Antologia Lua Negra | Capítulo 12: Rokitansky - WebTV - Compartilhar leitura está em nosso DNA

O que Procura?

HOT 3!

Antologia Lua Negra | Capítulo 12: Rokitansky

Conto escrito por Davi Busquet
Compartilhe:






Sinopse: Sob o testemunho do luar, mais uma necropsia se inicia, sem que a jovem Suzy imagine tudo que irá experimentar nessa noite de agonia e tortura regida pelo sinistro médico patologista Carlos.


Rokitansky
de Davi Busquet



Com expectativa erótica e juvenil, Carlos para em frente à porta, já destrancada. Sua mão direita repousa sobre a maçaneta, enquanto a esquerda, espalmada contra a madeira fria pintada de branco, lentamente a empurra, revelando a já tão conhecida sala de necropsia onde trabalha nos últimos 20 anos, no Hospital Gafrée e Guinle. Entretanto, por mais que aquele ato tenha se repetido incontáveis vezes durante essas duas décadas, nada lhe causa mais excitação e satisfação que esses poucos segundos antes do abrir da pesada e velha porta de madeira. O iniciar de mais um ritual, o completar de outra sina, ele sempre mentaliza, momentos antes da revelação do interior da sala.
Sob a luz prateada da lua, que penetra solidamente através do janelão no alto da parede oposta, a grande mesa de aço ao centro é o único objeto então visível, tal como o astro da peça destacado pelos holofotes do teatro onde toda a trama irá se desenrolar. Instintivamente Carlos desliza os dedos ao longo da parede ao lado do batente da porta. Encontra, sem ver, o antigo interruptor preto de alavanca e o aciona, acendendo as luzes incandescentes no alto do elevado teto de 6 metros de altura. O brilho amarelo-leitoso inunda o ambiente, fazendo surgir os detalhes e objetos ao redor da mesa de procedimentos em um passe de mágica.
Toda vez era assim: ainda parado à porta, Carlos contemplava cada detalhe de seu local de trabalho como se fosse a primeira vez, tal qual um maestro cumprimentando com a cabeça cada integrante de sua orquestra, pouco antes de iniciar a regência. As paredes lisas e azulejadas, apesar da idade, conservavam-se impecavelmente brancas. À direita, na área de análise, laudos e estudos, repousa a escrivaninha de Carlos, sempre cheia de papéis, prontuários e compêndios médicos, que transbordam das prateleiras logo acima, ao lado do par de negatoscópios presos à parede.
Em grandes estantes, gavetas e armários de madeira, dispostos abaixo da única janela da sala, ocupando quase a totalidade da parede oposta à porta, o instrumental de trabalho permanece guardado. Ao lado da entrada, em quantidades que já quase impedem a passagem, diversos barris plásticos de 100 e 200 litros, cheios de formol, guardam tanto o líquido precioso puro, quanto as misturas e suas peças anatômicas conservadas — a bela e científica expressão para "pedaços de corpos". E na parede à esquerda, a grande joia da orquestra: o poderoso e secular refrigerador e suas 3 fileiras e 3 colunas de gavetões, todos habitados.
Carlos finalmente adentra, trancando a porta atrás de si. O ar frio do interior da sala o agrada, atiçando-o para a tarefa que o espera. D.ª Marísia, atualmente residindo no gavetão IV, aguarda o desfecho de sua já desencarnada vida. Pobre D.ª Marísia, o médico pensa, enquanto relembra do caso, dispensando a leitura do prontuário sobre a escrivaninha: acometida de grande lesão hepática, provavelmente de causa medicamentosa, ainda agonizou meses internada no CTI, onde veio a falecer, sendo então transferida para o necrotério. Ali seu caso será melhor estudado mediante a biópsia à qual será submetida em alguns minutos. O médico age rapidamente, conduzindo a maca de transporte até o gavetão abaixo e à esquerda.
É claro, ele bem sabe, aquela história cuidadosamente relatada nos papéis, em amplo jargão médico, nem de longe retrata a realidade dos fatos. Não precisou de mais que alguns minutos de observação da filha de D.ª Marísia — uma jovem bonita, loira e esguia — para entender a verdade. A lesão no fígado da simpática senhora fora causada por meses de envenenamento por hiper-dosagens dos próprios remédios, estes sempre ajustados a cada visita de seus médicos, mas secretamente alterados por sua cínica e dissimulada filha. Quando, supostamente às pressas, fora levada ao hospital, já era tarde demais: o dano tornara-se irreversível e, portanto, a morte seria uma questão de tempo. Tempo esse que a jovem Suzy negou à mãe, abandonando-a à solidão de um leito de hospital e a visitando apenas no dia em que fora notificada do falecer iminente da mãe. Quando perguntada sobre a manutenção do suporte de vida, bradou incisivamente e sem cerimônias: desliguem!
Carlos ainda a viu uma última vez, do lado de fora do CTI, andando inquieta de um lado ao outro do corredor, tagarelando com o advogado no celular e discutindo os detalhes acerca da herança da falecida, antes mesmo que o corpo esfriasse sobre os lençóis de seu leito na sala ao lado. Ora, ora, ele então pensou, parece que teremos algo para resolver durante a necropsia esta noite. E lá estava ele, na alva e fria sala, enquanto longe dali, a bela Suzy e seus amigos bebiam, riam e se divertiam em um bar da cidade, comemorando antecipadamente o resultado positivo de seus planos e a agradável notícia dada mais cedo por seu advogado.
Em um deslizar suave de rolamentos sobre o par de trilhos telescópicos, o gavetão se abriu, fazendo emanar de seu interior a névoa gélida e branca, que cascateou em direção ao chão em ondas volumosas e vibrantes, como se fosse parte da vida que terminava de se esvair na atmosfera da sala fúnebre. Em seu interior, silente e contemplativa, D.ª Marísia mirava o teto acima de si, em eterna expectativa de uma resolução do médico que agora a carregava. Forte e saudável, Carlos nunca precisara antes de um auxiliar que o ajudasse a transportar os corpos para a maca e dali para a mesa de procedimentos. Em um minuto, o gavetão já estava novamente fechado e D.ª Marísia deitada sobre a superfície brilhante e prateada como a lua. Lá em cima, alinhado à grande janela, o satélite natural era a única testemunha do patologista.
No bar, Suzane aconchegava-se ao amigo, quase sentando em seu colo, um dos braços envolvendo-lhe o pescoço e uma mão em sua coxa, fazendo carícias insinuativas. Os rostos, intimamente próximos, exalam um no outro seus hálitos alcoólicos, denotando excitação e animação: evidências de uma felicidade incompatível com o luto. Os copos trocam de mãos, indo e voltando, enchendo-se e esvaziando-se, enquanto gargalhadas e gracejos são ouvidos no ambiente da mesa cheia de conhecidos.
No necrotério, a bancada auxiliar — anexa à mesa de procedimentos — já expõe o instrumental categoricamente colocado ali por Carlos: as serras de Mathieu e de Weiss, a cizalha, gancho e pinça para osso, pinças anatômica e dente-de-rato, tesouras enterótomo, fina-reta e curva, bisturi de Esmarch, faca Margaref, dentre outros. Em um movimento horizontal, dedos esticados e costas da mão voltadas para os instrumentos, ele os apresentou à sua paciente. Se ela ainda pudesse falar, elogiaria a primazia que era aquele reluzir mágico do aço inoxidável sob o luar. Executou as incisões bimastoidea e xinfo-púbica, dando início ao processo.
Por breves e insignificantes momentos, que evaporavam em seguida numa nuvem de álcool, Suzy relembrou do elaborado plano, que culminou naquela alegre comemoração. Foram tantas tentativas de reaproximar-se de sua mãe, histórias elaboradas e sentimentos forjados, até que D.ª Marísia a deixasse voltar para casa, que ela chegou perto de desistir. Mas o prêmio compensaria a corrida: regressar ao lar — apesar da partida atribulada para ir fazer o que bem entendesse —, cuidar da própria mãe e seus medicamentos, comprar doses extras do amigo farmacêutico, envenenar seu fígado, assistir seu piorar gradativo e, enfim, herdar tudo após a morte trágica da mãe.
Pronto!, Carlos mentalmente deu por encerrada a biópsia, olhando para o pequeno pedaço de fígado doente boiando no interior do frasco de vidro cheio de formol. Atarraxou a tampa metálica e colocou a amostra de lado. Concentrou-se um minuto a mais, olhando para o cadáver aberto do pescoço ao púbis e a infinidade de órgãos expostos sob a luz amarela e quente dos globos incandescentes lá em cima. Os dedos das mãos cruzados uns sobre os outros descansavam encostados no capote sujo de sangue e fluidos, seus olhos percorriam a nudez cadavérica com introspecção e intelectualidade. Chegou finalmente a uma decisão. Retirou do bolso o pequeno tubo de vidro — era opaco e riscado, fechado por uma rolha de cortiça ressecada e velha, em cujo topo estava entalhado o símbolo profano —, desarrolhou-o e derramou uma pequena e negra gota sobre o coração acinzentado do cadáver de D.ª Marísia.
Suzy sentiu subitamente seu coração acelerar. Não fora um palpitar emocionado ou uma exaltação decorrente das carícias sexuais trocadas sob a mesa com seu amigo farmacêutico, mas sim algo tenso, doloroso, latejante, ao ponto de lhe causar pontadas na nuca. Sob o olhar curioso do parceiro, ela interrompeu o toque saliente em sua genitália, endurecendo as feições e assumindo um tom preocupado. Nem mesmo ouviu as indagações e piadas dos amigos, quando se levantou para ir ao banheiro do bar, acidentalmente batendo a cabeça na lâmpada amarela de filamento de carbono que pendia sobre si, a pouco mais de meio metro do tampo da mesa.
Um dos globos luminosos da sala balançou, mas Carlos já esperava por isso, deixando escapar um leve sorriso no canto dos lábios: a magia havia começado. Onde agora?, pensou, erguendo o bisturi acima da cavidade abdominal aberta de D.ª Marísia. O rim, claro! Como pude esquecer? E com uma das mãos afastou intestinos e outros órgãos, acessando a superfície vermelha e lisa da cápsula renal, a qual lacerou numa rápida e profunda incisão.
No banheiro do bar, sozinha em frente ao espelho, suada e ofegante, Suzy sentia o coração acelerar dolorosamente. Enquanto molhava o rosto, perguntava-se o porquê daquele mal-súbito. Gritou de maneira contida e agonizante, levando a mão às costas, sentindo, ao mesmo tempo, uma forte dor e uma vontade de urinar incontrolável. Antes mesmo de chegar a um dos sanitários, já urinava-se nas próprias calças, deixando uma grande mancha ensanguentada no tecido. Pouco antes de se despir, ainda pensou em uma menstruação fora de época, mas ao ver o sangue vivo e abundante descer e tingir de vermelho a água da privada, soube que algo não estava certo.
O sangue, igualmente vivo, brotou do rim de D.ª Marísia. Não era seu sangue cadavérico, opaco e coagulado, mas o de sua filha, que agora também vertia para o interior do corpo enfeitiçado pela poção de Carlos. O vínculo estava feito, o castigo só havia começado. Enfiou uma das pinças no ânus do cadáver, até que sua ponta atingisse o intestino lá dentro. Fisgou-o e puxou-o para fora através do esfíncter. Suzy, sentada no sanitário, ouviu e sentiu quando, numa evacuação súbita, seu reto e parte do intestino grosso sofreram um prolapso, caindo pesadamente sobre a água vermelha no fundo da privada.
Tantos meses sozinha, entubada, sem poder falar, gritar ou pedir ajuda, Carlos dessa vez disse em voz alta, conforme dava início ao próximo movimento. Posicionou a pinça homeostática na traqueia de D.ª Marísia e a apertou fortemente, até que os dentes do instrumento travassem, bloqueando a luz do tubo traqueal, exceto por um diminuto canal. Suzy sufocou, tentou inspirar e gritar, mas o ar era insuficiente: seus pulmões espasmaram. Sobre a mesa de procedimentos, o corpo de D.ª Marísia moveu-se discretamente, balançando, quando os pulmões acinzentados começaram a saltitar em fortes espasmos, análogos aos que sua filha sofria naquele exato momento.
Suzy se levantou e abriu a porta do reservado, arrastando atrás de si os fétidos intestinos, para então tentar sair do banheiro e buscar a ajuda, já que sua voz ocluída era incapaz de chamar a atenção de qualquer um fora dali. Carlos apertou as alças da tesoura enterótomo, cortando um, depois o outro tendão calcâneo do cadáver, fazendo com que Suzy caísse no chão, dessa vez incapaz de gritar. Ela apertava os calcanhares. Uma dor excruciante subia por suas pernas, juntando-se a todo o resto que a torturava.
A lua abandonou a superfície transparente da janela: era hora de terminar. Empunhando a serra de Weiss contra o pescoço de D.ª Marísia, o patologista empurrou e puxou a ferramenta repetidas vezes, ressoando pela sala a mastigação metálica dos dentes da serra contra a carne e os ossos do defunto, antes de todos os ligamentos, músculos, tendões e a coluna vertebral se romperem, decapitando o cadáver. Assim como ocorrera na mesa, Suzy sentiu os ombros e o peito serem aquecidos pelo sangue pegajoso que brotava de suas veias e artérias no pescoço. Em um último momento, antes de sua medula espinhal cervical ser seccionada, justo quando a pinça homeostática soltou do cadáver de sua mãe, ela recobrou o fôlego para um único e desesperado grito final.
Não que aquilo fosse o fim: este ainda demoraria mais alguns meses para vir. Tetraplégica, muda e dilacerada como estava, ficaria ainda muito tempo sobre um leito de hospital, impossibilitada de se comunicar, mas sentindo toda a desgraça que era apodrecer em vida, esquecida em uma cama suja e desconfortável. E quando sua hora chegasse, era sobre a fria mesa de aço que jazeria, servindo ao propósito do sinistro patologista e seu frasco macabro de vudu. Além do mais, ainda havia dois irmãos e seu débito a ser pago: a hora de Dan e Chris com certeza viria.
Obrigado, D.ª Marísia, pode descansar agora, e que Deus a tenha, Carlos disse baixinho, enquanto beijava a testa do cadáver, pouco antes de remendá-la e voltá-la para o frio gavetão que a aguardava. O encerrar do ritual, a punição do transgressor.




Conto escrito por
Davi Busquet

Produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


REALIZAÇÃO

""

Copyright 
© 2020 - WebTV
www.redewtv.com
Todos os direitos reservados
Proibida a cópia ou a reprodução




Sinopse: Homem em estado terminal, portador de uma ancestral maldição, precisa passar seu espírito para outro corpo, para continuar seu legado. 


Compartilhe:

18

Antologia

Antologia Lua Negra

Episódios da Antologia Lua Negra

No Ar

Comentários:

0 comentários: