Sinopse: Quando mergulhei naquelas sombras, eu vi. Gelou minha alma: um par de olhos brilhando como fogo. Eram vermelhos e grandes, pousados totalmente sobre mim. Onça? Num impulso, freei o veículo. Não poderia ter tomado pior decisão. A coisa saiu de trás das árvores e avançou. Não era onça. Ladrava, ululava e uivava. Por ser tão negra quanto a noite que me cercava, não tive ideia de sua aparência, mas, pela altura daqueles olhos demoníacos, era muito grande. Saltou e caiu com estrondo sobre o capô da caminhonete. Imediatamente passou a arranhá-lo. O barulho estridente no metal arrancou-me do torpor. Liguei a caminhonete e disparei. A criatura prosseguiu, tentando entrar. Agora, sob o luar, percebi que ela era toda coberta de pelos hirsutos. Assemelhava-se a um cão, porém, muito maior e deslocava-se sobre as patas traseiras. A palavra veio-me à mente por mais insana que fosse e àquela situação: "Lobisomem!"
A Escuridão Tem Olhos de Fogo
de Roberto Schima
Tanto tempo
se passou, mas eu ainda me recordo...
Foi no
interior paulista, na zona rural.
Como eu
sempre fazia, dirigia solitário pela estrada de chão batido entre a fazenda do
Seu Gaudêncio e o sítio do Seu Yamada. Percorria essas e outras propriedades
rurais, adquirindo produtos agrícolas que seriam revendidos posteriormente na
mercearia de meu pai no centro da cidade. Havia anos ele percebera a ausência
desse tipo de comércio. Predominavam as lojas de calçados e quinquilharias de
R$1,99. Então, ele abrira o seu estabelecimento, "Os Filhos da
Fruta". Embora carrancudo, às vezes ele tinha os seus bons momentos.
Eu gostava
do serviço.
Já
trabalhara na capital. Porém, sempre me sentira deslocado. Desistira do sonho
da cidade grande e retornara às origens.
Agora,
podia voltar meus olhos para o azul do céu, suas nuvens de algodão doce, os
morros e as colinas onde bois e vacas pastavam. Não havia prazos apertados a
cumprir e nenhum chefe no meu cangote a encher o saco. Só ouvia o barulho
cansado do motor e a pedrinhas que, de quando em vez, batiam na lataria.
Mas via
desgostoso a diminuição dos campos, das matas e das pastagens. Indústrias
brotavam ali e acolá feito fungos, bem como o surgimento de condomínios de
luxo.
Nessa
viagem em particular, eu adquirira uma boa quantidade de frutas e de milho do
Seu Gaudêncio. Sua esposa, sempre meio sem graça, oferecera-me um pouco de
gelatina. Estava boa, mas aguada. Pensava nas transações que faria com o
pequeno senhor japonês, o Seu Yamada. Suas verduras e hortaliças eram as
melhores da região, e, embora sempre fizesse um preço justo, negociar era um
tipo de passatempo que ambos apreciávamos, regado a um copo de chá gelado feito
por sua filha e uma boa conversa sobre pescarias e o Extremo Oriente.
Foi cerca
de uns vinte minutos após eu deixar a fazenda, sacolejando pela estrada
esburacada, que tive a má surpresa de ter um dos pneus furado.
- Raios
parta!
Era a
primeira vez que isso me acontecia. Apanhei deveras para trocá-lo pelo estepe.
Quando terminei, a tarde já findava. Pestanejei, pois os faróis estavam
queimados. O pai vivia me cobrando para parar na oficina. Felizmente, a Lua
surgiu e tingiu tudo num véu prateado.
Era tarde e
Seu Yamada teria que esperar para fecharmos negócio até o dia seguinte.
De qualquer
forma, o meu caminho de volta para casa seguia pela estradinha. Então, achei
justo pelo menos avisá-lo do ocorrido. Ele apreciaria a cortesia e veria
justificada a aparente indelicadeza de minha ausência.
Seu Yamada
era um bom sujeito, meio sorridente, meio tímido. O que eu mais admirava nele
era a sua honestidade e a disciplina de sua família ao labutar no campo. Também
chamava-me a atenção a sua filha caçula, Mieko. Minha nossa, era como estar
diante de uma boneca de porcelana. Sua beleza exótica hipnotizava-me. Sua
meiguice excitava-me mais do que o despudoramento das moças na capital.
Eu não
nutria esperança de ter uma chance com ela. Sua família era muito tradicional e,
até onde sabia, sempre casavam-se dentro da própria colônia. Contudo, eu não
podia deixar de tentar, sempre discretamente: um olhar ocasional, um sorriso,
uma mesura. Qualquer coisa além disso seria considerado uma grosseria
imperdoável. A maneira delicada e precisa como ela servia o chá não só era
motivo de orgulho para o pai como deixava-me absolutamente maluco,
especialmente quando a brisa batia em seus cabelos, o Sol iluminava sua pele e
um suave perfume de flores silvestres chegava-me às narinas.
Assim, ir
até o sítio do Seu Yamada àquela hora não representava sacrifício algum.
A noite
chegara e não faltava muito até o desvio que me levaria a sua propriedade.
Logo após
uma curva, de cada lado da estrada, havia uma fileira de árvores robustas cujas
copas entrelaçavam-se, formando uma espécie de túnel. Era bonito de se ver
durante o dia, todavia, à noite, havia algo de sinistro na maneira como suas
sombras tornavam a noite mais escura ainda.
Meus
pensamentos estavam presos às coisas imediatas, por isso, não me apercebi da
mortalha de silêncio que caíra naquele local. Não fosse pelo motor da
caminhonete, até o som de uma folha a cair seria audível.
Quando
mergulhei naquelas sombras, eu vi. Gelou minha alma: um par de olhos brilhando
como fogo. Eram vermelhos e grandes, pousados totalmente sobre mim. Onça? Num
impulso, freei o veículo. Não poderia ter tomado pior decisão. A coisa saiu de
trás das árvores e avançou. Não era onça. Ladrava, ululava e uivava. Por ser
tão negra quanto a noite que me cercava, não tive ideia de sua aparência, mas,
pela altura daqueles olhos demoníacos, era muito grande. Saltou e caiu com
estrondo sobre o capô da caminhonete. Imediatamente passou a arranhá-lo. O
barulho estridente no metal arrancou-me do torpor. Liguei a caminhonete e
disparei. A criatura prosseguiu, tentando entrar. Agora, sob o luar, percebi
que ela era toda coberta de pelos hirsutos. Assemelhava-se a um cão, porém,
muito maior e deslocava-se sobre as patas traseiras. A palavra veio-me à mente
por mais insana que fosse e àquela situação: "Lobisomem!"
Corri meio
às cegas e feito louco pela estrada.
As garras
perfurarem o metal.
- Não! -
gritei.
Atingi um
trecho da estrada em pior estado. A velocidade somada às irregularidades do
terreno, fizeram a caminhonete pular feito um potro selvagem.
A criatura
foi jogada para o lado.
Fugi dali
sem pensar em mais nada, só vendo o luar penetrar nas perfurações no teto.
Um rastro
de laranjas, abacates, mangas, bananas e espigas de milho ficou pelo caminho.
Passei direto
pelo desvio que daria para o sítio do Seu Yamada. Àquela altura, tudo o que
importava era trancar-me em casa, aliviar a bexiga e recuperar-me do susto.
"Os
Filhos da Fruta" ficava no centro da cidade. Meu pai e eu, porém,
morávamos na periferia, a um passo da zona rural. Segundo ele, não prestava
morar perto ou no local de trabalho porque, por mais que se gostasse da
atividade, a pessoa não se desligava do serviço. Agradeci-o por isso, caso
contrário, teria urinado no jeans.
A casa era
pequena, contudo, o quintal era grande e abrigava três cães de rua adotados.
Minha mãe falecera havia anos e, de vez em quando, vinha uma diarista cuidar da
limpeza.
Aos poucos,
normalizei a respiração.
Eu esperava
encontrar aflição, consolo e compreensão.
Tudo o que
meu pai fez ao me ver entrar foi berrar sobre onde eu estivera até aquela hora
e por que não fora no Seu Yamada com o qual acabara de falar ao telefone. Corri
para o banheiro sem nada dizer, tomei uma ducha por um longo tempo.
Mais calmo,
fui jantar.
O olhar de
meu pai cruzou com o meu e narrei o ocorrido: o pneu furado, os faróis
queimados - ele só ergueu uma das sobrancelhas numa censura muda -, o luar, o
túnel de árvores e, finalmente, o monstro.
Àquela
altura, tudo o que eu esperava ouvir eram mais reprimendas por eu inventar
tamanho disparate.
Entretanto,
meu pai franziu o cenho. Preparou um cigarro de palha, acendeu e deu longas
baforadas. Por fim, contou-me.
Havia
questão de dois anos, ele tivera um encontro semelhante.
Disse não
se recordar a razão de estar na estrada a noite. Fingi desconhecer o
"causo" que ele mantinha com a esposa do Seu Gaudêncio. Os faróis
estavam em ordem, mas uma forte neblina atravessava o caminho. De repente, meu
pai sentira algo pular na carroceria, uma coisa pesada. Olhara pelo retrovisor
- talvez imaginando Seu Gaudêncio de garrucha na mão - e ficara aterrorizado.
Descreveu-me um corpo enorme, coberto de pelos desgrenhados e, quando a
criatura abaixara-se, os mesmos olhos rubros que eu testemunhara. Ao contrário
de mim, porém, tivera raciocínio rápido e acelerara. O lobisomem ainda tentara
se segurar na carroceria, mas a lateral do caminhão passara rente ao barranco e
batera no ombro da criatura, arrancando-a do veículo.
O velho
ficou em silêncio algum tempo. Achei que terminara. Daí ele acrescentou,
pensativo:
- Quando
fui na manhã seguinte até o Seu Yamada, vi que o filho dele, Mário, tinha uma
tala no braço.
- O que
quer dizer com isso?
- Que o
Mário tinha uma tala no braço - respondeu impertinente. - A dedução fica por
sua conta.
O Seu
Yamada e sua família sempre me pareceram boa gente. Eu gostava dos modos
orientais, educados e comedidos, tão diferentes da grosseria ocidental.
- São bons
fornecedores - acrescentou meu pai. - Mas nunca percebeu como são estranhos?
-
"Estranhos"?
- Tão
reservados, como se guardassem segredos...
"Reservados
como o senhor para certas coisas?", pensei intimamente.
- Eles são
japoneses! - falei, pensando no olhar tímido de Mieko. - Todo japonês é quieto.
Meu pai
riu.
- Você não
conheceu o Paulo.
Paulo era
um sansei cujos avós aportaram em Santos no início do século passado.
- Sei quem
é. Mas esse é brasileiro. Já tem nossos maus costumes.
- O que
quer dizer?
- Bebidas,
falastrão, malandro... mulherengo.
Se meu pai
pretendeu retrucar, mudou de ideia.
- Que seja.
Só não fique mais à noite na estrada.
- Com
certeza.
- E tire os
olhos da filha do japonês!
Eu não
supunha ser tão transparente assim.
Na manhã
seguinte, fui até o sítio de Seu Yamada. Sentia-me nervoso.
Seu Yamada
recebeu-me como sempre, todo humildade e gentileza. Expliquei-lhe a razão de
minha ausência no dia anterior: o pneu furado. Omiti o encontro que tivera.
Enquanto
acertávamos a compra de suas verduras, sempre frescas e sem agrotóxico,
observei os arredores.
Ele tinha
somente dois filhos: Mieko e Mário. Tivera outros, mas morreram doentes ainda
crianças ou bebês
Mieko,
segundo eu soube, ajudava a mãe nos deveres de casa.
Mário
apareceu pouco depois, acompanhado de outro oriental, talvez um primo. Conduzia
uma carroça cheia dos produtos do sítio. Cumprimentou-me de olhar severo. Não
gostava de mim, isso era patente. Eu nunca entendi o motivo, todavia, ante a
advertência de meu pai, conclui ser eu, de fato, transparente.
Fiquei
frustrado por não ver Mieko. Ainda que eu não tivesse chance com ela, só de
observá-la sentia-me bem o restante do dia.
Por outro
lado, reparei que o seu irmão mancava. Imediatamente, lembrei-me da história da
tala e perguntei-me se poderia ser verdade. Seria coincidência ou Mário,
enquanto lobisomem, ferira-se durante a queda da caminhonete? Dado o meu
interesse por Mieko, seria essa a motivação de seu ataque? O outro homem
ajudou-o a transportar as verduras e legumes da carroça para a carroceria da
caminhonete.
Paguei Seu
Yamada, agradecendo pela compra.
Eu estava
prestes a partir quando ela surgiu.
Mieko!
Houve
tensão no ar, tão palpável quanto à espera do trovão após o relâmpago.
Mário
capengou na direção da irmã. Falou rispidamente em japonês, de tal modo que eu
não compreendesse. Mas o termo gaijin,
repetido algumas vezes, foi bastante claro para mim.
Ela
encolheu-se.
Trocamos
olhares rapidamente e, num segundo louco, tive a convicção de que ela
correspondia aos meus sentimentos. Contudo, no instante seguinte, retornou para
dentro de casa e eu fiquei odiando o seu irmão em silêncio.
Fechei
negócio também com o Seu Gaudêncio. Pobre homem. Vi em seu olhar que ele
ignorava completamente a infidelidade da esposa. Ela surgiu com o filho menor.
Busquei no pequeno alguma semelhança comigo ou alguém de minha família. A
mulher, nervosa, tratou de arrastá-lo dali. Não ganhei gelatina.
Dramas
demais em uma região tão pequena e pouco povoada. Receei quanto ao futuro e os
desfechos que teriam.
Retornei
sem incidentes para a casa pela estradinha de chão batido.
Entretanto,
naquela noite, após o jantar, ouvimos os cães agitados. Latiam feito
desesperados. Ganiam e corriam alvoroçados.
Ladrão?
Meu pai
apanhou sua velha espingarda e eu, que não possuía arma, peguei um facão na
cozinha.
Se os
grandes centros urbanos tornaram-se um inferno em se tratando de violência, o
campo não ficara atrás. Quadrilhas invadiam propriedades rurais, levando tudo o
que podiam, quando não destruíam toda a lavoura ou matavam o gado e as
galinhas.
Ele abriu a
porta no exato momento em que ouvimos o rosnado.
Não era dos
cães.
Arrepiei-me
todo.
Meu pai
tratou de fechar a porta e passar a chave.
Averiguamos
as janelas e as outras portas. Elas nunca me pareceram tão frágeis.
Os rosnados
ficaram mais fortes. Já os latidos de nossos cães transformaram-se em
choramingos e desapareceram. Grandes cães de guarda!
A coisa
adentrou em nossa soleira. Tábuas rangeram. Deu pancadas na parede, na janela,
na porta, como se estivesse avaliando.
Um fedor
penetrante invadiu a sala. Cheiro de coisa molhada ou mofada.
Meu pai
apontou a espingarda, conforme os ouvidos diziam onde o monstro estava. O cano
da arma tremia.
Então, a
coisa correu ao redor, batendo e arranhando.
Podíamos
sentir o tremor sob nossos pés.
Suando, meu
pai não sabia ao certo onde apontar e até tive medo de ficar diante do
"fogo amigo". Quanto a mim, estava paralisado de medo. Quem era eu
para censurar os cachorros? Quisera estar no lugar deles! Como combater aquilo?
Não tinha que ser balas de prata ou era só folclore do cinema?
Finalmente,
a coisa deu uma fortíssima patada na porta da frente.
Uivou bem
alto e silenciou.
Meu pai
atirou naquela direção e abriu um buraco na porta. Isso não me deixou nem um
pouco seguro. Arranjei uma tábua, martelo e pregos para tapar aquilo.
Aproximei-me do buraco e posicionava o pedaço de madeira. Foi quando uma garra
peluda surgiu, agarrou meu pulso e puxou. A força foi tremenda e, se quisesse,
poderia arrancar-me o braço.
Gritei
desesperadamente, preso no buraco até o ombro.
Senti a
mordida em seguida e berrei a plenos pulmões, enlouquecido pela dor.
Meu pai
correu até junto a mim, encostou o cano da arma na porta, rente a minha
cintura, e atirou outra vez.
Ouvimos um
longo ganido.
Meu braço
ficou livre e puxei-o de volta, horrorizado diante da carne dilacerada e o
sangue que vertia. Meu pai, com o risco da própria vida, destrancou a porta e
levou-me até a caminhonete. No pronto-socorro contou uma história sobre um
cachorro do mato que não convenceu ninguém. Deram-me alguns pontos, injeções e
dispensaram-nos. Retornamos madrugada adentro. Estava tudo calmo, quieto
demais. Antes de sumir, a coisa matara nossos cães.
Observamos
os dois buracos na porta. Entre eles, havia a marca escura de uma mão enorme,
resultado da patada dada pela criatura.
Trancamo-nos
e o velho pregou as tábuas nos buracos.
Na manhã
seguinte, enquanto eu estava acamado, ele saiu.
Percebi sua
ausência ao ver que a caminhonete não estava no lugar. Encontrei um bilhete.
Iria tirar satisfações com o Seu Yamada e resolver aquilo de uma vez por todas.
Pensei
nele.
Pensei em
Mieko.
Pensei no
Seu Yamada.
Evitei
pensar no tal de Mário.
Embora eu
estivesse fraco e sentisse muita dor, precisava alcançá-lo. Não tínhamos
cavalo, mas havia a minha bicicleta, trazida da capital.
Foi a
corrida de um insano atrás da insanidade. Cada sacolejo, trazia-me ondas de
dor. Eu mal podia tocar o guidão com a mão do braço machucado. Só me dei conta
das lágrimas quando não consegui mais enxergar. Parei, limpei os olhos na
camisa, cuspi a poeira, descansei para retomar o fôlego e conferi o machucado.
Retomei o caminho.
Percorrer
os sítios e as fazendas de caminhonete pelas estradas poeirentas era lento
devido as irregularidades do caminho e as muitas curvas, subidas e descidas. O
que dizer de alguém ferido em uma bicicleta?
Só cheguei
quando o Sol estava a um dedo de tocar o horizonte.
A primeira
coisa que chamou a minha atenção quando cheguei ao sítio foi a caminhonete,
estacionada ao lado da casa, a meio caminho do morro; a segunda - e fez um
calafrio percorrer a minha nuca -, foi a quietude.
Ofegante,
encostei a bicicleta na caminhonete.
Onde estava
todo mundo?
- Pai! -
chamei. - Seu Yamada!
Quase ouvi
ecos de minha voz.
Subi no
alpendre e bati na porta.
- Seu
Yamada!... Mieko!
Ainda nada.
Olhei os
arredores. Não vi ninguém nas plantações. Girei a maçaneta.
O cheiro
atingiu-me de imediato. Aquele fedor penetrante. O odor exalado pela fera ao
rondar minha casa. Tentei achar algo que pudesse servir como arma. Apanhei uma
pá. Era-me doloroso segurá-la. Entrei.
A cozinha
estava toda revirada. Louças quebradas, cadeiras tombadas, panelas amassadas. A
mesa fora partida ao meio. Um porta-louça tombara sobre o primeiro corpo: Seu
Yamada. Pobre homem. O crânio fora rachado. O terror e o suor tomavam conta de
mim.
Num
corredor, encontrei o corpo da esposa de Seu Yamada. Não vi ferimentos. Morrera
do coração, conclui. No alto de uma escada que dava acesso a uma espécie de
porão, achei o corpo de meu pai. Cai de joelhos. Suas costas e sua garganta
foram estraçalhadas. A espingarda estava caída num canto. Peguei-a.
O fedor
chegava mais forte de lá debaixo, no porão às escuras.
Eu podia
ter trancado a porta desse porão e picado a mula.
Mas, agora,
eu tinha de ir até o fim daquela história.
Respirei
fundo e comecei a descer os degraus.
Apertei o
interruptor e uma lâmpada fraca iluminou a escada e o porão parcialmente.
Escutei um
rosnado. Minto, não um rosnado, mas uma respiração irregular, audível, que
fazia lembrar um rosnado.
Continuei a
descer, pernas fraquejando, braços tremendo.
Já no final
da escada, outro corpo.
O pesar me
atingiu.
"Mieko!"
Era só um
monte de trapos quase oculto na escuridão. Arrastei para perto da luz no pé da
escada, atento aos cantos negros do porão. Olhei o cadáver. O espanto
sobrepôs-se à repulsa ao ver seu estado.
Era Mário!
Foi quando
a respiração da criatura tornou-se mais forte e os olhos em brasa surgiram no
canto mais escuro e afastado do aposento.
Caí para trás.
Apontei a arma, mas eu já me dava por perdido.
A coisa
falou. Sua voz era rouca, grave, vinha das profundezas de uma caverna úmida.
- Eu...
sinto... muito!
Depois, os
olhos sumiram e ouvi soluços grotescos vindos daquele canto.
Não
querendo acreditar na conclusão óbvia, forcei meus lábios a dizer o que eu mais
temia:
- Mieko?
A resposta,
igualmente temida, apareceu.
- Sim...
Sinto muito!
Agora, eu
pude reconhecer a voz.
Avistei
outro interruptor e, hesitante, acionei-o.
Fiquei
chocado.
Aquilo não
era um porão comum. Era uma espécie de masmorra. Havia grilhões fincados à
parede. O chão estava coberto de imundície. E, no canto, agachada, semblante
devastado, Mieko. Era só farrapos e os cabelos em desalinho como jamais os
vira. Sangue manchava suas vestes, seu rosto, principalmente ao redor dos
lábios. Isso trouxe-me a lembrança da criatura, de sua força e do que fizera.
Relutei em
aproximar-me.
E ela
prosseguiu:
- Minha
família sempre procurou me proteger do monstro dentro de mim. Quando eu era
criança, não entendia e chorava muito ao ser acorrentada. Na adolescência,
compreendia melhor, mas não o porquê dessa sina. Agora, já mulher, tornou-se
insuportável. Ademais, eu conheci você... Instintos e desejos afloraram. E
também tomaram conta da coisa. Quiseram detê-la. Ela reagiu... Eu reagi.
Soluçou.
- Você
quase me matou - falei, erguendo o braço ferido.
Desatou a
chorar.
- Lamento
muito! Lamento por seu pai... por minha família.... por você a quem eu menos
gostaria de ferir neste mundo. Mas, a minha intenção não foi matá-lo.
- Não?
- Não...
Sinto muito! Não sente dentro de si? Não escuta o chamado?
Franzi a
testa.
- Chamado?
Quem?
- O chamado
da noite. Não percebe... Escureceu.
- Como
ass...
- Olhe para
os seus braços.
Aquilo que
eu não queria ver tornou-se claro para mim.
Pelos
espessos surgiram. No lugar das unhas, garras negras. Minha voz, um rosnado.
- Sinto
muito! - gritou ela, a voz voltando a ficar rouca.
O sangue
ferveu em meu corpo. Uma dor insuportável tomou conta de mim. Todos os meus
ossos estavam se partindo, desmontando, sendo reconstruídos.
Quis
gritar, mas o que emiti foi um uivo longo e alucinado.
Então, era
isso.
Agora, aqui
estou com outra caminhonete, fugindo para os rincões deste país. Sem destino
prévio, sem parada fixa. Deixei tudo para trás. A cidade. A vida no campo. Meu
pai.
Não...
... tudo
não.
Ao meu
lado, Mieko.
Ela também
largou tudo o que conhecia. Deixou sua vida anterior de um modo terrível.
Vez ou
outra é consumida pelo remorso. Tento confortá-la como posso.
Somos só
nós dois agora.
Ela é o meu
mundo.
E eu sou o
dela.
Foi assim
que eu sonhei um dia.
Mas nunca,
de modo algum, dessa maneira.
Tanto tempo
se passou, mas eu ainda me recordo...
Foi no
interior paulista, na zona rural.
Como eu
sempre fazia, dirigia solitário pela estrada de chão batido entre a fazenda do
Seu Gaudêncio e o sítio do Seu Yamada. Percorria essas e outras propriedades
rurais, adquirindo produtos agrícolas que seriam revendidos posteriormente na
mercearia de meu pai no centro da cidade. Havia anos ele percebera a ausência
desse tipo de comércio. Predominavam as lojas de calçados e quinquilharias de
R$1,99. Então, ele abrira o seu estabelecimento, "Os Filhos da
Fruta". Embora carrancudo, às vezes ele tinha os seus bons momentos.
Eu gostava
do serviço.
Já
trabalhara na capital. Porém, sempre me sentira deslocado. Desistira do sonho
da cidade grande e retornara às origens.
Agora,
podia voltar meus olhos para o azul do céu, suas nuvens de algodão doce, os
morros e as colinas onde bois e vacas pastavam. Não havia prazos apertados a
cumprir e nenhum chefe no meu cangote a encher o saco. Só ouvia o barulho
cansado do motor e a pedrinhas que, de quando em vez, batiam na lataria.
Mas via
desgostoso a diminuição dos campos, das matas e das pastagens. Indústrias
brotavam ali e acolá feito fungos, bem como o surgimento de condomínios de
luxo.
Nessa
viagem em particular, eu adquirira uma boa quantidade de frutas e de milho do
Seu Gaudêncio. Sua esposa, sempre meio sem graça, oferecera-me um pouco de
gelatina. Estava boa, mas aguada. Pensava nas transações que faria com o
pequeno senhor japonês, o Seu Yamada. Suas verduras e hortaliças eram as
melhores da região, e, embora sempre fizesse um preço justo, negociar era um
tipo de passatempo que ambos apreciávamos, regado a um copo de chá gelado feito
por sua filha e uma boa conversa sobre pescarias e o Extremo Oriente.
Foi cerca
de uns vinte minutos após eu deixar a fazenda, sacolejando pela estrada
esburacada, que tive a má surpresa de ter um dos pneus furado.
- Raios
parta!
Era a
primeira vez que isso me acontecia. Apanhei deveras para trocá-lo pelo estepe.
Quando terminei, a tarde já findava. Pestanejei, pois os faróis estavam
queimados. O pai vivia me cobrando para parar na oficina. Felizmente, a Lua
surgiu e tingiu tudo num véu prateado.
Era tarde e
Seu Yamada teria que esperar para fecharmos negócio até o dia seguinte.
De qualquer
forma, o meu caminho de volta para casa seguia pela estradinha. Então, achei
justo pelo menos avisá-lo do ocorrido. Ele apreciaria a cortesia e veria
justificada a aparente indelicadeza de minha ausência.
Seu Yamada
era um bom sujeito, meio sorridente, meio tímido. O que eu mais admirava nele
era a sua honestidade e a disciplina de sua família ao labutar no campo. Também
chamava-me a atenção a sua filha caçula, Mieko. Minha nossa, era como estar
diante de uma boneca de porcelana. Sua beleza exótica hipnotizava-me. Sua
meiguice excitava-me mais do que o despudoramento das moças na capital.
Eu não
nutria esperança de ter uma chance com ela. Sua família era muito tradicional e,
até onde sabia, sempre casavam-se dentro da própria colônia. Contudo, eu não
podia deixar de tentar, sempre discretamente: um olhar ocasional, um sorriso,
uma mesura. Qualquer coisa além disso seria considerado uma grosseria
imperdoável. A maneira delicada e precisa como ela servia o chá não só era
motivo de orgulho para o pai como deixava-me absolutamente maluco,
especialmente quando a brisa batia em seus cabelos, o Sol iluminava sua pele e
um suave perfume de flores silvestres chegava-me às narinas.
Assim, ir
até o sítio do Seu Yamada àquela hora não representava sacrifício algum.
A noite
chegara e não faltava muito até o desvio que me levaria a sua propriedade.
Logo após
uma curva, de cada lado da estrada, havia uma fileira de árvores robustas cujas
copas entrelaçavam-se, formando uma espécie de túnel. Era bonito de se ver
durante o dia, todavia, à noite, havia algo de sinistro na maneira como suas
sombras tornavam a noite mais escura ainda.
Meus
pensamentos estavam presos às coisas imediatas, por isso, não me apercebi da
mortalha de silêncio que caíra naquele local. Não fosse pelo motor da
caminhonete, até o som de uma folha a cair seria audível.
Quando
mergulhei naquelas sombras, eu vi. Gelou minha alma: um par de olhos brilhando
como fogo. Eram vermelhos e grandes, pousados totalmente sobre mim. Onça? Num
impulso, freei o veículo. Não poderia ter tomado pior decisão. A coisa saiu de
trás das árvores e avançou. Não era onça. Ladrava, ululava e uivava. Por ser
tão negra quanto a noite que me cercava, não tive ideia de sua aparência, mas,
pela altura daqueles olhos demoníacos, era muito grande. Saltou e caiu com
estrondo sobre o capô da caminhonete. Imediatamente passou a arranhá-lo. O
barulho estridente no metal arrancou-me do torpor. Liguei a caminhonete e
disparei. A criatura prosseguiu, tentando entrar. Agora, sob o luar, percebi
que ela era toda coberta de pelos hirsutos. Assemelhava-se a um cão, porém,
muito maior e deslocava-se sobre as patas traseiras. A palavra veio-me à mente
por mais insana que fosse e àquela situação: "Lobisomem!"
Corri meio
às cegas e feito louco pela estrada.
As garras
perfurarem o metal.
- Não! -
gritei.
Atingi um
trecho da estrada em pior estado. A velocidade somada às irregularidades do
terreno, fizeram a caminhonete pular feito um potro selvagem.
A criatura
foi jogada para o lado.
Fugi dali
sem pensar em mais nada, só vendo o luar penetrar nas perfurações no teto.
Um rastro
de laranjas, abacates, mangas, bananas e espigas de milho ficou pelo caminho.
Passei direto
pelo desvio que daria para o sítio do Seu Yamada. Àquela altura, tudo o que
importava era trancar-me em casa, aliviar a bexiga e recuperar-me do susto.
"Os
Filhos da Fruta" ficava no centro da cidade. Meu pai e eu, porém,
morávamos na periferia, a um passo da zona rural. Segundo ele, não prestava
morar perto ou no local de trabalho porque, por mais que se gostasse da
atividade, a pessoa não se desligava do serviço. Agradeci-o por isso, caso
contrário, teria urinado no jeans.
A casa era
pequena, contudo, o quintal era grande e abrigava três cães de rua adotados.
Minha mãe falecera havia anos e, de vez em quando, vinha uma diarista cuidar da
limpeza.
Aos poucos,
normalizei a respiração.
Eu esperava
encontrar aflição, consolo e compreensão.
Tudo o que
meu pai fez ao me ver entrar foi berrar sobre onde eu estivera até aquela hora
e por que não fora no Seu Yamada com o qual acabara de falar ao telefone. Corri
para o banheiro sem nada dizer, tomei uma ducha por um longo tempo.
Mais calmo,
fui jantar.
O olhar de
meu pai cruzou com o meu e narrei o ocorrido: o pneu furado, os faróis
queimados - ele só ergueu uma das sobrancelhas numa censura muda -, o luar, o
túnel de árvores e, finalmente, o monstro.
Àquela
altura, tudo o que eu esperava ouvir eram mais reprimendas por eu inventar
tamanho disparate.
Entretanto,
meu pai franziu o cenho. Preparou um cigarro de palha, acendeu e deu longas
baforadas. Por fim, contou-me.
Havia
questão de dois anos, ele tivera um encontro semelhante.
Disse não
se recordar a razão de estar na estrada a noite. Fingi desconhecer o
"causo" que ele mantinha com a esposa do Seu Gaudêncio. Os faróis
estavam em ordem, mas uma forte neblina atravessava o caminho. De repente, meu
pai sentira algo pular na carroceria, uma coisa pesada. Olhara pelo retrovisor
- talvez imaginando Seu Gaudêncio de garrucha na mão - e ficara aterrorizado.
Descreveu-me um corpo enorme, coberto de pelos desgrenhados e, quando a
criatura abaixara-se, os mesmos olhos rubros que eu testemunhara. Ao contrário
de mim, porém, tivera raciocínio rápido e acelerara. O lobisomem ainda tentara
se segurar na carroceria, mas a lateral do caminhão passara rente ao barranco e
batera no ombro da criatura, arrancando-a do veículo.
O velho
ficou em silêncio algum tempo. Achei que terminara. Daí ele acrescentou,
pensativo:
- Quando
fui na manhã seguinte até o Seu Yamada, vi que o filho dele, Mário, tinha uma
tala no braço.
- O que
quer dizer com isso?
- Que o
Mário tinha uma tala no braço - respondeu impertinente. - A dedução fica por
sua conta.
O Seu
Yamada e sua família sempre me pareceram boa gente. Eu gostava dos modos
orientais, educados e comedidos, tão diferentes da grosseria ocidental.
- São bons
fornecedores - acrescentou meu pai. - Mas nunca percebeu como são estranhos?
-
"Estranhos"?
- Tão
reservados, como se guardassem segredos...
"Reservados
como o senhor para certas coisas?", pensei intimamente.
- Eles são
japoneses! - falei, pensando no olhar tímido de Mieko. - Todo japonês é quieto.
Meu pai
riu.
- Você não
conheceu o Paulo.
Paulo era
um sansei cujos avós aportaram em Santos no início do século passado.
- Sei quem
é. Mas esse é brasileiro. Já tem nossos maus costumes.
- O que
quer dizer?
- Bebidas,
falastrão, malandro... mulherengo.
Se meu pai
pretendeu retrucar, mudou de ideia.
- Que seja.
Só não fique mais à noite na estrada.
- Com
certeza.
- E tire os
olhos da filha do japonês!
Eu não
supunha ser tão transparente assim.
Na manhã
seguinte, fui até o sítio de Seu Yamada. Sentia-me nervoso.
Seu Yamada
recebeu-me como sempre, todo humildade e gentileza. Expliquei-lhe a razão de
minha ausência no dia anterior: o pneu furado. Omiti o encontro que tivera.
Enquanto
acertávamos a compra de suas verduras, sempre frescas e sem agrotóxico,
observei os arredores.
Ele tinha
somente dois filhos: Mieko e Mário. Tivera outros, mas morreram doentes ainda
crianças ou bebês
Mieko,
segundo eu soube, ajudava a mãe nos deveres de casa.
Mário
apareceu pouco depois, acompanhado de outro oriental, talvez um primo. Conduzia
uma carroça cheia dos produtos do sítio. Cumprimentou-me de olhar severo. Não
gostava de mim, isso era patente. Eu nunca entendi o motivo, todavia, ante a
advertência de meu pai, conclui ser eu, de fato, transparente.
Fiquei
frustrado por não ver Mieko. Ainda que eu não tivesse chance com ela, só de
observá-la sentia-me bem o restante do dia.
Por outro
lado, reparei que o seu irmão mancava. Imediatamente, lembrei-me da história da
tala e perguntei-me se poderia ser verdade. Seria coincidência ou Mário,
enquanto lobisomem, ferira-se durante a queda da caminhonete? Dado o meu
interesse por Mieko, seria essa a motivação de seu ataque? O outro homem
ajudou-o a transportar as verduras e legumes da carroça para a carroceria da
caminhonete.
Paguei Seu
Yamada, agradecendo pela compra.
Eu estava
prestes a partir quando ela surgiu.
Mieko!
Houve
tensão no ar, tão palpável quanto à espera do trovão após o relâmpago.
Mário
capengou na direção da irmã. Falou rispidamente em japonês, de tal modo que eu
não compreendesse. Mas o termo gaijin,
repetido algumas vezes, foi bastante claro para mim.
Ela
encolheu-se.
Trocamos
olhares rapidamente e, num segundo louco, tive a convicção de que ela
correspondia aos meus sentimentos. Contudo, no instante seguinte, retornou para
dentro de casa e eu fiquei odiando o seu irmão em silêncio.
Fechei
negócio também com o Seu Gaudêncio. Pobre homem. Vi em seu olhar que ele
ignorava completamente a infidelidade da esposa. Ela surgiu com o filho menor.
Busquei no pequeno alguma semelhança comigo ou alguém de minha família. A
mulher, nervosa, tratou de arrastá-lo dali. Não ganhei gelatina.
Dramas
demais em uma região tão pequena e pouco povoada. Receei quanto ao futuro e os
desfechos que teriam.
Retornei
sem incidentes para a casa pela estradinha de chão batido.
Entretanto,
naquela noite, após o jantar, ouvimos os cães agitados. Latiam feito
desesperados. Ganiam e corriam alvoroçados.
Ladrão?
Meu pai
apanhou sua velha espingarda e eu, que não possuía arma, peguei um facão na
cozinha.
Se os
grandes centros urbanos tornaram-se um inferno em se tratando de violência, o
campo não ficara atrás. Quadrilhas invadiam propriedades rurais, levando tudo o
que podiam, quando não destruíam toda a lavoura ou matavam o gado e as
galinhas.
Ele abriu a
porta no exato momento em que ouvimos o rosnado.
Não era dos
cães.
Arrepiei-me
todo.
Meu pai
tratou de fechar a porta e passar a chave.
Averiguamos
as janelas e as outras portas. Elas nunca me pareceram tão frágeis.
Os rosnados
ficaram mais fortes. Já os latidos de nossos cães transformaram-se em
choramingos e desapareceram. Grandes cães de guarda!
A coisa
adentrou em nossa soleira. Tábuas rangeram. Deu pancadas na parede, na janela,
na porta, como se estivesse avaliando.
Um fedor
penetrante invadiu a sala. Cheiro de coisa molhada ou mofada.
Meu pai
apontou a espingarda, conforme os ouvidos diziam onde o monstro estava. O cano
da arma tremia.
Então, a
coisa correu ao redor, batendo e arranhando.
Podíamos
sentir o tremor sob nossos pés.
Suando, meu
pai não sabia ao certo onde apontar e até tive medo de ficar diante do
"fogo amigo". Quanto a mim, estava paralisado de medo. Quem era eu
para censurar os cachorros? Quisera estar no lugar deles! Como combater aquilo?
Não tinha que ser balas de prata ou era só folclore do cinema?
Finalmente,
a coisa deu uma fortíssima patada na porta da frente.
Uivou bem
alto e silenciou.
Meu pai
atirou naquela direção e abriu um buraco na porta. Isso não me deixou nem um
pouco seguro. Arranjei uma tábua, martelo e pregos para tapar aquilo.
Aproximei-me do buraco e posicionava o pedaço de madeira. Foi quando uma garra
peluda surgiu, agarrou meu pulso e puxou. A força foi tremenda e, se quisesse,
poderia arrancar-me o braço.
Gritei
desesperadamente, preso no buraco até o ombro.
Senti a
mordida em seguida e berrei a plenos pulmões, enlouquecido pela dor.
Meu pai
correu até junto a mim, encostou o cano da arma na porta, rente a minha
cintura, e atirou outra vez.
Ouvimos um
longo ganido.
Meu braço
ficou livre e puxei-o de volta, horrorizado diante da carne dilacerada e o
sangue que vertia. Meu pai, com o risco da própria vida, destrancou a porta e
levou-me até a caminhonete. No pronto-socorro contou uma história sobre um
cachorro do mato que não convenceu ninguém. Deram-me alguns pontos, injeções e
dispensaram-nos. Retornamos madrugada adentro. Estava tudo calmo, quieto
demais. Antes de sumir, a coisa matara nossos cães.
Observamos
os dois buracos na porta. Entre eles, havia a marca escura de uma mão enorme,
resultado da patada dada pela criatura.
Trancamo-nos
e o velho pregou as tábuas nos buracos.
Na manhã
seguinte, enquanto eu estava acamado, ele saiu.
Percebi sua
ausência ao ver que a caminhonete não estava no lugar. Encontrei um bilhete.
Iria tirar satisfações com o Seu Yamada e resolver aquilo de uma vez por todas.
Pensei
nele.
Pensei em
Mieko.
Pensei no
Seu Yamada.
Evitei
pensar no tal de Mário.
Embora eu
estivesse fraco e sentisse muita dor, precisava alcançá-lo. Não tínhamos
cavalo, mas havia a minha bicicleta, trazida da capital.
Foi a
corrida de um insano atrás da insanidade. Cada sacolejo, trazia-me ondas de
dor. Eu mal podia tocar o guidão com a mão do braço machucado. Só me dei conta
das lágrimas quando não consegui mais enxergar. Parei, limpei os olhos na
camisa, cuspi a poeira, descansei para retomar o fôlego e conferi o machucado.
Retomei o caminho.
Percorrer
os sítios e as fazendas de caminhonete pelas estradas poeirentas era lento
devido as irregularidades do caminho e as muitas curvas, subidas e descidas. O
que dizer de alguém ferido em uma bicicleta?
Só cheguei
quando o Sol estava a um dedo de tocar o horizonte.
A primeira
coisa que chamou a minha atenção quando cheguei ao sítio foi a caminhonete,
estacionada ao lado da casa, a meio caminho do morro; a segunda - e fez um
calafrio percorrer a minha nuca -, foi a quietude.
Ofegante,
encostei a bicicleta na caminhonete.
Onde estava
todo mundo?
- Pai! -
chamei. - Seu Yamada!
Quase ouvi
ecos de minha voz.
Subi no
alpendre e bati na porta.
- Seu
Yamada!... Mieko!
Ainda nada.
Olhei os
arredores. Não vi ninguém nas plantações. Girei a maçaneta.
O cheiro
atingiu-me de imediato. Aquele fedor penetrante. O odor exalado pela fera ao
rondar minha casa. Tentei achar algo que pudesse servir como arma. Apanhei uma
pá. Era-me doloroso segurá-la. Entrei.
A cozinha
estava toda revirada. Louças quebradas, cadeiras tombadas, panelas amassadas. A
mesa fora partida ao meio. Um porta-louça tombara sobre o primeiro corpo: Seu
Yamada. Pobre homem. O crânio fora rachado. O terror e o suor tomavam conta de
mim.
Num
corredor, encontrei o corpo da esposa de Seu Yamada. Não vi ferimentos. Morrera
do coração, conclui. No alto de uma escada que dava acesso a uma espécie de
porão, achei o corpo de meu pai. Cai de joelhos. Suas costas e sua garganta
foram estraçalhadas. A espingarda estava caída num canto. Peguei-a.
O fedor
chegava mais forte de lá debaixo, no porão às escuras.
Eu podia
ter trancado a porta desse porão e picado a mula.
Mas, agora,
eu tinha de ir até o fim daquela história.
Respirei
fundo e comecei a descer os degraus.
Apertei o
interruptor e uma lâmpada fraca iluminou a escada e o porão parcialmente.
Escutei um
rosnado. Minto, não um rosnado, mas uma respiração irregular, audível, que
fazia lembrar um rosnado.
Continuei a
descer, pernas fraquejando, braços tremendo.
Já no final
da escada, outro corpo.
O pesar me
atingiu.
"Mieko!"
Era só um
monte de trapos quase oculto na escuridão. Arrastei para perto da luz no pé da
escada, atento aos cantos negros do porão. Olhei o cadáver. O espanto
sobrepôs-se à repulsa ao ver seu estado.
Era Mário!
Foi quando
a respiração da criatura tornou-se mais forte e os olhos em brasa surgiram no
canto mais escuro e afastado do aposento.
Caí para trás.
Apontei a arma, mas eu já me dava por perdido.
A coisa
falou. Sua voz era rouca, grave, vinha das profundezas de uma caverna úmida.
- Eu...
sinto... muito!
Depois, os
olhos sumiram e ouvi soluços grotescos vindos daquele canto.
Não
querendo acreditar na conclusão óbvia, forcei meus lábios a dizer o que eu mais
temia:
- Mieko?
A resposta,
igualmente temida, apareceu.
- Sim...
Sinto muito!
Agora, eu
pude reconhecer a voz.
Avistei
outro interruptor e, hesitante, acionei-o.
Fiquei
chocado.
Aquilo não
era um porão comum. Era uma espécie de masmorra. Havia grilhões fincados à
parede. O chão estava coberto de imundície. E, no canto, agachada, semblante
devastado, Mieko. Era só farrapos e os cabelos em desalinho como jamais os
vira. Sangue manchava suas vestes, seu rosto, principalmente ao redor dos
lábios. Isso trouxe-me a lembrança da criatura, de sua força e do que fizera.
Relutei em
aproximar-me.
E ela
prosseguiu:
- Minha
família sempre procurou me proteger do monstro dentro de mim. Quando eu era
criança, não entendia e chorava muito ao ser acorrentada. Na adolescência,
compreendia melhor, mas não o porquê dessa sina. Agora, já mulher, tornou-se
insuportável. Ademais, eu conheci você... Instintos e desejos afloraram. E
também tomaram conta da coisa. Quiseram detê-la. Ela reagiu... Eu reagi.
Soluçou.
- Você
quase me matou - falei, erguendo o braço ferido.
Desatou a
chorar.
- Lamento
muito! Lamento por seu pai... por minha família.... por você a quem eu menos
gostaria de ferir neste mundo. Mas, a minha intenção não foi matá-lo.
- Não?
- Não...
Sinto muito! Não sente dentro de si? Não escuta o chamado?
Franzi a
testa.
- Chamado?
Quem?
- O chamado
da noite. Não percebe... Escureceu.
- Como
ass...
- Olhe para
os seus braços.
Aquilo que
eu não queria ver tornou-se claro para mim.
Pelos
espessos surgiram. No lugar das unhas, garras negras. Minha voz, um rosnado.
- Sinto
muito! - gritou ela, a voz voltando a ficar rouca.
O sangue
ferveu em meu corpo. Uma dor insuportável tomou conta de mim. Todos os meus
ossos estavam se partindo, desmontando, sendo reconstruídos.
Quis
gritar, mas o que emiti foi um uivo longo e alucinado.
Então, era
isso.
Agora, aqui
estou com outra caminhonete, fugindo para os rincões deste país. Sem destino
prévio, sem parada fixa. Deixei tudo para trás. A cidade. A vida no campo. Meu
pai.
Não...
... tudo
não.
Ao meu
lado, Mieko.
Ela também
largou tudo o que conhecia. Deixou sua vida anterior de um modo terrível.
Vez ou
outra é consumida pelo remorso. Tento confortá-la como posso.
Somos só
nós dois agora.
Ela é o meu
mundo.
E eu sou o
dela.
Foi assim
que eu sonhei um dia.
Mas nunca,
de modo algum, dessa maneira.
Conto escrito por
Roberto Schima
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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Particularmente não curto mt narrativas "rurais", mas confesso que gostei da sua, principalmente o final. Conseguiu me surpreender. Parabéns, Roberto!
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