O Assassinato de Estevão Molina
Hikaru
SINOPSE: Gilberto Molina tem uma missão a cumprir e não teme pela própria vida, quando retorna à cidade onde o crime contra Estevão Molina aconteceu. Porém, a chance de ouro de ver seus inimigos prestarem conta se esbarra em um desafio: uma menina de 15 anos, parecendo inocente, mas que terá o mesmo sangue nos olhos que trouxera Gilberto àquela cidade.
Gilberto Molina pisa o asfalto quente e caminha sem pressa. Avista adiante um caminho de pedras em meio a um gramado mal cuidado e também alguns bancos de pedra. Mais ao longe, um coreto se ergue com falsa imponência. Uma barraca simples se situa a poucos metros.
Detrás do balcão da barraca, uma pessoa de meia-idade observa.
- Pensei que não o veria tão cedo.
Gilberto se aproxima e debruça sobre o balcão. Pega uma garrafa.
- Me dê uma dessa.
O atendente se vira e estica o braço, pegando a bebida.
- O que traz você aqui?
- Negócios.
- Steve foi morto uns dias atrás...
Gilberto olha bem fundo nos olhos do atendente.
- Não sou tão descuidado, Guido.
- Mas é prudente?
Gilberto continua encarando Guido enquanto leva a garrafa outra vez à boca. Em seguida, tira uma nota do bolso e deixa sobre o balcão.
- Você fala demais.
O homem atravessa o gramado, indo em direção a um dos bancos de pedra. Ao se acercar do assento, porém, seu olhar é atraído por uma visão no outro lado da praça.
Uma menina, de no máximo quinze anos, vem devagar, cabisbaixa, carregando uma mochila nas costas. Ela se dirige para o mesmo banco de Gilberto, mas, ao notar a presença do homem, desvia-se rapidamente.
Gilberto não a conhece, mas, por algum motivo, decide prestar atenção nela.
Ele vê quando a menina se senta em outro banco, próximo ao asfalto, e descansa a mochila no chão. Ela evita olhar para frente e brinca com os fios de cabelos loiros. Vez por outra, ajeita os óculos.
Gilberto dá de ombros. Provavelmente mais uma dessas jovens problemáticas que resolveu sair de casa. Acende um cigarro. Neste instante, escuta um ronco de motor.
Um veículo desce a toda velocidade. Gilberto olha para a barraca, e nota a reação preocupada de Guido. A menina continua olhando para o chão. De repente, o carro freia ao lado dela. A porta lateral se abre e dois braços fortes se projetam dali, agarrando a menina e a puxando para dentro do carro. Em seguida, o veículo arranca, mais rápido do que quando viera.
Gilberto e Guido se entreolham por um instante e, no instante seguinte, Gilberto está correndo em direção ao seu carro.
- Gilberto! Não seja idiota, volte aqui!
O homem não dá ouvidos. Agarrando o volante com força, dá a partida e dispara.
O carro de Gilberto é um modelo antigo. Por isso, mesmo que acelere tudo que possa, é impossível alcançar o carro da frente.
- Que droga! Eu já devia ter trocado essa lata velha!
O homem engata a marcha e pisa fundo, mas a distância entre os dois veículos não se altera. Gilberto suspira e olha para fora.
Montanhas, árvores e postes passam um atrás do outro com grande rapidez, em sentido contrário, e pessoas de bicicleta parecem estar pedalando para trás. As casas começam a rarear e a dar lugar a pastagens.
Gilberto conhece aquele lugar. Sorrindo, vira o volante e conduz o carro para uma dessas pastagens, entrando numa estradinha de terra que passaria despercebida ao motorista menos atento.
Kuroda olha pelo retrovisor.
- E aí, cadê o cara?
- Sumiu.
Ramalho olha para o vidro de trás, preocupado.
- Me deu a impressão de ser o Molina.
- Molina?
O homem meneia a cabeça. Kuroda engole em seco e faz menção de pisar o pedal do acelerador. Ramalho o detém.
- Não precisa se preocupar. Ele não tem provas.
No banco de trás, calada, Júlia escuta a conversa dos bandidos. Não faz ideia do que estão falando e não demonstra nenhum interesse. Ao seu lado, Gomes a mantém sob a mira de uma arma.
- O que faremos com essa franguinha aqui?
Ramalho se vira novamente e passa os olhos sobre Júlia.
- Não sei. Pensei que a gente podia se divertir um pouquinho.
Kuroda entende e arregala os olhos. Júlia também. Ela olha para Gomes e depois para Ramalho, a princípio sem dizer nada, mas por fim, fala num fio de voz:
- A polícia vai vir atrás de vocês ...
Gomes explode numa gargalhada e, depois, tira um distintivo do bolso.
- Está bom pra você?
Júlia volta a se calar, enquanto Gomes e Ramalho continuam rindo. Apenas Kuroda não participa da zombaria, continuando a dirigir, apreensivo.
O veículo sai da estrada principal e envereda por uma trilha no mato, até parar numa espécie de clareira. Ao longe, ouve-se o murmúrio ritmado de águas batendo nas pedras.
Júlia se encolhe no interior do veículo.
- Calma, garota, nós não vamos lhe fazer nenhum mal. - diz Gomes. – Ainda.
Ele coloca a pistola no rosto de Júlia e pressiona o cano na pele dela. Julia comprime os olhos, esperando o tiro.
- Para com isso, Gomes.
- Quê que há, Kuroda? Tá gostando dela?
- Eu acho que é isso – zomba Ramalho, abrindo a porta do carro. – Tá apaixonado pela franguinha.
Kuroda não responde. Gomes guarda a pistola e também sai do carro. Ele dá a volta e abre o porta-malas, de onde tira uma mochila de viagem.
- Eu e o Ramalho vamos lá negociar com o cara. Fique aqui com a garota.
Kuroda novamente não diz nada, apenas observa os comparsas se afastarem para fora da clareira, sem pressa. O motorista tira a chave da ignição e bota no bolso.
Julia também está quieta.
- Qual é o seu nome, menina?
Ela vira o rosto.
- Eu não concordo com o que eles estão fazendo. Estou aqui a contragosto.
Ela permanece sem encará-lo. Kuroda suspira.
- O Capitão Gomes está me chantageando. Eu ... – reluta. – Eu matei um homem sem querer.
Julia dá uma olhada de canto de olho para ele e, por fim, pergunta:
- Sem querer?
- Sim. Eu sou padeiro. Um bandido entrou no meu comércio atirando e eu tentei desarmá-lo tacando uma faca. Só que eu errei e atingi outro cara na barriga. O capitão Gomes viu tudo.
- E quem era esse outro cara?
Kuroda demora um pouco pra falar.
- Estevão Molina.
Júlia franze a sobrancelha.
- Não conheço.
- Era um dos chefões do crime organizado. Rival do Gomes e do Ramalho. Era cliente da padaria, não mexia comigo. Ia sempre lá de manhã tomar um café e bater papo. Um cara maneiro.
- Vocês eram amigos?
- Não, amigos não. Mas definitivamente não era meu inimigo.
Júlia esquece um pouco a situação em que se encontra e se debruça sobre o encosto do banco da frente.
- Pensando bem, você não parece mau.
Kuroda sente o rosto queimar.
- Obrigado.
- Me deixa ir embora.
O homem abaixa a cabeça.
- Eu deixaria se pudesse.
- Eles vão me matar, não vão?
Kuroda não responde.
- Eles vão se aproveitar de mim e, depois, vão me matar. É isso?
- Sim – o homem parece contrariado.
- Você não é bandido, Kuroda. Não se envolva em mais um crime. Deixa eu sair.
- Não posso. Você viu o nosso rosto, escutou o que viemos fazer. Se você sair, vai nos denunciar!
- Eu juro que não conto pra ninguém!
Kuroda dá uma risada nervosa.
- Por que a gente não foge junto, então?
- O que? – o homem olha para a menina, incrédulo.
- Minha mãe me expulsou de casa. Eu não tenho pra onde ir. Por isso eu estava naquela praça, com a mochila. Ninguém vai dar a minha falta.
- Está falando sério?
- Sim! Eles nunca vão nos encontrar! Mas temos que sair agora, Kuroda. Antes que eles voltem.
Kuroda parece gostar da ideia.
- Tá certo. – ele tira a chave do bolso e recoloca na ignição. Porém, antes que o carro se desloque, um cano de revólver é apontado para a cabeça dele.
- Vai a algum lugar, Masami Kuroda?
Gomes e Ramalho chegam num local próximo à praia. Está deserto, a não ser pela presença de quatro homens de preto. Um deles segura uma maleta.
- Demoraram!
Gomes deu de ombros. Ramalho apanha a mochila e a coloca no chão, diante deles.
- Podem verificar.
Um dos homens se aproxima e abre a mochila. Neste momento, porém, policiais saem do mato, gritando:
- Pegamos, Coronel!
Na mesma hora, Gomes aponta a sua arma para Ramalho.
- O que é isso, cara?
- Foi mal. É você ou eu. – e atira.
Os homens de terno, entendendo a manobra, atiram em Gomes, mas o capitão se esquiva e atinge um deles. O da maleta corre, mas é acertado pelo Coronel. Só restam dois, que se rendem.
O Coronel se aproxima.
- O que faz aqui, Gomes?
- O mesmo que o senhor, Coronel. No meu caso, eu me infiltrei na quadrilha para apanhá-los.
Os bandidos que sobraram se entreolham, confusos. O Coronel faz um movimento e eles são algemados. Gomes olha para o corpo de Ramalho.
- Bem, preciso ir. Minha missão acabou.
O Coronel o detém por um instante.
- Saiba que estou de olho em você, capitão.
Gomes o encara.
- Tudo bem. É o seu dever.
Os dois ficam parados, e, por fim, o Coronel o deixa ir. Os policiais permanecem no local, averiguando.
Júlia e Kuroda estão paralisados.
- Não atire, por favor. Eu não queria matar o Estevão.
- Eu sei disso.
Kuroda olha para o homem armado.
- O que foi que disse?
Gilberto Molina se certifica de que não há ninguém por perto.
- Eu sei o que aconteceu. Meu irmão entrou na padaria no exato momento em que um bandido começou a atirar. Acredito eu que ele pretendia pará-lo. Mas você jogou a faca e acertou Steve.
Kuroda baixa a cabeça.
- O Capitão Gomes entrou em seguida e você se escondeu atrás do balcão, com medo de ele ter visto a cena. Gomes trocou tiros com o bandido, o matou e, aproveitando a oportunidade ... – Gilberto cerra o punho – deu o tiro de misericórdia no meu irmão.
Kuroda parece surpreso.
- Não acredito! Como você sabe de tudo isso?
Gilberto suspira.
- Eu tenho minhas fontes.
Kuroda sente uma mistura de alívio e preocupação.
- Então, o que pretende fazer?
- Não é óbvio? – Molina sacode a pistola. – E você vai me ajudar.
- Não, não, me tira dessa – protesta o padeiro. – Eu não quero ser cúmplice da morte de ninguém!
Gilberto o empurra. Júlia se manifesta.
- Deixa a gente ir embora primeiro.
- Ninguém vai embora até que eu ponha as mãos naquele safado. Mas fica tranquila. Ele é quem vai pagar, não vocês.
Neste instante, ouvem passos.
- É ele. Está voltando!
- Eu vou pra trás do carro. Não tentem nenhuma gracinha.
Gomes chega.
- Vamos, Kuroda. Estou precisando relaxar.
Kuroda não esboça reação.
- Kuroda! Estou falando com você, imbecil!
- Eu não sou imbecil.
Gomes estranha.
- O que é que você tem?
- Onde está o Ramalho?
O capitão hesita um instante antes de falar:
- Deu ruim lá. A polícia chegou, houve troca de tiros. Você não ouviu?
- Sim, de longe. – Kuroda está calmo.
Gomes, desconfiado, olha ao redor.
- Tem mais alguém aqui?
- Tem.
Na mesma hora, Gilberto Molina sai de trás do carro com a pistola em punho. Gomes dá uma risada de desdém.
- Ora, ora, o que temos aqui. Uma conspiração.
- Não vamos perder tempo, capitão.
Um novo tiroteio se inicia. Molina atira, mas o policial desvia. Kuroda também dispara, e novamente Gomes se safa. Este atira de volta e acerta a cabeça do padeiro. Júlia dá um grito. Kuroda cai no chão, morto.
- Não! Kuroda, Kuroda!
Gomes se aproveita da situação e agarra a menina.
- Largue a arma, Molina. Senão, ela morre.
- Eu não a conheço, não me importo.
- O quê? Estou falando sério, Molina!
- Eu também – e engatilha.
Júlia fecha os olhos e espera a bala atravessar o seu corpo. Porém, no último instante, Gomes a joga no chão e sai correndo. Gilberto mira e atira. Gomes se choca contra uma árvore e fica ali, imóvel.
Molina caminha devagar até o corpo do policial e o examina de longe. Gomes não esboça nenhuma reação. O irmão de Estevão Molina saboreia a sua vingança com prazer, mas também com certo enfado. Fora muito fácil. Esperava mais adrenalina.
- Pois é, capitão. O mundo dá voltas. Dias atrás, era você na minha situação, com Steve agonizando no chão. Agora sou eu. Mas não sou covarde como você. Não vou te dar o tiro de misericórdia.
Ele se volta para Júlia, que permanece no chão, cabeça baixa, aguardando o desfecho do caso. Molina passa por ela, sem se importar e entra no seu carro. Em seguida, pensando melhor, a chama.
- Quer uma carona?
- Não.
O homem balança a cabeça e dá a partida. O carro se afasta. Júlia, então, engatinha até o cadáver de Kuroda e segura a mão dele.
- Eu não tive a chance de agradecer, Kuroda. Obrigado por tentar me salvar. – e, fechando os olhos, com raiva, promete em tom solene: - Eu vou vingar você.
Em seguida, ela pega um pedaço do vidro do carro, que se estilhaçara no tiroteio, vai até Gomes e finca nas costas do policial. Ele, que estivera se fingindo de morto, é pego de surpresa e se ergue violentamente. Júlia toma um susto.
- Meu Deus!
Gomes urra de dor e tenta apanhar o seu revólver, que está caído ali perto. Porém, com o sangue escorrendo pelo ferimento, ele começa a perder as forças e a ter a vista turva.
- Des... graça... da...
Júlia corre e taca uma pedra em Gomes. Ele continua andando na direção do revólver. Júlia taca outra.
-Eu... vou...
Júlia salta e taca uma terceira pedra. Esta acerta na testa do homem, como Davi e Golias. Já amortecido pelo vidro em suas costas, a consciência apagando, Gomes cambaleia mais alguns passos, braços estendidos a esmo e por fim, cai, pesadamente. Júlia apanha o revólver e termina o serviço.
Nesta mesma hora, uma viatura da polícia passa e, vendo a cena, estanca. As luzes dos holofotes batem na menina de quinze anos com a arma na mão, expressão assustada, incrédula do que acabara de fazer.
- Parada aí, mocinha! Não faça um movimento!
Num instinto, Júlia dispara contra a viatura. O tiro quebra o vidro dianteiro, mas não atinge ninguém. Sem perder tempo, ela corre pra dentro do mato e os policiais descem do carro, prontos para persegui-la. Porém, o Coronel, sem nenhuma razão aparente, faz sinal para todos voltarem.
De dentro do mato, Júlia Olsson observa a viatura dar meia volta e desaparecer. Ela respira, um misto de alívio e medo.
No dia seguinte, com grande pompa e salva de tiros, o corpo do capitão José Gomes é conduzido pelo cemitério. Numa grande passeata, oficiais, amigos e familiares, se reúnem para dar o último adeus ao capitão, amigo da vizinhança, morto em combate com marginais enquanto desbaratava um imenso esquema de contrabando no cais do porto.
Em outro ponto, numa cerimônia mais modesta, um pequeno punhado de pessoas assiste a um funcionário baixar o caixão de Masami Kuroda.
Um rapaz agarrado à sua mãe chora bastante.
- Porque o pai, mãe? Com tanta gente ruim pra morrer, matam logo o pai – lamentava-se o rapaz, soluçando.
- Deus sabe o que faz, filho. Chegou a hora dele.
- Que Deus é esse, que determina um jeito tão cruel de uma pessoa morrer?
A mãe não responde, nem faz questão. Está abalada demais para questões dessa natureza. Uma mulher, porém, intervém.
- Pode ter certeza, menino, que Deus não tem responsabilidade nenhuma nisso. O homem gosta de botar a culpa em Deus em tudo. Mas o que realmente acontece é que as pessoas escolhem seus próprios caminhos, sem refletir no que vai dar.
A esposa de Kuroda olha para a mulher, depois para o filho e não diz nada. O rapaz também não. Apenas continua chorando.
Escondida entre os túmulos, uma menina de quinze anos observa a cena e escuta a conversa. Concorda mentalmente. A mulher conclui:
- A memória de seu pai não foi apagada.
O rapaz a abraça, assentindo com a cabeça. A mãe continua calada. O caixão é depositado na cova. Salva de tiros, não por Kuroda, mas por Gomes. Ouve-se, de longe, o discurso de uma alta patente, louvando os feitos do capitão.
Júlia sente vontade de falar com a família de Kuroda, mas se refreia. Provavelmente, seria reconhecida. Seu retrato falado já deve estar circulando pelas redes sociais. De repente, ela olha e vê um rosto conhecido.
Gilberto Molina!
Júlia sente o ódio reacender dentro dela.
- Foi por sua causa que o Kuroda morreu – pensa a menina, fechando os olhos. – se você tivesse nos deixado sair, hoje essa família não estaria chorando!
Gilberto não vê Júlia entre os túmulos. Ele está de longe, de roupa escura, numa posição que permite ver o enterro tanto de Gomes quanto de Kuroda. A Ramalho não enterraram; parece que seu corpo ainda está no Instituto Médico Legal.
Para Júlia, perdeu o interesse ver o enterro do padeiro. Agora, suas atenções se voltam para Gilberto Molina. Está com a ideia fixa de vingança. Quer acertar as contas com ele, fazê-lo pagar pela morte do homem que poderia ter sido um grande amigo.
Gilberto, alheio aos olhares da menina, dá de costas e começa a descer as escadarias. Outra salva de tiros. Júlia se desloca, sempre atrás das tumbas, e vai seguindo Gilberto até que o vê entrando no carro dele. Atendendo a uma ideia de súbito, pega o celular e focaliza a placa do carro.
O veículo arranca e se mistura aos outros veículos que perambulam pela cidade.
Guido está no balcão, como de costume.
- Então, deu cabo do Gomes?
Gilberto, sem se preocupar com os outros clientes, faz que sim com a cabeça. Toma uma golada generosa de cerveja.
- E a menina?
- Que menina?
Guido não responde. Gilberto olha para cima, como se consultasse a própria mente.
- Ah, sim, aquela novinha. Não sei que fim levou. Recusou a minha carona.
- Ela pode te dedurar pra polícia.
- Pode. – e toma mais um gole. – Mas não faz mal. Eles já estão atrás de mim, mesmo.
Guido acha graça.
- Então, o que faz aqui, dando sopa, à luz do dia?
Molina o encara com os seus olhos penetrantes.
- Eles precisam me pegar. Não adianta só saber onde eu estou.
Um dos clientes olha espantado para Gilberto e sai de perto. Guido ri. Molina, não. Devolve o copo ao balcão e se afasta, postura altiva, peito aberto, ombros pra trás.
Ao se curvar para abrir a porta do carro, é surpreendido por um cano de revólver em suas costas.
- Agora é a sua vez, desgraçado.
Molina reconhece a voz.
- O que pretende fazer, menina? Sabe mexer nesse negócio?
- Não foi você que matou o Gomes – responde Júlia, engatilhando. - Fui eu.
Gilberto Molina tenta se virar, mas a menina pressiona a arma ainda mais em suas costas. Na rua, a multidão começa a juntar. Guido desce correndo.
- Ele já pagou pela morte do Kuroda. Falta você.
- Menina, eu não atirei no padeiro. Foi o Gomes. Você viu.
- Mas foi você que meteu a gente nisso! - grita Júlia, chorando. Seu dedo começa a tremer no gatilho do revólver. Molina tenta manter a calma.
- Olha, eu sinto muito pelo seu amigo. Eu sei o que você está sentindo. O Gomes matou o meu irmão! Mas o fato de ele ter morrido não trouxe o Steve de volta. - Gilberto sente que Júlia afrouxa a pressão da arma. - Me matar não vai trazer o Kuroda de volta.
Sirenes de polícia se aproximam da praça.
- Larga essa arma, garota! - grita Guido – Você vai se complicar ainda mais!
Júlia sacode a cabeça e, num impulso, empurra Molina de encontro ao carro. Este tenta tomar-lhe a arma e segura o braço dela. Guido sai do meio da multidão e a agarra por trás.
- Me larga!
Gilberto Molina dá um tapa no rosto de Júlia e finalmente toma o revólver. Ela cai no asfalto e se encolhe. Molina engatilha, mas Guido o impede.
- Pára, Gilberto! Não precisa disso.
- Precisa sim – e aponta as pessoas ao redor. - Todo mundo precisa saber o que acontece com quem desafia Gilberto Molina!
As pessoas se desesperam e começam uma algazarra. Uma execução à luz do dia, na frente de todo mundo! Júlia, chorando, fecha os olhos e novamente espera a bala atravessar o seu corpo.
Dois disparos.
Molina arregala os olhos, surpreso, e coloca a mão nas costas. Está ensanguentada. Guido bota a mão na boca e apara o corpo do irmão. Júlia abre os olhos, também surpresa. Mais uma vez, saiu ilesa. A multidão se volta pra direção de onde viera os tiros.
O Coronel aparece de pistola empunhada. Atrás deles, meia dúzia de policiais também armados, abrem caminho entre as pessoas. Molina, nos braços do irmão, olha espantado, sem entender o que aconteceu.
- Não se preocupe, Molina. Vamos te levar ao hospital e, com um pouco de sorte, você vai sobreviver. Homens, levem-no.
Quase inconsciente, Gilberto se deixa levar pelos policiais até uma ambulância. Guido fica ali, com Júlia. A multidão se dispersa. As viaturas vão embora.
Júlia olha para Guido.
- Obrigado por tentar me salvar.
- Não precisa agradecer. Meu irmão não é má pessoa, só tem pouco juízo. Eu cansei de avisar a ele pra não entrar nessa vida.
Júlia abaixa a cabeça.
- Eu só queria que o Kuroda estivesse vivo.
Guido coloca a mão no ombro dela.
- Tem coisas que a gente não pode mudar. - e se afasta.
Júlia se levanta e observa o dono do bar voltar para o estabelecimento. Ela pensa em como seria a sua vida se Kuroda não tivesse morrido. Balança a cabeça. Não tem como saber. Frustrada por não ter dado cabo do Molina, a menina sobe a rua em direção à sua casa, até que se lembra que sua mãe a expulsara de lá.
Decide sentar na praça. Depois de escapar da morte várias vezes, é hora de pensar em seguir a vida.
Gilberto Molina pisa o asfalto quente e caminha sem pressa. Avista adiante um caminho de pedras em meio a um gramado mal cuidado e também alguns bancos de pedra. Mais ao longe, um coreto se ergue com falsa imponência. Uma barraca simples se situa a poucos metros.
Detrás do balcão da barraca, uma pessoa de meia-idade observa.
- Pensei que não o veria tão cedo.
Gilberto se aproxima e debruça sobre o balcão. Pega uma garrafa.
- Me dê uma dessa.
O atendente se vira e estica o braço, pegando a bebida.
- O que traz você aqui?
- Negócios.
- Steve foi morto uns dias atrás...
Gilberto olha bem fundo nos olhos do atendente.
- Não sou tão descuidado, Guido.
- Mas é prudente?
Gilberto continua encarando Guido enquanto leva a garrafa outra vez à boca. Em seguida, tira uma nota do bolso e deixa sobre o balcão.
- Você fala demais.
O homem atravessa o gramado, indo em direção a um dos bancos de pedra. Ao se acercar do assento, porém, seu olhar é atraído por uma visão no outro lado da praça.
Uma menina, de no máximo quinze anos, vem devagar, cabisbaixa, carregando uma mochila nas costas. Ela se dirige para o mesmo banco de Gilberto, mas, ao notar a presença do homem, desvia-se rapidamente.
Gilberto não a conhece, mas, por algum motivo, decide prestar atenção nela.
Ele vê quando a menina se senta em outro banco, próximo ao asfalto, e descansa a mochila no chão. Ela evita olhar para frente e brinca com os fios de cabelos loiros. Vez por outra, ajeita os óculos.
Gilberto dá de ombros. Provavelmente mais uma dessas jovens problemáticas que resolveu sair de casa. Acende um cigarro. Neste instante, escuta um ronco de motor.
Um veículo desce a toda velocidade. Gilberto olha para a barraca, e nota a reação preocupada de Guido. A menina continua olhando para o chão. De repente, o carro freia ao lado dela. A porta lateral se abre e dois braços fortes se projetam dali, agarrando a menina e a puxando para dentro do carro. Em seguida, o veículo arranca, mais rápido do que quando viera.
Gilberto e Guido se entreolham por um instante e, no instante seguinte, Gilberto está correndo em direção ao seu carro.
- Gilberto! Não seja idiota, volte aqui!
O homem não dá ouvidos. Agarrando o volante com força, dá a partida e dispara.
O carro de Gilberto é um modelo antigo. Por isso, mesmo que acelere tudo que possa, é impossível alcançar o carro da frente.
- Que droga! Eu já devia ter trocado essa lata velha!
O homem engata a marcha e pisa fundo, mas a distância entre os dois veículos não se altera. Gilberto suspira e olha para fora.
Montanhas, árvores e postes passam um atrás do outro com grande rapidez, em sentido contrário, e pessoas de bicicleta parecem estar pedalando para trás. As casas começam a rarear e a dar lugar a pastagens.
Gilberto conhece aquele lugar. Sorrindo, vira o volante e conduz o carro para uma dessas pastagens, entrando numa estradinha de terra que passaria despercebida ao motorista menos atento.
Kuroda olha pelo retrovisor.
- E aí, cadê o cara?
- Sumiu.
Ramalho olha para o vidro de trás, preocupado.
- Me deu a impressão de ser o Molina.
- Molina?
O homem meneia a cabeça. Kuroda engole em seco e faz menção de pisar o pedal do acelerador. Ramalho o detém.
- Não precisa se preocupar. Ele não tem provas.
No banco de trás, calada, Júlia escuta a conversa dos bandidos. Não faz ideia do que estão falando e não demonstra nenhum interesse. Ao seu lado, Gomes a mantém sob a mira de uma arma.
- O que faremos com essa franguinha aqui?
Ramalho se vira novamente e passa os olhos sobre Júlia.
- Não sei. Pensei que a gente podia se divertir um pouquinho.
Kuroda entende e arregala os olhos. Júlia também. Ela olha para Gomes e depois para Ramalho, a princípio sem dizer nada, mas por fim, fala num fio de voz:
- A polícia vai vir atrás de vocês ...
Gomes explode numa gargalhada e, depois, tira um distintivo do bolso.
- Está bom pra você?
Júlia volta a se calar, enquanto Gomes e Ramalho continuam rindo. Apenas Kuroda não participa da zombaria, continuando a dirigir, apreensivo.
O veículo sai da estrada principal e envereda por uma trilha no mato, até parar numa espécie de clareira. Ao longe, ouve-se o murmúrio ritmado de águas batendo nas pedras.
Júlia se encolhe no interior do veículo.
- Calma, garota, nós não vamos lhe fazer nenhum mal. - diz Gomes. – Ainda.
Ele coloca a pistola no rosto de Júlia e pressiona o cano na pele dela. Julia comprime os olhos, esperando o tiro.
- Para com isso, Gomes.
- Quê que há, Kuroda? Tá gostando dela?
- Eu acho que é isso – zomba Ramalho, abrindo a porta do carro. – Tá apaixonado pela franguinha.
Kuroda não responde. Gomes guarda a pistola e também sai do carro. Ele dá a volta e abre o porta-malas, de onde tira uma mochila de viagem.
- Eu e o Ramalho vamos lá negociar com o cara. Fique aqui com a garota.
Kuroda novamente não diz nada, apenas observa os comparsas se afastarem para fora da clareira, sem pressa. O motorista tira a chave da ignição e bota no bolso.
Julia também está quieta.
- Qual é o seu nome, menina?
Ela vira o rosto.
- Eu não concordo com o que eles estão fazendo. Estou aqui a contragosto.
Ela permanece sem encará-lo. Kuroda suspira.
- O Capitão Gomes está me chantageando. Eu ... – reluta. – Eu matei um homem sem querer.
Julia dá uma olhada de canto de olho para ele e, por fim, pergunta:
- Sem querer?
- Sim. Eu sou padeiro. Um bandido entrou no meu comércio atirando e eu tentei desarmá-lo tacando uma faca. Só que eu errei e atingi outro cara na barriga. O capitão Gomes viu tudo.
- E quem era esse outro cara?
Kuroda demora um pouco pra falar.
- Estevão Molina.
Júlia franze a sobrancelha.
- Não conheço.
- Era um dos chefões do crime organizado. Rival do Gomes e do Ramalho. Era cliente da padaria, não mexia comigo. Ia sempre lá de manhã tomar um café e bater papo. Um cara maneiro.
- Vocês eram amigos?
- Não, amigos não. Mas definitivamente não era meu inimigo.
Júlia esquece um pouco a situação em que se encontra e se debruça sobre o encosto do banco da frente.
- Pensando bem, você não parece mau.
Kuroda sente o rosto queimar.
- Obrigado.
- Me deixa ir embora.
O homem abaixa a cabeça.
- Eu deixaria se pudesse.
- Eles vão me matar, não vão?
Kuroda não responde.
- Eles vão se aproveitar de mim e, depois, vão me matar. É isso?
- Sim – o homem parece contrariado.
- Você não é bandido, Kuroda. Não se envolva em mais um crime. Deixa eu sair.
- Não posso. Você viu o nosso rosto, escutou o que viemos fazer. Se você sair, vai nos denunciar!
- Eu juro que não conto pra ninguém!
Kuroda dá uma risada nervosa.
- Por que a gente não foge junto, então?
- O que? – o homem olha para a menina, incrédulo.
- Minha mãe me expulsou de casa. Eu não tenho pra onde ir. Por isso eu estava naquela praça, com a mochila. Ninguém vai dar a minha falta.
- Está falando sério?
- Sim! Eles nunca vão nos encontrar! Mas temos que sair agora, Kuroda. Antes que eles voltem.
Kuroda parece gostar da ideia.
- Tá certo. – ele tira a chave do bolso e recoloca na ignição. Porém, antes que o carro se desloque, um cano de revólver é apontado para a cabeça dele.
- Vai a algum lugar, Masami Kuroda?
Gomes e Ramalho chegam num local próximo à praia. Está deserto, a não ser pela presença de quatro homens de preto. Um deles segura uma maleta.
- Demoraram!
Gomes deu de ombros. Ramalho apanha a mochila e a coloca no chão, diante deles.
- Podem verificar.
Um dos homens se aproxima e abre a mochila. Neste momento, porém, policiais saem do mato, gritando:
- Pegamos, Coronel!
Na mesma hora, Gomes aponta a sua arma para Ramalho.
- O que é isso, cara?
- Foi mal. É você ou eu. – e atira.
Os homens de terno, entendendo a manobra, atiram em Gomes, mas o capitão se esquiva e atinge um deles. O da maleta corre, mas é acertado pelo Coronel. Só restam dois, que se rendem.
O Coronel se aproxima.
- O que faz aqui, Gomes?
- O mesmo que o senhor, Coronel. No meu caso, eu me infiltrei na quadrilha para apanhá-los.
Os bandidos que sobraram se entreolham, confusos. O Coronel faz um movimento e eles são algemados. Gomes olha para o corpo de Ramalho.
- Bem, preciso ir. Minha missão acabou.
O Coronel o detém por um instante.
- Saiba que estou de olho em você, capitão.
Gomes o encara.
- Tudo bem. É o seu dever.
Os dois ficam parados, e, por fim, o Coronel o deixa ir. Os policiais permanecem no local, averiguando.
Júlia e Kuroda estão paralisados.
- Não atire, por favor. Eu não queria matar o Estevão.
- Eu sei disso.
Kuroda olha para o homem armado.
- O que foi que disse?
Gilberto Molina se certifica de que não há ninguém por perto.
- Eu sei o que aconteceu. Meu irmão entrou na padaria no exato momento em que um bandido começou a atirar. Acredito eu que ele pretendia pará-lo. Mas você jogou a faca e acertou Steve.
Kuroda baixa a cabeça.
- O Capitão Gomes entrou em seguida e você se escondeu atrás do balcão, com medo de ele ter visto a cena. Gomes trocou tiros com o bandido, o matou e, aproveitando a oportunidade ... – Gilberto cerra o punho – deu o tiro de misericórdia no meu irmão.
Kuroda parece surpreso.
- Não acredito! Como você sabe de tudo isso?
Gilberto suspira.
- Eu tenho minhas fontes.
Kuroda sente uma mistura de alívio e preocupação.
- Então, o que pretende fazer?
- Não é óbvio? – Molina sacode a pistola. – E você vai me ajudar.
- Não, não, me tira dessa – protesta o padeiro. – Eu não quero ser cúmplice da morte de ninguém!
Gilberto o empurra. Júlia se manifesta.
- Deixa a gente ir embora primeiro.
- Ninguém vai embora até que eu ponha as mãos naquele safado. Mas fica tranquila. Ele é quem vai pagar, não vocês.
Neste instante, ouvem passos.
- É ele. Está voltando!
- Eu vou pra trás do carro. Não tentem nenhuma gracinha.
Gomes chega.
- Vamos, Kuroda. Estou precisando relaxar.
Kuroda não esboça reação.
- Kuroda! Estou falando com você, imbecil!
- Eu não sou imbecil.
Gomes estranha.
- O que é que você tem?
- Onde está o Ramalho?
O capitão hesita um instante antes de falar:
- Deu ruim lá. A polícia chegou, houve troca de tiros. Você não ouviu?
- Sim, de longe. – Kuroda está calmo.
Gomes, desconfiado, olha ao redor.
- Tem mais alguém aqui?
- Tem.
Na mesma hora, Gilberto Molina sai de trás do carro com a pistola em punho. Gomes dá uma risada de desdém.
- Ora, ora, o que temos aqui. Uma conspiração.
- Não vamos perder tempo, capitão.
Um novo tiroteio se inicia. Molina atira, mas o policial desvia. Kuroda também dispara, e novamente Gomes se safa. Este atira de volta e acerta a cabeça do padeiro. Júlia dá um grito. Kuroda cai no chão, morto.
- Não! Kuroda, Kuroda!
Gomes se aproveita da situação e agarra a menina.
- Largue a arma, Molina. Senão, ela morre.
- Eu não a conheço, não me importo.
- O quê? Estou falando sério, Molina!
- Eu também – e engatilha.
Júlia fecha os olhos e espera a bala atravessar o seu corpo. Porém, no último instante, Gomes a joga no chão e sai correndo. Gilberto mira e atira. Gomes se choca contra uma árvore e fica ali, imóvel.
Molina caminha devagar até o corpo do policial e o examina de longe. Gomes não esboça nenhuma reação. O irmão de Estevão Molina saboreia a sua vingança com prazer, mas também com certo enfado. Fora muito fácil. Esperava mais adrenalina.
- Pois é, capitão. O mundo dá voltas. Dias atrás, era você na minha situação, com Steve agonizando no chão. Agora sou eu. Mas não sou covarde como você. Não vou te dar o tiro de misericórdia.
Ele se volta para Júlia, que permanece no chão, cabeça baixa, aguardando o desfecho do caso. Molina passa por ela, sem se importar e entra no seu carro. Em seguida, pensando melhor, a chama.
- Quer uma carona?
- Não.
O homem balança a cabeça e dá a partida. O carro se afasta. Júlia, então, engatinha até o cadáver de Kuroda e segura a mão dele.
- Eu não tive a chance de agradecer, Kuroda. Obrigado por tentar me salvar. – e, fechando os olhos, com raiva, promete em tom solene: - Eu vou vingar você.
Em seguida, ela pega um pedaço do vidro do carro, que se estilhaçara no tiroteio, vai até Gomes e finca nas costas do policial. Ele, que estivera se fingindo de morto, é pego de surpresa e se ergue violentamente. Júlia toma um susto.
- Meu Deus!
Gomes urra de dor e tenta apanhar o seu revólver, que está caído ali perto. Porém, com o sangue escorrendo pelo ferimento, ele começa a perder as forças e a ter a vista turva.
- Des... graça... da...
Júlia corre e taca uma pedra em Gomes. Ele continua andando na direção do revólver. Júlia taca outra.
-Eu... vou...
Júlia salta e taca uma terceira pedra. Esta acerta na testa do homem, como Davi e Golias. Já amortecido pelo vidro em suas costas, a consciência apagando, Gomes cambaleia mais alguns passos, braços estendidos a esmo e por fim, cai, pesadamente. Júlia apanha o revólver e termina o serviço.
Nesta mesma hora, uma viatura da polícia passa e, vendo a cena, estanca. As luzes dos holofotes batem na menina de quinze anos com a arma na mão, expressão assustada, incrédula do que acabara de fazer.
- Parada aí, mocinha! Não faça um movimento!
Num instinto, Júlia dispara contra a viatura. O tiro quebra o vidro dianteiro, mas não atinge ninguém. Sem perder tempo, ela corre pra dentro do mato e os policiais descem do carro, prontos para persegui-la. Porém, o Coronel, sem nenhuma razão aparente, faz sinal para todos voltarem.
De dentro do mato, Júlia Olsson observa a viatura dar meia volta e desaparecer. Ela respira, um misto de alívio e medo.
No dia seguinte, com grande pompa e salva de tiros, o corpo do capitão José Gomes é conduzido pelo cemitério. Numa grande passeata, oficiais, amigos e familiares, se reúnem para dar o último adeus ao capitão, amigo da vizinhança, morto em combate com marginais enquanto desbaratava um imenso esquema de contrabando no cais do porto.
Em outro ponto, numa cerimônia mais modesta, um pequeno punhado de pessoas assiste a um funcionário baixar o caixão de Masami Kuroda.
Um rapaz agarrado à sua mãe chora bastante.
- Porque o pai, mãe? Com tanta gente ruim pra morrer, matam logo o pai – lamentava-se o rapaz, soluçando.
- Deus sabe o que faz, filho. Chegou a hora dele.
- Que Deus é esse, que determina um jeito tão cruel de uma pessoa morrer?
A mãe não responde, nem faz questão. Está abalada demais para questões dessa natureza. Uma mulher, porém, intervém.
- Pode ter certeza, menino, que Deus não tem responsabilidade nenhuma nisso. O homem gosta de botar a culpa em Deus em tudo. Mas o que realmente acontece é que as pessoas escolhem seus próprios caminhos, sem refletir no que vai dar.
A esposa de Kuroda olha para a mulher, depois para o filho e não diz nada. O rapaz também não. Apenas continua chorando.
Escondida entre os túmulos, uma menina de quinze anos observa a cena e escuta a conversa. Concorda mentalmente. A mulher conclui:
- A memória de seu pai não foi apagada.
O rapaz a abraça, assentindo com a cabeça. A mãe continua calada. O caixão é depositado na cova. Salva de tiros, não por Kuroda, mas por Gomes. Ouve-se, de longe, o discurso de uma alta patente, louvando os feitos do capitão.
Júlia sente vontade de falar com a família de Kuroda, mas se refreia. Provavelmente, seria reconhecida. Seu retrato falado já deve estar circulando pelas redes sociais. De repente, ela olha e vê um rosto conhecido.
Gilberto Molina!
Júlia sente o ódio reacender dentro dela.
- Foi por sua causa que o Kuroda morreu – pensa a menina, fechando os olhos. – se você tivesse nos deixado sair, hoje essa família não estaria chorando!
Gilberto não vê Júlia entre os túmulos. Ele está de longe, de roupa escura, numa posição que permite ver o enterro tanto de Gomes quanto de Kuroda. A Ramalho não enterraram; parece que seu corpo ainda está no Instituto Médico Legal.
Para Júlia, perdeu o interesse ver o enterro do padeiro. Agora, suas atenções se voltam para Gilberto Molina. Está com a ideia fixa de vingança. Quer acertar as contas com ele, fazê-lo pagar pela morte do homem que poderia ter sido um grande amigo.
Gilberto, alheio aos olhares da menina, dá de costas e começa a descer as escadarias. Outra salva de tiros. Júlia se desloca, sempre atrás das tumbas, e vai seguindo Gilberto até que o vê entrando no carro dele. Atendendo a uma ideia de súbito, pega o celular e focaliza a placa do carro.
O veículo arranca e se mistura aos outros veículos que perambulam pela cidade.
Guido está no balcão, como de costume.
- Então, deu cabo do Gomes?
Gilberto, sem se preocupar com os outros clientes, faz que sim com a cabeça. Toma uma golada generosa de cerveja.
- E a menina?
- Que menina?
Guido não responde. Gilberto olha para cima, como se consultasse a própria mente.
- Ah, sim, aquela novinha. Não sei que fim levou. Recusou a minha carona.
- Ela pode te dedurar pra polícia.
- Pode. – e toma mais um gole. – Mas não faz mal. Eles já estão atrás de mim, mesmo.
Guido acha graça.
- Então, o que faz aqui, dando sopa, à luz do dia?
Molina o encara com os seus olhos penetrantes.
- Eles precisam me pegar. Não adianta só saber onde eu estou.
Um dos clientes olha espantado para Gilberto e sai de perto. Guido ri. Molina, não. Devolve o copo ao balcão e se afasta, postura altiva, peito aberto, ombros pra trás.
Ao se curvar para abrir a porta do carro, é surpreendido por um cano de revólver em suas costas.
- Agora é a sua vez, desgraçado.
Molina reconhece a voz.
- O que pretende fazer, menina? Sabe mexer nesse negócio?
- Não foi você que matou o Gomes – responde Júlia, engatilhando. - Fui eu.
Gilberto Molina tenta se virar, mas a menina pressiona a arma ainda mais em suas costas. Na rua, a multidão começa a juntar. Guido desce correndo.
- Ele já pagou pela morte do Kuroda. Falta você.
- Menina, eu não atirei no padeiro. Foi o Gomes. Você viu.
- Mas foi você que meteu a gente nisso! - grita Júlia, chorando. Seu dedo começa a tremer no gatilho do revólver. Molina tenta manter a calma.
- Olha, eu sinto muito pelo seu amigo. Eu sei o que você está sentindo. O Gomes matou o meu irmão! Mas o fato de ele ter morrido não trouxe o Steve de volta. - Gilberto sente que Júlia afrouxa a pressão da arma. - Me matar não vai trazer o Kuroda de volta.
Sirenes de polícia se aproximam da praça.
- Larga essa arma, garota! - grita Guido – Você vai se complicar ainda mais!
Júlia sacode a cabeça e, num impulso, empurra Molina de encontro ao carro. Este tenta tomar-lhe a arma e segura o braço dela. Guido sai do meio da multidão e a agarra por trás.
- Me larga!
Gilberto Molina dá um tapa no rosto de Júlia e finalmente toma o revólver. Ela cai no asfalto e se encolhe. Molina engatilha, mas Guido o impede.
- Pára, Gilberto! Não precisa disso.
- Precisa sim – e aponta as pessoas ao redor. - Todo mundo precisa saber o que acontece com quem desafia Gilberto Molina!
As pessoas se desesperam e começam uma algazarra. Uma execução à luz do dia, na frente de todo mundo! Júlia, chorando, fecha os olhos e novamente espera a bala atravessar o seu corpo.
Dois disparos.
Molina arregala os olhos, surpreso, e coloca a mão nas costas. Está ensanguentada. Guido bota a mão na boca e apara o corpo do irmão. Júlia abre os olhos, também surpresa. Mais uma vez, saiu ilesa. A multidão se volta pra direção de onde viera os tiros.
O Coronel aparece de pistola empunhada. Atrás deles, meia dúzia de policiais também armados, abrem caminho entre as pessoas. Molina, nos braços do irmão, olha espantado, sem entender o que aconteceu.
- Não se preocupe, Molina. Vamos te levar ao hospital e, com um pouco de sorte, você vai sobreviver. Homens, levem-no.
Quase inconsciente, Gilberto se deixa levar pelos policiais até uma ambulância. Guido fica ali, com Júlia. A multidão se dispersa. As viaturas vão embora.
Júlia olha para Guido.
- Obrigado por tentar me salvar.
- Não precisa agradecer. Meu irmão não é má pessoa, só tem pouco juízo. Eu cansei de avisar a ele pra não entrar nessa vida.
Júlia abaixa a cabeça.
- Eu só queria que o Kuroda estivesse vivo.
Guido coloca a mão no ombro dela.
- Tem coisas que a gente não pode mudar. - e se afasta.
Júlia se levanta e observa o dono do bar voltar para o estabelecimento. Ela pensa em como seria a sua vida se Kuroda não tivesse morrido. Balança a cabeça. Não tem como saber. Frustrada por não ter dado cabo do Molina, a menina sobe a rua em direção à sua casa, até que se lembra que sua mãe a expulsara de lá.
Decide sentar na praça. Depois de escapar da morte várias vezes, é hora de pensar em seguir a vida.
conto escrito por
Hikaru
produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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