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Antologia Lua Negra | Capítulo 02 - A Escuridão tem Olhos de Fogo

Conto escrito por Roberto Schima
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Sinopse: Quando mergulhei naquelas sombras, eu vi. Gelou minha alma: um par de olhos brilhando como fogo. Eram vermelhos e grandes, pousados totalmente sobre mim. Onça? Num impulso, freei o veículo. Não poderia ter tomado pior decisão. A coisa saiu de trás das árvores e avançou. Não era onça. Ladrava, ululava e uivava. Por ser tão negra quanto a noite que me cercava, não tive ideia de sua aparência, mas, pela altura daqueles olhos demoníacos, era muito grande. Saltou e caiu com estrondo sobre o capô da caminhonete. Imediatamente passou a arranhá-lo. O barulho estridente no metal arrancou-me do torpor. Liguei a caminhonete e disparei. A criatura prosseguiu, tentando entrar. Agora, sob o luar, percebi que ela era toda coberta de pelos hirsutos. Assemelhava-se a um cão, porém, muito maior e deslocava-se sobre as patas traseiras. A palavra veio-me à mente por mais insana que fosse e àquela situação: "Lobisomem!"


A Escuridão Tem Olhos de Fogo
de Roberto Schima


            Tanto tempo se passou, mas eu ainda me recordo...
             Foi no interior paulista, na zona rural.
           Como eu sempre fazia, dirigia solitário pela estrada de chão batido entre a fazenda do Seu Gaudêncio e o sítio do Seu Yamada. Percorria essas e outras propriedades rurais, adquirindo produtos agrícolas que seriam revendidos posteriormente na mercearia de meu pai no centro da cidade. Havia anos ele percebera a ausência desse tipo de comércio. Predominavam as lojas de calçados e quinquilharias de R$1,99. Então, ele abrira o seu estabelecimento, "Os Filhos da Fruta". Embora carrancudo, às vezes ele tinha os seus bons momentos.
             Eu gostava do serviço.
           Já trabalhara na capital. Porém, sempre me sentira deslocado. Desistira do sonho da cidade grande e retornara às origens.
            Agora, podia voltar meus olhos para o azul do céu, suas nuvens de algodão doce, os morros e as colinas onde bois e vacas pastavam. Não havia prazos apertados a cumprir e nenhum chefe no meu cangote a encher o saco. Só ouvia o barulho cansado do motor e a pedrinhas que, de quando em vez, batiam na lataria.
          Mas via desgostoso a diminuição dos campos, das matas e das pastagens. Indústrias brotavam ali e acolá feito fungos, bem como o surgimento de condomínios de luxo.
            Nessa viagem em particular, eu adquirira uma boa quantidade de frutas e de milho do Seu Gaudêncio. Sua esposa, sempre meio sem graça, oferecera-me um pouco de gelatina. Estava boa, mas aguada. Pensava nas transações que faria com o pequeno senhor japonês, o Seu Yamada. Suas verduras e hortaliças eram as melhores da região, e, embora sempre fizesse um preço justo, negociar era um tipo de passatempo que ambos apreciávamos, regado a um copo de chá gelado feito por sua filha e uma boa conversa sobre pescarias e o Extremo Oriente.
            Foi cerca de uns vinte minutos após eu deixar a fazenda, sacolejando pela estrada esburacada, que tive a má surpresa de ter um dos pneus furado.
            - Raios parta!
           Era a primeira vez que isso me acontecia. Apanhei deveras para trocá-lo pelo estepe. Quando terminei, a tarde já findava. Pestanejei, pois os faróis estavam queimados. O pai vivia me cobrando para parar na oficina. Felizmente, a Lua surgiu e tingiu tudo num véu prateado.
            Era tarde e Seu Yamada teria que esperar para fecharmos negócio até o dia seguinte.
            De qualquer forma, o meu caminho de volta para casa seguia pela estradinha. Então, achei justo pelo menos avisá-lo do ocorrido. Ele apreciaria a cortesia e veria justificada a aparente indelicadeza de minha ausência.
            Seu Yamada era um bom sujeito, meio sorridente, meio tímido. O que eu mais admirava nele era a sua honestidade e a disciplina de sua família ao labutar no campo. Também chamava-me a atenção a sua filha caçula, Mieko. Minha nossa, era como estar diante de uma boneca de porcelana. Sua beleza exótica hipnotizava-me. Sua meiguice excitava-me mais do que o despudoramento das moças na capital.
            Eu não nutria esperança de ter uma chance com ela. Sua família era muito tradicional e, até onde sabia, sempre casavam-se dentro da própria colônia. Contudo, eu não podia deixar de tentar, sempre discretamente: um olhar ocasional, um sorriso, uma mesura. Qualquer coisa além disso seria considerado uma grosseria imperdoável. A maneira delicada e precisa como ela servia o chá não só era motivo de orgulho para o pai como deixava-me absolutamente maluco, especialmente quando a brisa batia em seus cabelos, o Sol iluminava sua pele e um suave perfume de flores silvestres chegava-me às narinas.
            Assim, ir até o sítio do Seu Yamada àquela hora não representava sacrifício algum.
            A noite chegara e não faltava muito até o desvio que me levaria a sua propriedade.
           Logo após uma curva, de cada lado da estrada, havia uma fileira de árvores robustas cujas copas entrelaçavam-se, formando uma espécie de túnel. Era bonito de se ver durante o dia, todavia, à noite, havia algo de sinistro na maneira como suas sombras tornavam a noite mais escura ainda.
            Meus pensamentos estavam presos às coisas imediatas, por isso, não me apercebi da mortalha de silêncio que caíra naquele local. Não fosse pelo motor da caminhonete, até o som de uma folha a cair seria audível.
            Quando mergulhei naquelas sombras, eu vi. Gelou minha alma: um par de olhos brilhando como fogo. Eram vermelhos e grandes, pousados totalmente sobre mim. Onça? Num impulso, freei o veículo. Não poderia ter tomado pior decisão. A coisa saiu de trás das árvores e avançou. Não era onça. Ladrava, ululava e uivava. Por ser tão negra quanto a noite que me cercava, não tive ideia de sua aparência, mas, pela altura daqueles olhos demoníacos, era muito grande. Saltou e caiu com estrondo sobre o capô da caminhonete. Imediatamente passou a arranhá-lo. O barulho estridente no metal arrancou-me do torpor. Liguei a caminhonete e disparei. A criatura prosseguiu, tentando entrar. Agora, sob o luar, percebi que ela era toda coberta de pelos hirsutos. Assemelhava-se a um cão, porém, muito maior e deslocava-se sobre as patas traseiras. A palavra veio-me à mente por mais insana que fosse e àquela situação: "Lobisomem!"
            Corri meio às cegas e feito louco pela estrada.
            As garras perfurarem o metal.
            - Não! - gritei.
            Atingi um trecho da estrada em pior estado. A velocidade somada às irregularidades do terreno, fizeram a caminhonete pular feito um potro selvagem.
            A criatura foi jogada para o lado.
            Fugi dali sem pensar em mais nada, só vendo o luar penetrar nas perfurações no teto.
            Um rastro de laranjas, abacates, mangas, bananas e espigas de milho ficou pelo caminho.
            Passei direto pelo desvio que daria para o sítio do Seu Yamada. Àquela altura, tudo o que importava era trancar-me em casa, aliviar a bexiga e recuperar-me do susto.
            "Os Filhos da Fruta" ficava no centro da cidade. Meu pai e eu, porém, morávamos na periferia, a um passo da zona rural. Segundo ele, não prestava morar perto ou no local de trabalho porque, por mais que se gostasse da atividade, a pessoa não se desligava do serviço. Agradeci-o por isso, caso contrário, teria urinado no jeans.
            A casa era pequena, contudo, o quintal era grande e abrigava três cães de rua adotados. Minha mãe falecera havia anos e, de vez em quando, vinha uma diarista cuidar da limpeza.
            Aos poucos, normalizei a respiração.
            Eu esperava encontrar aflição, consolo e compreensão.
            Tudo o que meu pai fez ao me ver entrar foi berrar sobre onde eu estivera até aquela hora e por que não fora no Seu Yamada com o qual acabara de falar ao telefone. Corri para o banheiro sem nada dizer, tomei uma ducha por um longo tempo.
            Mais calmo, fui jantar.
            O olhar de meu pai cruzou com o meu e narrei o ocorrido: o pneu furado, os faróis queimados - ele só ergueu uma das sobrancelhas numa censura muda -, o luar, o túnel de árvores e, finalmente, o monstro.
            Àquela altura, tudo o que eu esperava ouvir eram mais reprimendas por eu inventar tamanho disparate.
            Entretanto, meu pai franziu o cenho. Preparou um cigarro de palha, acendeu e deu longas baforadas. Por fim, contou-me.
            Havia questão de dois anos, ele tivera um encontro semelhante.
            Disse não se recordar a razão de estar na estrada a noite. Fingi desconhecer o "causo" que ele mantinha com a esposa do Seu Gaudêncio. Os faróis estavam em ordem, mas uma forte neblina atravessava o caminho. De repente, meu pai sentira algo pular na carroceria, uma coisa pesada. Olhara pelo retrovisor - talvez imaginando Seu Gaudêncio de garrucha na mão - e ficara aterrorizado. Descreveu-me um corpo enorme, coberto de pelos desgrenhados e, quando a criatura abaixara-se, os mesmos olhos rubros que eu testemunhara. Ao contrário de mim, porém, tivera raciocínio rápido e acelerara. O lobisomem ainda tentara se segurar na carroceria, mas a lateral do caminhão passara rente ao barranco e batera no ombro da criatura, arrancando-a do veículo.
            O velho ficou em silêncio algum tempo. Achei que terminara. Daí ele acrescentou, pensativo:
            - Quando fui na manhã seguinte até o Seu Yamada, vi que o filho dele, Mário, tinha uma tala no braço.
            - O que quer dizer com isso?
            - Que o Mário tinha uma tala no braço - respondeu impertinente. - A dedução fica por sua conta.
            O Seu Yamada e sua família sempre me pareceram boa gente. Eu gostava dos modos orientais, educados e comedidos, tão diferentes da grosseria ocidental.
            - São bons fornecedores - acrescentou meu pai. - Mas nunca percebeu como são estranhos?
            - "Estranhos"?
            - Tão reservados, como se guardassem segredos...
            "Reservados como o senhor para certas coisas?", pensei intimamente.
            - Eles são japoneses! - falei, pensando no olhar tímido de Mieko. - Todo japonês é quieto.
            Meu pai riu.
            - Você não conheceu o Paulo.
            Paulo era um sansei cujos avós aportaram em Santos no início do século passado.
            - Sei quem é. Mas esse é brasileiro. Já tem nossos maus costumes.
            - O que quer dizer?
            - Bebidas, falastrão, malandro... mulherengo.
            Se meu pai pretendeu retrucar, mudou de ideia.
            - Que seja. Só não fique mais à noite na estrada.
            - Com certeza.
            - E tire os olhos da filha do japonês!
            Eu não supunha ser tão transparente assim.
            Na manhã seguinte, fui até o sítio de Seu Yamada. Sentia-me nervoso.
            Seu Yamada recebeu-me como sempre, todo humildade e gentileza. Expliquei-lhe a razão de minha ausência no dia anterior: o pneu furado. Omiti o encontro que tivera.
            Enquanto acertávamos a compra de suas verduras, sempre frescas e sem agrotóxico, observei os arredores.
            Ele tinha somente dois filhos: Mieko e Mário. Tivera outros, mas morreram doentes ainda crianças ou bebês
            Mieko, segundo eu soube, ajudava a mãe nos deveres de casa.
            Mário apareceu pouco depois, acompanhado de outro oriental, talvez um primo. Conduzia uma carroça cheia dos produtos do sítio. Cumprimentou-me de olhar severo. Não gostava de mim, isso era patente. Eu nunca entendi o motivo, todavia, ante a advertência de meu pai, conclui ser eu, de fato, transparente.
            Fiquei frustrado por não ver Mieko. Ainda que eu não tivesse chance com ela, só de observá-la sentia-me bem o restante do dia.
            Por outro lado, reparei que o seu irmão mancava. Imediatamente, lembrei-me da história da tala e perguntei-me se poderia ser verdade. Seria coincidência ou Mário, enquanto lobisomem, ferira-se durante a queda da caminhonete? Dado o meu interesse por Mieko, seria essa a motivação de seu ataque? O outro homem ajudou-o a transportar as verduras e legumes da carroça para a carroceria da caminhonete.
            Paguei Seu Yamada, agradecendo pela compra.
            Eu estava prestes a partir quando ela surgiu.
            Mieko!
            Houve tensão no ar, tão palpável quanto à espera do trovão após o relâmpago.
            Mário capengou na direção da irmã. Falou rispidamente em japonês, de tal modo que eu não compreendesse. Mas o termo gaijin, repetido algumas vezes, foi bastante claro para mim.
            Ela encolheu-se.
            Trocamos olhares rapidamente e, num segundo louco, tive a convicção de que ela correspondia aos meus sentimentos. Contudo, no instante seguinte, retornou para dentro de casa e eu fiquei odiando o seu irmão em silêncio.
            Fechei negócio também com o Seu Gaudêncio. Pobre homem. Vi em seu olhar que ele ignorava completamente a infidelidade da esposa. Ela surgiu com o filho menor. Busquei no pequeno alguma semelhança comigo ou alguém de minha família. A mulher, nervosa, tratou de arrastá-lo dali. Não ganhei gelatina.
            Dramas demais em uma região tão pequena e pouco povoada. Receei quanto ao futuro e os desfechos que teriam.
            Retornei sem incidentes para a casa pela estradinha de chão batido.
            Entretanto, naquela noite, após o jantar, ouvimos os cães agitados. Latiam feito desesperados. Ganiam e corriam alvoroçados.
            Ladrão?
            Meu pai apanhou sua velha espingarda e eu, que não possuía arma, peguei um facão na cozinha.
            Se os grandes centros urbanos tornaram-se um inferno em se tratando de violência, o campo não ficara atrás. Quadrilhas invadiam propriedades rurais, levando tudo o que podiam, quando não destruíam toda a lavoura ou matavam o gado e as galinhas.
            Ele abriu a porta no exato momento em que ouvimos o rosnado.
            Não era dos cães.
            Arrepiei-me todo.
            Meu pai tratou de fechar a porta e passar a chave.
            Averiguamos as janelas e as outras portas. Elas nunca me pareceram tão frágeis.
            Os rosnados ficaram mais fortes. Já os latidos de nossos cães transformaram-se em choramingos e desapareceram. Grandes cães de guarda!
            A coisa adentrou em nossa soleira. Tábuas rangeram. Deu pancadas na parede, na janela, na porta, como se estivesse avaliando.
            Um fedor penetrante invadiu a sala. Cheiro de coisa molhada ou mofada.
            Meu pai apontou a espingarda, conforme os ouvidos diziam onde o monstro estava. O cano da arma tremia.
            Então, a coisa correu ao redor, batendo e arranhando.
            Podíamos sentir o tremor sob nossos pés.
            Suando, meu pai não sabia ao certo onde apontar e até tive medo de ficar diante do "fogo amigo". Quanto a mim, estava paralisado de medo. Quem era eu para censurar os cachorros? Quisera estar no lugar deles! Como combater aquilo? Não tinha que ser balas de prata ou era só folclore do cinema?
            Finalmente, a coisa deu uma fortíssima patada na porta da frente.
            Uivou bem alto e silenciou.
            Meu pai atirou naquela direção e abriu um buraco na porta. Isso não me deixou nem um pouco seguro. Arranjei uma tábua, martelo e pregos para tapar aquilo. Aproximei-me do buraco e posicionava o pedaço de madeira. Foi quando uma garra peluda surgiu, agarrou meu pulso e puxou. A força foi tremenda e, se quisesse, poderia arrancar-me o braço.
            Gritei desesperadamente, preso no buraco até o ombro.
            Senti a mordida em seguida e berrei a plenos pulmões, enlouquecido pela dor.
            Meu pai correu até junto a mim, encostou o cano da arma na porta, rente a minha cintura, e atirou outra vez.
            Ouvimos um longo ganido.
            Meu braço ficou livre e puxei-o de volta, horrorizado diante da carne dilacerada e o sangue que vertia. Meu pai, com o risco da própria vida, destrancou a porta e levou-me até a caminhonete. No pronto-socorro contou uma história sobre um cachorro do mato que não convenceu ninguém. Deram-me alguns pontos, injeções e dispensaram-nos. Retornamos madrugada adentro. Estava tudo calmo, quieto demais. Antes de sumir, a coisa matara nossos cães.
            Observamos os dois buracos na porta. Entre eles, havia a marca escura de uma mão enorme, resultado da patada dada pela criatura.
            Trancamo-nos e o velho pregou as tábuas nos buracos.
            Na manhã seguinte, enquanto eu estava acamado, ele saiu.
            Percebi sua ausência ao ver que a caminhonete não estava no lugar. Encontrei um bilhete. Iria tirar satisfações com o Seu Yamada e resolver aquilo de uma vez por todas.
            Pensei nele.
            Pensei em Mieko.
            Pensei no Seu Yamada.
            Evitei pensar no tal de Mário.
            Embora eu estivesse fraco e sentisse muita dor, precisava alcançá-lo. Não tínhamos cavalo, mas havia a minha bicicleta, trazida da capital.
            Foi a corrida de um insano atrás da insanidade. Cada sacolejo, trazia-me ondas de dor. Eu mal podia tocar o guidão com a mão do braço machucado. Só me dei conta das lágrimas quando não consegui mais enxergar. Parei, limpei os olhos na camisa, cuspi a poeira, descansei para retomar o fôlego e conferi o machucado. Retomei o caminho.
           Percorrer os sítios e as fazendas de caminhonete pelas estradas poeirentas era lento devido as irregularidades do caminho e as muitas curvas, subidas e descidas. O que dizer de alguém ferido em uma bicicleta?
            Só cheguei quando o Sol estava a um dedo de tocar o horizonte.
      A primeira coisa que chamou a minha atenção quando cheguei ao sítio foi a caminhonete, estacionada ao lado da casa, a meio caminho do morro; a segunda - e fez um calafrio percorrer a minha nuca -, foi a quietude.
            Ofegante, encostei a bicicleta na caminhonete.
            Onde estava todo mundo?
            - Pai! - chamei. - Seu Yamada!
            Quase ouvi ecos de minha voz.
            Subi no alpendre e bati na porta.
            - Seu Yamada!... Mieko!
            Ainda nada.
            Olhei os arredores. Não vi ninguém nas plantações. Girei a maçaneta.
            O cheiro atingiu-me de imediato. Aquele fedor penetrante. O odor exalado pela fera ao rondar minha casa. Tentei achar algo que pudesse servir como arma. Apanhei uma pá. Era-me doloroso segurá-la. Entrei.
            A cozinha estava toda revirada. Louças quebradas, cadeiras tombadas, panelas amassadas. A mesa fora partida ao meio. Um porta-louça tombara sobre o primeiro corpo: Seu Yamada. Pobre homem. O crânio fora rachado. O terror e o suor tomavam conta de mim.
            Num corredor, encontrei o corpo da esposa de Seu Yamada. Não vi ferimentos. Morrera do coração, conclui. No alto de uma escada que dava acesso a uma espécie de porão, achei o corpo de meu pai. Cai de joelhos. Suas costas e sua garganta foram estraçalhadas. A espingarda estava caída num canto. Peguei-a.
            O fedor chegava mais forte de lá debaixo, no porão às escuras.
            Eu podia ter trancado a porta desse porão e picado a mula.
            Mas, agora, eu tinha de ir até o fim daquela história.
            Respirei fundo e comecei a descer os degraus.
            Apertei o interruptor e uma lâmpada fraca iluminou a escada e o porão parcialmente.
            Escutei um rosnado. Minto, não um rosnado, mas uma respiração irregular, audível, que fazia lembrar um rosnado.
            Continuei a descer, pernas fraquejando, braços tremendo.
            Já no final da escada, outro corpo.
            O pesar me atingiu.
            "Mieko!"
            Era só um monte de trapos quase oculto na escuridão. Arrastei para perto da luz no pé da escada, atento aos cantos negros do porão. Olhei o cadáver. O espanto sobrepôs-se à repulsa ao ver seu estado.
            Era Mário!
            Foi quando a respiração da criatura tornou-se mais forte e os olhos em brasa surgiram no canto mais escuro e afastado do aposento.
            Caí para trás. Apontei a arma, mas eu já me dava por perdido.
            A coisa falou. Sua voz era rouca, grave, vinha das profundezas de uma caverna úmida.
            - Eu... sinto... muito!
            Depois, os olhos sumiram e ouvi soluços grotescos vindos daquele canto.
            Não querendo acreditar na conclusão óbvia, forcei meus lábios a dizer o que eu mais temia:
            - Mieko?
            A resposta, igualmente temida, apareceu.
            - Sim... Sinto muito!
            Agora, eu pude reconhecer a voz.
            Avistei outro interruptor e, hesitante, acionei-o.
            Fiquei chocado.
            Aquilo não era um porão comum. Era uma espécie de masmorra. Havia grilhões fincados à parede. O chão estava coberto de imundície. E, no canto, agachada, semblante devastado, Mieko. Era só farrapos e os cabelos em desalinho como jamais os vira. Sangue manchava suas vestes, seu rosto, principalmente ao redor dos lábios. Isso trouxe-me a lembrança da criatura, de sua força e do que fizera.
            Relutei em aproximar-me.
            E ela prosseguiu:
            - Minha família sempre procurou me proteger do monstro dentro de mim. Quando eu era criança, não entendia e chorava muito ao ser acorrentada. Na adolescência, compreendia melhor, mas não o porquê dessa sina. Agora, já mulher, tornou-se insuportável. Ademais, eu conheci você... Instintos e desejos afloraram. E também tomaram conta da coisa. Quiseram detê-la. Ela reagiu... Eu reagi.
            Soluçou.
            - Você quase me matou - falei, erguendo o braço ferido.
            Desatou a chorar.
            - Lamento muito! Lamento por seu pai... por minha família.... por você a quem eu menos gostaria de ferir neste mundo. Mas, a minha intenção não foi matá-lo.
            - Não?
            - Não... Sinto muito! Não sente dentro de si? Não escuta o chamado?
            Franzi a testa.
            - Chamado? Quem?
            - O chamado da noite. Não percebe... Escureceu.
            - Como ass...
            - Olhe para os seus braços.
            Aquilo que eu não queria ver tornou-se claro para mim.
         Pelos espessos surgiram. No lugar das unhas, garras negras. Minha voz, um rosnado.
            - Sinto muito! - gritou ela, a voz voltando a ficar rouca.
            O sangue ferveu em meu corpo. Uma dor insuportável tomou conta de mim. Todos os meus ossos estavam se partindo, desmontando, sendo reconstruídos.
            Quis gritar, mas o que emiti foi um uivo longo e alucinado.
            Então, era isso.
            Agora, aqui estou com outra caminhonete, fugindo para os rincões deste país. Sem destino prévio, sem parada fixa. Deixei tudo para trás. A cidade. A vida no campo. Meu pai.
            Não...
            ... tudo não.
            Ao meu lado, Mieko.
            Ela também largou tudo o que conhecia. Deixou sua vida anterior de um modo terrível.
            Vez ou outra é consumida pelo remorso. Tento confortá-la como posso.
            Somos só nós dois agora.
            Ela é o meu mundo.
            E eu sou o dela.
            Foi assim que eu sonhei um dia.
            Mas nunca, de modo algum, dessa maneira.



Conto escrito por
Roberto Schima

Produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


REALIZAÇÃO



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Sinopse: Jovens se reúnem ao redor da fogueira para contar histórias de terror, nada de novo sob a luz da lua, se não fosse a história real de um duque dono de um capitania hereditária, cujos feitos amaldiçoam sua cidade natal até hoje. 




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Comentários:

1 comentários:

  1. Particularmente não curto mt narrativas "rurais", mas confesso que gostei da sua, principalmente o final. Conseguiu me surpreender. Parabéns, Roberto!

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