O
Corte de Morrer
Luiz
Henrique Dourado
SINOPSE: Uma pomposa e esnobe socialite é recebida no seu cabeleireiro com a promessa de um novo tratamento VIP em seus fios. O corte é único. O corte é de morrer.
Laís
Di Marqüi era uma perua convicta. O estereótipo perfeito de uma
mulher pomposa, vazia por dentro, completa por fora. Casada com um
empresário extremamente bem sucedido do ramo das telecomunicações,
Laís, com seus recém-feitos quarenta e cinco anos de idade, não
fez faculdade, nunca trabalhou - sua função social era apenas
descobrir maneiras para atingir o infinito limite do cartão de
crédito que havia sido recebido do bondoso marido. Não se importava
em ser um perfeito clichê de saltos. Passava longe de qualquer pauta
feminista. Aliás, era contra. Na verdade, tinha prazer em viver esse
personagem. Rica de posses, paupérrima de educação e respeito aos
próximos, atropelava e ultrajava quem ousasse se opor à sua linha
reta. Carregava um rigor quase religioso com o cuidado de seu visual,
portanto, toda sexta-feira ela tinha compromisso inadiável no salão.
E não podia ser qualquer salão, tinha que ser o melhor, o mais
famoso, mais chic
e caro da cidade.
Naquele
dia, Laís estava empolgada e fez uma entrada triunfal no salão, já
aguardando ser recebida como a rainha que se considerava, sem sequer
pensar em dar boa tarde, requisitou:
-
Cadê a Edilene?
Todas
as pessoas do salão se voltaram para Laís, tanto as funcionárias
quanto as clientes, estas, a grande maioria também peruas
consagradas. Aconchegava nos braços sua cadela, Athena, da raça
Spitz
Alemão, absolutamente obesa e peluda, com um lacinho roxo na cabeça
e a jogou no colo da cabeleireira mais próxima. Com as mãos agora
vazias, bateu duas palminhas, para chamar ainda mais atenção:
-
Edilene?
Edilene
apareceu ao fundo do salão afobada. Odiava a socialite esnobe, mas
Laís Di Marqüi era a melhor cliente do salão. Embora a sua chefe,
Mônica, compartilhasse do sentimento de repulsa, dava ordens
expressas para tratá-la de maneira condizente com o que ela se
considerava: uma deusa.
Toda
sexta-feira, Edilene voltava pra casa com sentimentos ambíguos –
feliz com a pomposa gorjeta que recebia, mas sofrida por escutar
tantas barbaridades e ter que viver o personagem de escrava das
novelas de época que assistia.
No
trajeto até sua distante residência, Edilene, no ônibus, refletia
sobre a pequenez da sua existência e se deprimia. Contudo, olhou a
nota de cem reais que havia recebido com apreço, imaginou o presente
que poderia comprar para o filho de seis anos e tratou de botar um
sorriso no rosto. Sabia que a doação não era por generosidade ou
bom coração da perua, mas somente mais uma gesto para expor sua
superioridade sobre as serviçais e colocá-las em seu lugar. A
cabeleireira quase conseguiu se esquecer disso para apenas pensar na
felicidade do filho ao receber o carrinho de brinquedo que tanto
pedia.
Edilene
já se preparava para colocar Laís na cadeira, após pedir desculpas
pelos segundos de atraso, quando a sua patroa, Mônica,
interrompeu-a. Com um singelo toque, ela conteve Edilene e se dirigiu
à Laís:
-
Boa tarde, Sra. Laís. Como vai?
-
Tudo ótimo e você?
-
Também. Hoje eu mesmo vou atendê-la. Queria inaugurar um novo e
reservado espaço VIP no salão, personalíssimo e estava esperando
justamente a sua chegada.
Assim
que terminou a frase, as outras peruas do salão largaram as revistas
de fofoca sobre a vida dos famosos em castelos e se voltaram para
Mônica com olhares furiosos de inveja. Laís Di Marqui, por sua vez,
com seu ego massageado e inflamado, abriu um sorriso, ergueu o
queixo, balançou levemente as mechas e não aguardou Mônica
conduzi-la, iniciou seu andar na passarela imaginária.
-
Por aqui, por favor – Mônica disse, apontando uma bela rampa,
decorada com flores, que dava para um andar subterrâneo escondido.
Laís Di Marqüi foi à frente seguida de Mônica. A dona do salão
olhou firmemente sua funcionária e assentiu com a cabeça. Edilene
não entendeu o que queria dizer aquele olhar tão forte e seguro,
potente, um gesto de cumplicidade.
A curiosidade vibrou intensamente
dentro dela: o que a chefe estaria aprontando? E que lugar misterioso
era aquele? Nunca tinha ouvido falar de um novo espaço, sequer
movimento de obras ocorreram para que uma área VIP pudesse ser
inaugurada. Infelizmente, Edilene ficaria desamparada com sua
intriga, porque Mônica já havia desaparecido de sua vista junto com
a perua Laís. Elas desciam devagar, valorizando o barulho do salto,
enquanto a socialite
observava:
-
Estou impressionada. Não imaginava tamanha finesse
vinda de você, querida. Estou me lembrando dos melhores salões
europeus que tiveram a honra de me receber. Óbvio que não esperava
nada igual aqui no Brasil, imagina, mas isso já é um grande avanço,
sem dúvidas.
-
Muito obrigada, Laís, fico extremamente lisonjeada – disse Mônica,
abrindo uma pesada porta de metal, revestida com um material que
remetia ao ouro – Entre por aqui, por gentileza.
Laís
ingressou no salão especial e, em seguida, Mônica, fechou a porta
bruscamente. O alto barulho da porta batendo escondeu o posterior
click
da tranca automática. Um amplo salão se revelava diante delas,
lindamente iluminado, uma decoração moderna, com apenas uma enorme,
confortável e moderníssima cadeira apontada para o espelho. A
perua, empolgada, foi andando rapidamente em direção à cadeira e o
som do salto batendo no chão ecoava pelo ambiente. Ela parou em
frente ao assento e aguardou Mônica girar a cadeira para que ela
delicadamente repousasse. Laís se admirou no espelho, com um leve
toque do indicador tirou uma das mechas de sua testa e relaxou as
mãos no encosto de braço da cadeira.
Nesse
exato momento, Mônica, que observava atentamente os movimentos da
perua, apertou um botão embaixo do balcão, onde os objetos de salão
estavam dispostos. Em resposta, dois braceletes de ferro pularam da
cadeira e prenderam os pulsos de Laís. As luzes antes claras e vivas
adquiriram um tom vermelho, sombrio, neon,
como numa câmara para revelar fotos, que piscavam em intervalos de
poucos segundos. A perua deu um berro estridente que ensurdeceria
ouvidos sensíveis.
- O
que significa isso? – virou-se gritando em revolta para Mônica,
que não respondeu. Com a expressão inabalada, a dona do salão
pegou um pente lindamente adornado no balcão e o admirou.
-
Ande, me explique! O que é isso? Como ousa me prender? Tire-me já
daqui- esperneava Laís.
Mônica
impassível se dirigiu para trás da cadeira e encarou fixamente a
perua através do espelho. Ela repousou as mãos no ombro de Laís,
fitando-a imóvel por alguns segundos, até que pegou os cabelos da
socialite
e começou a acariciá-los carinhosamente.
-
Socorro! Socorro! Me tira daqui. Socorro! Socorro! Tem alguém ai?
Socorro!
- Já
cansou? – perguntou, enfim, Mônica.
-
Socorro! Socorro!
-
Pode grunhir a vontade, galinha. Esse salão foi feito com
revestimento acústico para que vadias como você não pudessem ser
ouvidas.
-
Quando eu sair daqui, você está muito encrencada, sua desgraçada.
Eu vou acabar com você. Vou fechar esse salão. Meu marido vai tirar
cada centavo seu. Eu juro que destruo sua vida. Não só a sua vida,
como a de todas as suas gerações futuras, você está amaldiçoada
para sempre.
- E
o que te faz pensar que você vai sair daqui com vida? – indagou
Mônica, voltando a encarar nos olhos a perua que agora mostrava um
rosto preenchido em pânico. O botox se espremia para fora através
dos poros. Aquelas palavras fizeram a postura dela mudar. Laís Di
Marqüi se acalmou na cadeira e parou de gritar.
-
Muito bem, é assim que eu gosto. Vamos começar os trabalhos? Aliás,
não é por isso que você está aqui? – ao dizer isso, Mônica fez
questão de mostrar claramente o pente que empunhava na mão. Ao
invés dos tradicionais dentes de plástico, o artefato possuía
lâminas finas, oito, paralelamente dispostas e afiadas. Elas
brilhavam. Laís arregalou os olhos e esperneou como uma criança
longe da mãe.
- O
que você vai fazer comigo? Por favor, não me mate, por favor! Eu te
dou tudo o que você quiser. Eu juro, eu juro, qualquer coisa,
qualquer coisa mesmo. Meu marido é muito rico. Por favor, não me
mate, eu sou tão jovem, tão linda para morrer... Por favor!
-
Você acha que pode me comprar com esse seu dinheiro sujo, piranha?
Você acha que é pelo dinheiro que eu te coloquei aqui? – Mônica
questionou com tom arrogante e poderoso.
-
Por favor, por favor, não me machuque – implorava Laís.
Mônica
então começou a pentear os cabelos, bem delicadamente, com o pente
de lâminas. Laís tremia, mas Mônica, calma, acariciava o cabelo da
perua. De forma macia, ia descendo e subindo o pente pelas lisas e
lindas madeixas de Laís. As lâminas não encostavam-se ao couro
cabeludo de Laís, Mônica tratava de praticar seu sadismo, passando
as lâminas apenas no cabelo. O pescoço da ricaça arrepiava com a
proximidade que as lâminas caminhavam, sentia o frio mortal delas.
Olhando com prazer o desespero de Laís, Mônica fisgou com o pente
especial uma mecha que caia na bochecha da socialite.
A dona do salão ergueu lentamente os fios que escorriam pelas
lâminas. Laís acompanhava o movimento completamente apavorada. Em
pânico, ela se debulhava e suas lágrimas borravam sua caríssima
maquiagem importada. Mônica se deliciava. De súbito, ela cansou de
pentear o cabelo e estacionou o pente no pescoço de Laís.
- E
ai? Será que termino isso agora? – disse Mônica, revelando uma
cara fria e ameaçadora, arregalando os olhos como uma psicopata.
A
perua não falava mais nada. Apenas com os olhos estanques implorava
pela sua vida, enquanto chorava compulsivamente.
-
Não, não, seria muito fácil – disse Mônica largando o pente de
lâminas no balcão e aliviando a expressão facial – Tenho algo
muito melhor...
Ela
abriu a gaveta do balcão, retirou uma máquina de raspar cabelos e a
colocou na tomada.
-
Zero? É esse o corte que você quer? – perguntava destilando um
sorriso venenoso nos lábios.
A
perua gritou em defesa do seu cabelo com a mesma força que usou para
lutar por sua vida.
-
Não! Por favor, não! Meu cabelo não!– berrava Laís que agora
suava na testa e nas axilas, coisa que nunca admitiria e fedia, fedia
como um porco sendo preparado para o abate. O odor do medo.
Mônica
passou o fio da máquina pela orelha de Laís e a deixou ali
pendurada fazendo aquele barulho aterrorizador em seu ouvido. Ela
então pegou um grande pote e mostrou o conteúdo para Laís.
-
Está na hora de passarmos o creme hidratante – disse Mônica
mostrando o pote que estava cheio de sangue viscoso até a borda.
Dois olhos que pareciam de seres humanos boiavam nele. Ela derramou o
conteúdo todo no cabelo da perua. E lá ficou ela, melecada,
mergulhada em sangue, com os glóbulos, que haviam rolado, no colo. O
líquido vital escorreu por seu rosto e entrou na sua boca. Laís
berrava, cuspia, babava o sangue enquanto insista em vão nos pedidos
de socorro. Mônica, por sua vez, gargalhava em êxtase.
-
Dizem que esse creme é ótimo para pele, rejuvenesce, dá mais vida,
sabe? – disse sarcástica.
- Eu
me desculpo por tudo, eu juro, eu peço perdão por toda vez que eu
tratei mal as pessoas, você, suas funcionárias... Eu juro, eu estou
arrependida, eu aprendi minha lição. Me deixe sair daqui, por
favor. Eu serei outra pessoa. Vamos esquecer isso, por favor. Não
contarei a ninguém sobre o que aconteceu aqui.
- E
você acha que pedir perdão vai apagar alguma coisa que você já
fez? Não sou padre para te eximir dos seus pecados, estou aqui para
condená-la por eles.
Dito
isso, Mônica pegou a linda e enorme faca que estava no balcão e
encostou a lâmina afiada no pescoço de Laís. Amarrada, chorando,
de maquiagem borrada, suada, indefesa, pedinte, mergulhada em sangue,
fedida, enfim, horrível, um ser digno de pena, Laís implorou a
última vez pela sua vida:
-
Por favor... Eu imploro...
-
Agora é tarde para tentar implorar. Te encontro nos confins do
inferno, sua galinha estúpida!
Mônica
então fez um movimento e Laís não pôde mais pedir por sua vida. O
escuro se fez.
A
pequena linda e gorda cadela latia desesperada. O volume das vozes ia
aumentando pouco a pouco, até que se tornaram compreensíveis.
-
Sra., Sra.?
Laís
abriu os olhos devagar. A claridade a incomodou um pouco e, como se
despertasse de um pesadelo, como num susto, checou seu corpo. Tudo
estava perfeitamente no lugar. Ela estava sentada na cadeira do
salão, no ambiente comum, que havia adentrado há pouco. Di Marqüi
correu gritando desesperada para olhar seu reflexo no espelho. E não
acreditou no que viu:
-
Não é possível! O que aconteceu? Não é possível!
-
Como assim, Sra. Laís? – perguntou Edilene.
Laís
retornou o olhar para o espelho para tentar acreditar no que via –
não era possível: ela estava espetacularmente linda, como nunca
esteve em toda sua vida, sequer na saudosa juventude. Sua pele nunca
se mostrou tão linda e macia, seu cabelo nunca tão brilhante e
sedoso, sua unha, pintada de uma cor que não existira no universo,
fora criada naquele momento para revestir sua delicadeza. Murmúrios
entre as outras peruas: “Eu quero o tratamento VIP também” “Eu
sou a próxima” “Posso agendar?” se ouvia de todas elas
empolgadas e invejosas com o resultado do tratamento personalíssimo.
Uma discussão começava a se formar.
Laís,
contudo, procurava vorazmente com os olhos a dona do salão.
Finalmente, Mônica, que estava distraída, agachada, procurando algo
no balcão da recepção, levantou-se e surgiu às vistas de Laís
que em um impulso bateu os saltos em sua direção. Ela pegou Mônica
pelo pescoço com as duas mãos:
- Eu
vou te matar, sua desgraçada!
O
salão inteiro se voltou incrédulo para assistir aquele ataque, para
eles, desmotivado.
- O
que você está falando, Laís? Por favor, me solte, está louca?
Você está me machucando.
-
Machucando? Machucar é o que você fez comigo, sua louca sádica.
Mônica
se defendia, colocando as mãos no pulso de Laís, impedindo-a de
enforcá-la.
-
Acalme-se, Laís, o que está acontecendo? O que houve? – gritou
uma perua de longe.
Mônica
olhava para ela perplexa, mostrando-se atônita diante da reação de
sua melhor cliente. Edilene, todas as funcionárias do salão pararam
tudo o que estavam fazendo para acompanhar o escândalo promovido por
Laís.
-
Gente, o que é isso? Ela enlouqueceu? – disse uma perua para a
outra.
-
Devem ser esses remédios tarja preta que ela ainda tomando –
sussurrou mais uma.
Edilene
foi até Laís e a fez soltar o pescoço de Mônica.
- O
que está acontecendo aqui, Laís? – perguntou Edilene.
-
Essa louca, essa louca... ela... ela... – o salão aguardava
ansiosamente para que Laís explicasse seu surto psicótico.
-
Ela... ela... - Laís se olhou novamente no espelho. Ela estava
radiantemente linda e não conseguiu completar a frase. Olhou em
volta e estava sendo julgada aos olhos de todos como a louca fugida
do hospício. Ajeitou a roupa, compondo-se, virou a cabeça
rapidamente com desdém para as peruas que a observavam, e com o
queixo erguido saiu do salão, batendo saltinho.
Assim
que Laís deixou o estabelecimento, pegando bruscamente sua cadela do
colo de alguém, as funcionárias e clientes retornaram para o seu
lugar de trabalho. Obviamente o ataque foi assunto de muita fofoca,
dias e dias comentaram sobre o surto da galinha. Edilene, no entanto,
após o acontecido, reteve seu olhar em Mônica, que o retribuiu com
um sorriso peçonhento e uma piscadela safada. Edilene, aquele dia,
mesmo sem compreender exatamente o que a chefe havia feito com a
vadia, entendeu o gesto e pegou seu ônibus para casa mais feliz e
aliviada, acreditando que talvez existisse justiça no mundo.
Laís
Di Marqüi, por sua vez, chegou à sua mansão e antes que pudesse
abrir a boca para reclamar qualquer coisa para o marido, recebeu
elogios efusivos dele, de como estava bela, coisa que nunca
acontecia. Ele nunca ligava para qualquer coisa que ela fizesse ou
inventasse na sua aparência, mas naquele dia não. Naquele dia, logo
após ela girar a chave e abrir a porta de casa, dando de cara com
ele, um sorriso enorme, branco, seguido de um aplauso admirado e
perplexo a receberam. Ele a beijou com vontade, tentou fazer amor com
ela, mas não conseguiu – iria estragar o look
– disse Laís. Então ela sentou no sofá, chegou a abrir a boca
para contar o ataque que havia sofrido e ordenar que a vingança
fosse planejada, mas sem saber muito bem por que, se reteve.
Na
sexta-feira seguinte, Laís adentrou novamente em grande estilo o
salão de beleza de Mônica, chamando a atenção e novamente
carregando sua cadela gorda e peluda, Athena, no colo:
-
Cadê a Mônica? Quero meu tratamento VIP neste exato momento! Pago
até o dobro do valor!
Mônica
olhou feliz para Edilene, e mais uma vez sorriu enigmaticamente pra
ela. Laís Di Marqüi teria o tratamento que merecia.
conto escrito por
Luiz Henrique Dourado
produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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