são os detalhes que respondem à pergunta - o que
aconteceu? - e sabia que logo o caso seria notícia na mídia e a
delegacia ficaria cheia de repórteres e suas intermináveis
perguntas.
Nenhuma
solução é produzida pelo nada, na verdade tudo mais se assemelha a
um quebra-cabeças, onde a intenção e o motor dos acontecimentos,
que criam uma cadeia de eventos e apenas do que temos certeza é do
ato final, o cadáver, porém, o realmente se precisa descobrir é a
ordem no caos ou o caos na ordem... a peça que não se encaixa ou a
sequência que por assim dizer era perfeita, e logo falsa, já que na
vida cotidiano sempre existe certa causalidade nos eventos que não
podem ser controlados.
No
interior do sobrado a particularidade da dispersão da mobília,
transmitia um sútil vazio melancólico, e me levou a examinar
hipóteses sobre o inquilino, a indagação logo foi elucidada pelas
memórias que emanam dos singulares objetos acumulados, provenientes
de uma vida literária reclusa, resumida em uma prateleira de
troféus, empoeirados, porém, nenhuma foto de família, detentor de
um espalmado saldo bancário e um pequeno sobrado no número 1006 da
rua do Ouvidor... e é claro, antes que esqueça, possivelmente de um
revólver.
Abri
uma gaveta da escrivaninha, apenas com alguns extratos de uma conta
bancária minguada, provavelmente não seria uma tentativa de
sequestro que acabou dando errada, era um escritor famoso, mas,
aparentemente não rico, nenhuma marca na poeira sobre os móveis que
pudesse indicar a ausência de qualquer objeto, o dinheiro estava na
carteira, estes excluíam completamente a possibilidade de um
assalto, os objetos dispostos e ordenadamente testemunhavam que não
havia ocorrido uma briga recentemente naquele ambiente.
O
copo de uísque era o único que não estava no lugar junto aos
outros, a garrafa também tinha uma pequena camada de poeira,
combinando como as outras junto aos copos do bar, que indicava que
ele não havia saído para comprá-la, e que estava a um tempo
considerável em casa, o que eliminava a possibilidade de alguém
tê-lo visto pela vizinhança, também aparentava estar sozinho, pois
não havia outro copo fora do lugar ou lavado.
Inicialmente
nada indicava alterações na cena, a linha do tempo dos
acontecimentos estava coerente, mas, a perfeição realmente é que
mais consome as certezas em uma investigação, afinal somos humanos,
nossa natureza é para descuidos, pequenos desastres ou até
eventualmente algum azar, qualquer que seja a ordem no caos sempre
compõe um indício para suspeitas.
Novamente
procurei entre as folhas grudadas pelo sangue seco, algum bilhete,
pois os suicidas, deixam suas revelações na escrita derradeira,
afinal todos fazemos algum alto juízo sobre nós mesmos, sobre um
elementar altruísmo no acaso do ato de viver, inventamos um
compósito existencial heroico que se sobressai as comezinhas e
incongruências do cotidiano da vida... e em caso de morte provocada
a história precisa do ponto final.
Mas,
só encontrei páginas de um manuscrito manchadas, ao lado esquerdo
da máquina de escrever, no título - A História de um Escritor
Personagem - que naquele momento acabou por me causar considerável
avocação investigativa. Peguei-o e procurei no canto da sala onde
sentar, pressentindo que deveria ler aquele manuscrito.
E,
logo no primeiro capítulo fui surpreendido: Sim, suicidou-se, conto
logo o final, pois não gosto de suspenses ou alimentar falsas
expectativas, como estes tipos que ao escreverem escondem as
verdadeiras intensões entre subterfúgios literários, assim como
faz a sorrateira morte entre os mortais.
E
agora que sabes do final, que tu decidas, se te convém saber dos
motivos, pois depois da morte nada a dizer, só existe o eterno
inexequível silêncio, então só resta anteceder, afinal não foi
assim sem mais nem menos ou por falta de coisa melhor a fazer que
tirou a própria vida... e também não poderia fazê-lo sem um
preparo cuidadoso, pois ninguém quer errar no último ato da vida.
Estava
abarcado entre a realidade de um suicídio... ou talvez um
assassinato... e a ficção de uma obra literária, que de forma
perfeita se sobrepunham incessantemente, as cores das paredes, os
objetos, a disposição dos móveis, o ângulo dos raios de sol
matinais que cruzavam a janela de vidro incidindo sobre os objetos da
escrivaninha e produzindo uma singular trama de sombras no assoalho
da sala, gradativamente me percebia aprisionado em um universo
incomensurável de sucessivos déjà vis, a ponto de não saber, se
as frases atribuíam sentido a realidade... ou os objetos e fatos que
imanavam substancial materialidade ao entrecho ficcional da
narrativa, permanecia alternando entre a condição de investigador,
leitor, escritor e personagem.
Passadas
das cinco horas ainda examinava atenciosamente as páginas finais do
manuscrito, a procurava de uma pista ou prova contundente para a
solução do caso, e entre as páginas encontrei uma peça do
quebra-cabeça: “Posicionou
displicente o revólver, o tambor estava completo, o dedo no gatinho,
um último suspiro e o escarro fumegante da boca do revólver
atravessou sua têmpora até parar na parede, o corpo em último
movimento deitou-se sobre a velha máquina de escrever, que lhe
ajudou a eternizar para a literatura algumas alegrias e as mordazes
tristezas, desafetos, saudades e decepções da vida de escritor”.
Então
conclui que o tiro deve ter produzido um estampido que ecoou entre as
paredes para o estreito corredor e provavelmente chegou aos ouvidos
de quem estivesse na calçada próximo ao sobrado, porém talvez
ninguém transita-se naquela hora, pouco antes do amanhecer.
Então
analisei não poderia ser a quarta-feira de cinzas data mais
apropriada para pôr fim a uma vida, afinal realizará seu
terminativo desejo de brincar o carnaval como se não houvesse
amanhã, e para isso escolherá a mais apropriada das mascará ao
enredo da trama mortal, o coringa, que as multifaces tão bem
simbolizam quem passou a vida inteira na gangorra entre realidade e
ficção, escritor e personagem.
Recoloquei
o manuscrito sobre a escrivaninha, e com mais alguns passos me
aproximei da janela de vidro, e entre as sombras da poeira e teias de
arranha que se estendiam do lado de fora, avistei alguns pássaros
brincando alheios em uma figueira, se empoleirando de um galho a
outro, como quem procura um lugar certo, mas, sem a verdadeira
pretensão de encontrar.
E
este, talvez fosse a peça final, capaz de compor a realidade, não
fora capaz de ajustar-se ao mundo, e entre tantos personagens talvez
só estivesse a procurar por um “eu”, mas, desconexo do mundo não
foi capaz de criar um que pudesse ser convincente... ou pela
complexidade de sua essência ou pela natureza abreviada do talento
de escritor.
Porém,
na presença da morte, pouco da diáspora de uma existência pode ser
abarcado em uma singular conjectura de palavras, neste ponto, nestes
tempos bárbaros enquanto alguns morrem em silêncio entre o concreto
e o aço dos prédios da cidade, outros seguem vivendo, e poucos que
entre tantos, se é que estes existem encontraram um lugar neste
mundo que possam dizer verdadeiramente ser seu... e nele viver.
Me
afasto da janela, lanço uma última olhada para a história de uma
existência que os objetos daquele sobrado registram, e nada há para
reclamar ou lamentar, somente a resignação que o silêncio espraia,
quando alguém sem encontrar lugar no mundo nega-se a viver nestes
tempos bárbaros, e por vontade própria deixa este mundo a sua
própria sorte.
E
dando prosseguimento, pois o tempo deste mundo é absorto a vontade
do narrador, e no
momento que sai do sobrado no número 1006 da rua do Ouvidor, estava
convicto, pelos vestígios e os motivos, se tratava de um suicídio,
porém, meu escrutínio investigativo inda não conseguia elucidar
outra questão... e enquanto descia pelas escadas do corredor uma
inquietação acerca do título da obra me consumia, “a
história de um escritor personagem”, seria o manuscrito
o registro do intento de um escritor suicida... ou este suicídio foi
um plágio literário?!?
Fim.
César Luis Theis
produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela
REALIZAÇÃO
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