Sinopse: Sob o testemunho do luar, mais uma necropsia se inicia, sem que a jovem Suzy imagine tudo que irá experimentar nessa noite de agonia e tortura regida pelo sinistro médico patologista Carlos.
Rokitansky
de Davi Busquet
Com expectativa erótica e juvenil, Carlos para em frente à
porta, já destrancada. Sua mão direita repousa sobre a maçaneta, enquanto a
esquerda, espalmada contra a madeira fria pintada de branco, lentamente a
empurra, revelando a já tão conhecida sala de necropsia onde trabalha nos
últimos 20 anos, no Hospital Gafrée e Guinle. Entretanto, por mais que aquele
ato tenha se repetido incontáveis vezes durante essas duas décadas, nada lhe
causa mais excitação e satisfação que esses poucos segundos antes do abrir da
pesada e velha porta de madeira. O
iniciar de mais um ritual, o completar de outra sina, ele sempre mentaliza,
momentos antes da revelação do interior da sala.
Sob a luz prateada da lua, que penetra solidamente através
do janelão no alto da parede oposta, a grande mesa de aço ao centro é o único
objeto então visível, tal como o astro da peça destacado pelos holofotes do
teatro onde toda a trama irá se desenrolar. Instintivamente Carlos desliza os
dedos ao longo da parede ao lado do batente da porta. Encontra, sem ver, o
antigo interruptor preto de alavanca e o aciona, acendendo as luzes
incandescentes no alto do elevado teto de 6 metros de altura. O brilho amarelo-leitoso
inunda o ambiente, fazendo surgir os detalhes e objetos ao redor da mesa de
procedimentos em um passe de mágica.
Toda vez era assim: ainda parado à porta, Carlos
contemplava cada detalhe de seu local de trabalho como se fosse a primeira vez,
tal qual um maestro cumprimentando com a cabeça cada integrante de sua
orquestra, pouco antes de iniciar a regência. As paredes lisas e azulejadas,
apesar da idade, conservavam-se impecavelmente brancas. À direita, na área de
análise, laudos e estudos, repousa a escrivaninha de Carlos, sempre cheia de
papéis, prontuários e compêndios médicos, que transbordam das prateleiras logo
acima, ao lado do par de negatoscópios presos à parede.
Em grandes estantes, gavetas e armários de madeira,
dispostos abaixo da única janela da sala, ocupando quase a totalidade da parede
oposta à porta, o instrumental de trabalho permanece guardado. Ao lado da
entrada, em quantidades que já quase impedem a passagem, diversos barris
plásticos de 100 e 200 litros, cheios de formol, guardam tanto o líquido
precioso puro, quanto as misturas e suas peças anatômicas conservadas — a bela
e científica expressão para "pedaços de corpos". E na parede à
esquerda, a grande joia da orquestra: o poderoso
e secular refrigerador e suas 3 fileiras e 3 colunas de gavetões, todos
habitados.
Carlos finalmente adentra, trancando a porta atrás de si. O
ar frio do interior da sala o agrada, atiçando-o para a tarefa que o espera. D.ª
Marísia, atualmente residindo no gavetão IV, aguarda o desfecho de sua já
desencarnada vida. Pobre D.ª Marísia,
o médico pensa, enquanto relembra do caso, dispensando a leitura do prontuário
sobre a escrivaninha: acometida de grande lesão hepática, provavelmente de
causa medicamentosa, ainda agonizou meses internada no CTI, onde veio a
falecer, sendo então transferida para o necrotério. Ali seu caso será melhor
estudado mediante a biópsia à qual será submetida em alguns minutos. O médico
age rapidamente, conduzindo a maca de transporte até o gavetão abaixo e à
esquerda.
É claro, ele bem sabe, aquela história cuidadosamente
relatada nos papéis, em amplo jargão médico, nem de longe retrata a realidade
dos fatos. Não precisou de mais que alguns minutos de observação da filha de
D.ª Marísia — uma jovem bonita, loira e esguia — para entender a verdade. A
lesão no fígado da simpática senhora fora causada por meses de envenenamento
por hiper-dosagens dos próprios remédios, estes sempre ajustados a cada visita
de seus médicos, mas secretamente alterados por sua cínica e dissimulada filha.
Quando, supostamente às pressas, fora levada ao hospital, já era tarde demais:
o dano tornara-se irreversível e, portanto, a morte seria uma questão de tempo.
Tempo esse que a jovem Suzy negou à mãe, abandonando-a à solidão de um leito de
hospital e a visitando apenas no dia em que fora notificada do falecer iminente
da mãe. Quando perguntada sobre a manutenção do suporte de vida, bradou
incisivamente e sem cerimônias: desliguem!
Carlos ainda a viu uma última vez, do lado de fora do CTI,
andando inquieta de um lado ao outro do corredor, tagarelando com o advogado no
celular e discutindo os detalhes acerca da herança da falecida, antes mesmo que
o corpo esfriasse sobre os lençóis de seu leito na sala ao lado. Ora, ora, ele então pensou, parece que teremos algo para resolver
durante a necropsia esta noite. E lá estava ele, na alva e fria sala,
enquanto longe dali, a bela Suzy e seus amigos bebiam, riam e se divertiam em
um bar da cidade, comemorando antecipadamente o resultado positivo de seus
planos e a agradável notícia dada mais cedo por seu advogado.
Em um deslizar suave de rolamentos sobre o par de trilhos
telescópicos, o gavetão se abriu, fazendo emanar de seu interior a névoa gélida
e branca, que cascateou em direção ao chão em ondas volumosas e vibrantes, como
se fosse parte da vida que terminava de se esvair na atmosfera da sala fúnebre.
Em seu interior, silente e contemplativa, D.ª Marísia mirava o teto acima de
si, em eterna expectativa de uma resolução do médico que agora a carregava.
Forte e saudável, Carlos nunca precisara antes de um auxiliar que o ajudasse a
transportar os corpos para a maca e dali para a mesa de procedimentos. Em um
minuto, o gavetão já estava novamente fechado e D.ª Marísia deitada sobre a
superfície brilhante e prateada como a lua. Lá em cima, alinhado à grande
janela, o satélite natural era a única testemunha do patologista.
No bar, Suzane aconchegava-se ao amigo, quase sentando em
seu colo, um dos braços envolvendo-lhe o pescoço e uma mão em sua coxa, fazendo
carícias insinuativas. Os rostos, intimamente próximos, exalam um no outro seus
hálitos alcoólicos, denotando excitação e animação: evidências de uma
felicidade incompatível com o luto. Os copos trocam de mãos, indo e voltando,
enchendo-se e esvaziando-se, enquanto gargalhadas e gracejos são ouvidos no ambiente
da mesa cheia de conhecidos.
No necrotério, a bancada auxiliar — anexa à mesa de
procedimentos — já expõe o instrumental categoricamente colocado ali por
Carlos: as serras de Mathieu e de Weiss, a cizalha, gancho e pinça para osso,
pinças anatômica e dente-de-rato, tesouras enterótomo, fina-reta e curva,
bisturi de Esmarch, faca Margaref, dentre outros. Em um movimento horizontal,
dedos esticados e costas da mão voltadas para os instrumentos, ele os
apresentou à sua paciente. Se ela ainda pudesse falar, elogiaria a primazia que
era aquele reluzir mágico do aço inoxidável sob o luar. Executou as incisões
bimastoidea e xinfo-púbica, dando início ao processo.
Por breves e insignificantes momentos, que evaporavam em
seguida numa nuvem de álcool, Suzy relembrou do elaborado plano, que culminou
naquela alegre comemoração. Foram tantas tentativas de reaproximar-se de sua
mãe, histórias elaboradas e sentimentos forjados, até que D.ª Marísia a
deixasse voltar para casa, que ela chegou perto de desistir. Mas o prêmio
compensaria a corrida: regressar ao lar — apesar da partida atribulada para ir
fazer o que bem entendesse —, cuidar da própria mãe e seus medicamentos, comprar
doses extras do amigo farmacêutico, envenenar seu fígado, assistir seu piorar
gradativo e, enfim, herdar tudo após a morte trágica da mãe.
Pronto!,
Carlos mentalmente deu por encerrada a biópsia, olhando para o pequeno pedaço de
fígado doente boiando no interior do frasco de vidro cheio de formol. Atarraxou
a tampa metálica e colocou a amostra de lado. Concentrou-se um minuto a mais,
olhando para o cadáver aberto do pescoço ao púbis e a infinidade de órgãos
expostos sob a luz amarela e quente dos globos incandescentes lá em cima. Os
dedos das mãos cruzados uns sobre os outros descansavam encostados no capote
sujo de sangue e fluidos, seus olhos percorriam a nudez cadavérica com
introspecção e intelectualidade. Chegou finalmente a uma decisão. Retirou do
bolso o pequeno tubo de vidro — era opaco e riscado, fechado por uma rolha de
cortiça ressecada e velha, em cujo topo estava entalhado o símbolo profano —,
desarrolhou-o e derramou uma pequena e negra gota sobre o coração acinzentado
do cadáver de D.ª Marísia.
Suzy sentiu subitamente seu coração acelerar. Não fora um
palpitar emocionado ou uma exaltação decorrente das carícias sexuais trocadas
sob a mesa com seu amigo farmacêutico, mas sim algo tenso, doloroso, latejante,
ao ponto de lhe causar pontadas na nuca. Sob o olhar curioso do parceiro, ela
interrompeu o toque saliente em sua genitália, endurecendo as feições e
assumindo um tom preocupado. Nem mesmo ouviu as indagações e piadas dos amigos,
quando se levantou para ir ao banheiro do bar, acidentalmente batendo a cabeça
na lâmpada amarela de filamento de carbono que pendia sobre si, a pouco mais de
meio metro do tampo da mesa.
Um dos globos luminosos da sala balançou, mas Carlos já
esperava por isso, deixando escapar um leve sorriso no canto dos lábios: a
magia havia começado. Onde agora?, pensou,
erguendo o bisturi acima da cavidade abdominal aberta de D.ª Marísia. O rim, claro! Como pude esquecer? E com
uma das mãos afastou intestinos e outros órgãos, acessando a superfície
vermelha e lisa da cápsula renal, a qual lacerou numa rápida e profunda
incisão.
No banheiro do bar, sozinha em frente ao espelho, suada e
ofegante, Suzy sentia o coração acelerar dolorosamente. Enquanto molhava o
rosto, perguntava-se o porquê daquele mal-súbito. Gritou de maneira contida e
agonizante, levando a mão às costas, sentindo, ao mesmo tempo, uma forte dor e
uma vontade de urinar incontrolável. Antes mesmo de chegar a um dos sanitários,
já urinava-se nas próprias calças, deixando uma grande mancha ensanguentada no
tecido. Pouco antes de se despir, ainda pensou em uma menstruação fora de
época, mas ao ver o sangue vivo e abundante descer e tingir de vermelho a água
da privada, soube que algo não estava certo.
O sangue, igualmente vivo, brotou do rim de D.ª Marísia.
Não era seu sangue cadavérico, opaco e coagulado, mas o de sua filha, que agora
também vertia para o interior do corpo enfeitiçado pela poção de Carlos. O
vínculo estava feito, o castigo só havia começado. Enfiou uma das pinças no
ânus do cadáver, até que sua ponta atingisse o intestino lá dentro. Fisgou-o e
puxou-o para fora através do esfíncter. Suzy, sentada no sanitário, ouviu e
sentiu quando, numa evacuação súbita, seu reto e parte do intestino grosso
sofreram um prolapso, caindo pesadamente sobre a água vermelha no fundo da
privada.
Tantos meses sozinha,
entubada, sem poder falar, gritar ou pedir ajuda,
Carlos dessa vez disse em voz alta, conforme dava início ao próximo movimento.
Posicionou a pinça homeostática na traqueia de D.ª Marísia e a apertou fortemente,
até que os dentes do instrumento travassem, bloqueando a luz do tubo traqueal,
exceto por um diminuto canal. Suzy sufocou, tentou inspirar e gritar, mas o ar
era insuficiente: seus pulmões espasmaram. Sobre a mesa de procedimentos, o
corpo de D.ª Marísia moveu-se discretamente, balançando, quando os pulmões
acinzentados começaram a saltitar em fortes espasmos, análogos aos que sua
filha sofria naquele exato momento.
Suzy se levantou e abriu a porta do reservado, arrastando
atrás de si os fétidos intestinos, para então tentar sair do banheiro e buscar
a ajuda, já que sua voz ocluída era incapaz de chamar a atenção de qualquer um fora
dali. Carlos apertou as alças da tesoura enterótomo, cortando um, depois o
outro tendão calcâneo do cadáver, fazendo com que Suzy caísse no chão, dessa
vez incapaz de gritar. Ela apertava os calcanhares. Uma dor excruciante subia
por suas pernas, juntando-se a todo o resto que a torturava.
A lua abandonou a superfície transparente da janela: era
hora de terminar. Empunhando a serra de Weiss contra o pescoço de D.ª Marísia,
o patologista empurrou e puxou a ferramenta repetidas vezes, ressoando pela
sala a mastigação metálica dos dentes da serra contra a carne e os ossos do
defunto, antes de todos os ligamentos, músculos, tendões e a coluna vertebral
se romperem, decapitando o cadáver. Assim como ocorrera na mesa, Suzy sentiu os
ombros e o peito serem aquecidos pelo sangue pegajoso que brotava de suas veias
e artérias no pescoço. Em um último momento, antes de sua medula espinhal
cervical ser seccionada, justo quando a pinça homeostática soltou do cadáver de
sua mãe, ela recobrou o fôlego para um único e desesperado grito final.
Não que aquilo fosse o fim: este ainda demoraria mais
alguns meses para vir. Tetraplégica, muda e dilacerada como estava, ficaria
ainda muito tempo sobre um leito de hospital, impossibilitada de se comunicar,
mas sentindo toda a desgraça que era apodrecer em vida, esquecida em uma cama
suja e desconfortável. E quando sua hora chegasse, era sobre a fria mesa de aço
que jazeria, servindo ao propósito do sinistro patologista e seu frasco macabro
de vudu. Além do mais, ainda havia dois irmãos e seu débito a ser pago: a hora
de Dan e Chris com certeza viria.
Obrigado, D.ª Marísia,
pode descansar agora, e que Deus a tenha, Carlos disse baixinho,
enquanto beijava a testa do cadáver, pouco antes de remendá-la e voltá-la para
o frio gavetão que a aguardava. O
encerrar do ritual, a punição do transgressor.
Conto escrito por
Davi Busquet
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
REALIZAÇÃO
Copyright © 2020 - WebTV
www.redewtv.com
Todos os direitos reservados
Proibida a cópia ou a reprodução
Comentários:
0 comentários: