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Antologia Nosso Amor: 1x01 - Boné Vermelho (Season Premiere)

Conto escrito por S. Guerra
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Sinopse: Uma garota trans do ensino médio se vê em conflito ao se apaixonar pela aluna recém-chegada.


1x01 - Boné Vermelho (Season Premiere)
de S. Guerra

Foi num abril qualquer. As pessoas geralmente pensam que ano novo é vida nova, e na maioria das vezes estão certas, mas não no caso de Ana.

Ser adolescente não era necessariamente difícil, mas com certeza era intenso. Era um período da vida onde você se apresentava para a sociedade como um ser independente. Muitas brigas familiares ocorriam nesse momento, pois os pais geralmente não recebem essa recém-formada ciência de ser com bons olhos. Pais tendiam a sempre ver os filhos como uma extensão de si, e isso gerava conflitos. E não sendo o bastante, ainda havia a sociedade, que julgava todos com olhos de gavião desde o dia em que eram postos no mundo.

Até que não seria um problema tão grande... a menos que você fosse trans. Caso fosse, como era no caso de Ana, seus problemas provavelmente começariam mais cedo do que o previsto.

Ser definido por uma genitália não era bem algo correto, mas era a “lei” em voga na sociedade, ou pelo menos, por enquanto.

Ana... teve muitos problemas na sua antiga escola. Sua transição tinha sido bem conturbada. Jovens podiam ser bem mais cruéis que os adultos, pois os filtros de empatia ainda não foram totalmente desenvolvidos. Mesmo sendo uma escola na capital, as outras crianças se mostravam com uma mentalidade tão primitiva quanto a de Cristóvão Colombo, provavelmente replicando os próprios pais. De forma que ela recebeu com muito bom gosto a notícia de que precisariam de mudar, devido a uma nova vaga de emprego para o pai, que era um neurocirurgião bem quisto em seu meio.

Tais mudanças não eram novidade na vida de Ana. Ela e o pai sempre se mudaram com uma certa frequência, sempre para grandes polos onde houvesse hospitais ou faculdades de medicina.

De forma que quando descobriu que não iriam para uma capital, e sim para uma cidade litorânea, Ana achou estranho. Não que não gostasse de praias, mas era... difícil frequentar uma. Até aí, tudo bem, até que veio a outra notícia. Aparentemente, aquela região do estado era muito religiosa e militarista. Ana não tinha pré-conceito, ela tinha o conceito de que aquilo eram sinais de que indicavam uma coisa muito perigosa na população local. Apesar disso, o pai estava muito animado para lecionar na tal nova faculdade que tinha sido inaugurada, e Ana, como a boa filha que era, não quis desanimá-lo.

Eles se mudam e meses se passam.

Assim como previsto por Ana, aquela era uma cidade bem... ácida, para não dizer tóxica. A população era até bem educada e polida, mas todos pareciam ter sido moldados em uma máquina de fabricação em série. Nas capitais, havia formas e cores de todos os jeitos, mas naquele lugar as regras pareciam ser inflexíveis.

Lógico que não demorou muito para os alunos perceberem que Ana era diferente dos outros e começarem a marginalizá-la.

E cá estávamos em abril. Os meses pareciam se arrastar.

O sino toca, os alunos entram vagarosamente para dentro da sala e se sentam em seus já predeterminados assentos. A sala era imensa para poucos alunos, de forma que as “panelinhas” se juntavam e afastavam de maneira quase geográfica. E Ana, como sempre, ficava no canto do fundo, afastada de todos e quase camuflada na parede.

Rony chega atrasado, como sempre.

Rony era apelido para Honmaru, um rapaz paulista e único amigo que Ana conseguiu fazer naquele lugar. Todos precisavam de suas panelinhas, como Rony mesmo dizia: os esquisitos, tortos e esquerdos tem que se unir.

O rapaz chega da sala com presa, com as roupas tortas e cabelo ainda pingando do que parecia ser o banho mais rápido que ele já tinha tomado. Ana ainda se perguntava como ele sempre conseguia chegar atrasado mesmo morando na rua da escola.

O amigo se senta ao seu lado.

- Motivo de hoje? – ela questiona.

- Consegui cinco coroas no Fall Guys! – ele responde com empolgação.

Ana revira os olhos. Nunca foi muito do mundo dos jogos, gostava mais de livros e os devorava com voracidade. Rony a convidava para jogar com certa frequência, mas ela sentia que aquilo realmente não era sua praia.

A aula de história começa. Era uma das preferidas de Ana, mas uma das piores para Rony, que tinha TDAH e simplesmente detestava humanas, ele se entendia melhor com exatas. Para a sorte dele, o professor parecia nem ao menos notar a presença deles, de forma que ele ajeitou sua mochila na mesa e cochilou, confiante de que teria o impecável caderno de Ana para copiar depois.

O sinal do primeiro tempo ecoa pelos corredores. O professor olha para o relógio e volta a copiar na lousa algo relacionada à Independência do Haiti, ainda havia mais um tempo de sua aula. De súbito, batidas ecoam na porta. Não que aquilo fosse incomum, a coordenadora tinha que brigar com aquela turma com certa frequência, no entanto, nunca tão cedo de manhã, mal eram oito horas.

O professor descansa seu piloto na mesa junto com o livro que copiava e se dirigiu para abrir a porta.

A primeira coisa que gritou aos olhos de Ana foi o boné vermelho.

Os olhos de todos rapidamente se voltaram à recém-chegada. Não que ela fosse alguém muito excepcional, mas porque qualquer cor naquele colégio parecia gritar aos olhos. As paredes eram bege e os uniformes eram cinzas, de forma que aquela garota parecia quase carregar uma grande exclamação em cima da própria cabeça.

A recém-chegada entrega um papel ao professor. Ele passa os olhos pelo papel enquanto os sussurros começam a se espalhar pela sala.

Era uma das regras implícitas daquele bairro excessivamente religioso. Meninas não usavam boné. Meninas não podiam se parecer ou agir como meninos. De forma que só a presença daquela garota na sala parecia ser uma afronta à toda a cultura do local.

O boné berrantemente vermelho escondia curtos cabelos pretos como petróleo e cortados em pixie-cut – também conhecidos como “estilo Joãozinho”. Ela não usava o uniforme, vestia uma regata cor amarela e uma bermuda cargo grená, um converse preto bem gasto nos pés.

- Acho que você tem uma nova concorrente à Bizarrice da Escola. – Rony sussurrou para Ana, ainda sonolento.

- Eu não sou bizarra. – Ela contestou.

- Ana, minha pequena grila, você já deveria saber que bizarro não é questão de ser, é questão de agir em contraste com o ambiente. E, sejamos francos, essa garota coloca muito mais moral do que você.

Ana revira os olhos.

- Muito bem, alunos, essa é a Mia. Ela acabou de ser transferida da Escola Almirante Deodoro Carneiro. Mia, gostaria de se ap...

- Não. – a garota responde antes mesmo que o professor terminasse a frase.

Aquilo notoriamente pegou o professor de surpresa, mas ele não quis transparecer.

- Pode se sentar. – ele disse por fim.

A garota rapidamente driblou as várias panelinhas da sala e se sentou no fundo, no canto o posto ao de Ana e Rony, colocou sua bolsa tiracolo na mesa e abaixou a cabeça para dormir, parecendo tão interessada na aula quanto Rony.

Ana não sabia nada sobre a garota, mas uma coisa era certa: traria problemas.

E Ana estava certa. Os problemas chegaram na sexta-feira daquela semana.

Quando a garota, a tal da Mia, começou a usar o uniforme e a escola por algum motivo a obrigou a usar uma mochila, ela deixou de ser assunto. Ou pelo menos, deixou de chamar tanta atenção. Mas ainda havia pontos que faziam ela se destacar no meio da multidão cinza daquele lugar.

O primeiro fator que Ana notou era que a garota não dispensava o boné. Podia até ser proibida de usar na sala, mas assim que saísse, iria sacá-lo da bolsa e colocar na cabeça. A outra coisa que notou era que a garota tinha uma fixação por tatuagens e vivia rabiscando os antebraços. Sempre chegava na escola limpa, mas sempre voltava com mais tinta no corpo do que no caderno. Por algum motivo ela adorava “tatuar” nuvens roxas.

Na mesma semana, Mia passou o intervalo todo jogando num videogame portátil que Ana desconhecia, mas Rony achou bem interessante. Aquilo pareceu decepcionar Ana. Geralmente quem era da tribo dos games, não era da tribo dos livros, ou quando era, era de maneira bem desproporcional. No entanto, nessa sexta, Mia a tinha surpreendido. A garota sacou um livro coletânea do Peanuts & Snoopy e leu durante o desjejum. Aquilo pareceu promissor, mas Ana ainda não dava o braço a torcer... até aquele momento.

A professora ensinava algo a respeito de alguma fórmula e a pressão de um pneu, mas Ana estava mais estarrecida com o fato de Mia ter simplesmente ignorado essa aula, sacado “Devassos no Paraíso” do João Silvério Trevisan e começado a ler como se fosse a coisa mais normal do mundo. Os outros alunos apenas ignorariam, se não fosse pelo fato de ter uma enorme bandeira arco-íris na capa no livro.

- Se continuar encarando ela, eu vou começar a duvidar da sua heterossexualidade. – Rony cantarolou despretensiosamente ao seu lado enquanto copiava a bateria de deveres de matemática.

- Cala a boca. E quando que eu disse que era hetero?

- Disse sim e eu tenho prints. Tenho provas e tenho “ibagens”! Tenho até a foto do capeta do teu ex salva na nuvem.

- Cruzes. Não me lembre disso.

- Pense pelo lado bom, aparentemente, seu paladar ficou mais refinado. A Mia não é de se jogar fora.

- E quem te disse que ela é gay?

- Ela não precisa ser gay, só precisa gostar da sua fruta.

- Não sei se você se lembra, Rony, mas a maioria das garotas não tem a fruta que eu tenho!

- É forma de expressão, poxa. Você me entendeu! – ele implicou – Vai pra guerra! Empina esses peito e joga um charme.

- Que charme?

- Afe! Eu tenho que fazer tudo por você?! – o rapaz implica – Se eu tiver que trabalhar de cupido, eu vou cobrar, tá?

- Cupido de Taubaté, só se for. Eu... não tenho nada de atrativo.

- Não tem por que não quer! Só fica grudada na parede se escondendo dentro desse moletom.

- Deixa meu moletom!

- Deixo nada! Você só veste esse troço preto e chega na sala parecendo um Dementador do Harry Potter! Ana, preto atrai mosquito, diaba! Vai entrar o verão de novo e você vai pegar “chicocunha” na bunda.

O sinal toca, indicando a hora do almoço. Ana e Rony começam a guardar os cadernos.

- A próxima aula é de Educação Física. Tira esse moletom e parte pra guerra. Pede pro espírito de Beyonce baixar em você.

- Eu não gosto de pop. E você espera que eu faça o quê? Comece a dançar Love on Top no meio da quadra?

- Amore, eu não sei. Mas a sua estratégia de se fingir de morta não está dando certo. Para de encarar a Mia e faz ela encarar você.

A hora do almoço passa mais rápido do que os alunos gostariam.

Quando o sinal bate novamente, todos vão diretamente para o banheiro trocar de roupa para se dirigir à quadra. Como sempre, Ana esperava todas as garotas saírem primeiro. Sempre chegava atrasada, mas esse professor, diferente de vários outros, parecia entender a situação e fazia vista grossa para os atrasos.

Quando Ana chega, a aula já está correndo. Parecia que a aula de hoje era basquete misto.

Ana gostava do professor Wesley. Pois diferentemente de tantos outros professores de Educação Física que já teve, ele não separava os meninos e as meninas. Todos jogavam em times mistos e aprendiam como funcionavam os esportes. Era realmente um bom professor, mas Ana ainda preferia se manter fora da quadra. Não gostava dos comentários que seu corpo gerava.

Ela se senta na arquibancada, ao lado de Rony, que tinha dispensa por ter asma. O rapaz mexia no cabelo e tirava selfies, ignorando tudo ao redor.

- Finalmente tirou o moletom. – ele comenta – Solta o cabelo.

- Nem ferrando.

- Amore, tu pintou o cabelo de loiro pra viver com ele preso?

- Não, mas não foi pra ficar exibindo ele na escola.

- Temos 17, abestada. Onde mais exibiríamos nossa beleza?

- Sei lá, shopping?

- Vivemos numa cidade chamada Cabo Quente, num bairro que tem 33 igrejas e nenhuma livraria. Nesse nosso habitat desfavorável, ou nos expomos no colégio, ou no culto da igreja. Como eu acho que se eu ou você pisarmos numa igreja, a água benta vai pegar fogo, eu creio que é melhor mostrarmos nossa beleza aqui, que é bem mais seguro e não corremos o risco de ser linchados. Agora, solta esse cabelo!

Ana resmunga e solta o longo cabelo.

- Viu só? Nem doeu. – Rony cutuca e volta a mexer no Instagram.

- Pra que isso tudo, afinal de contas?

- Porque eu sou um ótimo cupido. – ele disse – Não olhe agora, mas aparentemente a Mia tem uma tara pelas suas madeixas loiras.

Ana travou no mesmo instante.

- Como você sabe disso?

- Olha a minha câmera e finge que tá vendo algo interessante.

Ana obedeceu e encarou o celular de Rony. A câmera estava com um zoom na quadra. Mia aparecia, olhando para a arquibancada enquanto pegava folego, o rosto vermelho e suado. Ana não pode deixar de notar que Mia não usava shorts e sim bermudas, e aquilo por algum motivo pareceu inexplicavelmente lindo aos olhos de Ana.

- As panturrilhas dela são sexy.

- Você tem gostos estranhos, Ana. – Rony implica.

- Você não tem moral nenhuma pra falar isso pra mim, eu seu muito bem o que você vê na aba anônima.

O rapaz abre a boca para responder, mas é interrompido quando um grito ecoa pela quadra.

Um rapaz muito consternado grita com Mia, e apesar dela ser mais baixa, a garota não se intimida ou se afasta.

- Qual é a porra do teu problema?! – o garoto berra para Mia. – Eu mandei você passar a porra da bola!

- Tu não manda nem na tua bunda, vai querer mandar em mim?

O rapaz se arma para avançar, mas o professor aparta os dois antes que as coisas evoluíssem para uma agressão.

- Pedro, vai pro refeitório, agora! – O professor brada e aponta a saída ao jovem.

Ele olha para Mia, sem saber ao certo o que fazer com ela, não queria mandá-la ficar perto do outro por um tempo.

- Hon, Ana! – o professor grita – Levem a Mia lá pra a biblioteca, fazendo o favor!

Foi como se a língua de Ana tivesse caído no chão.

- Tá bom! – Rony gritou de volta enquanto se levantava.

O rapaz lança um sorriso sacana para a amiga e lhe estende a mão, a ajudando a ficar de pé.

- Pelo visto, eu não sou o único cupido que tá te ajudando. – ele sussurra.

- Vai à merda.

Os dois se aproximam de Mia, que parecia bem consternada. O rosto dela podia estar na cor de um tomate e empapado e suor, mas isso só parecia um atrativo a mais para Ana.

- Baba não, mô. – Rony riu dela.

Ana sentiu o rosto ficar tão vermelho quanto de Mia, só não respondeu à altura porque a outra já estava próxima o suficiente para escutar.

- Vamo lá? – o rapaz pergunta amistosamente para Mia.

A morena assente, mas não dá uma palavra, tentando enxugar o rosto com a própria camisa.

Os três se dirigem silenciosamente até a biblioteca. Chegando lá, Mia vai imediatamente ao banheiro lavar o rosto.

- Minha nossa, mesmo fedendo ela é gostosa. – Rony comenta para Ana – Você tem realmente um bom gosto.

- Dá pra parar? De qualquer modo, não é como se ela desse muitas brechas para aproximação.

- Então arranja a brecha!

Mia sai do banheiro com o rosto e cabelos molhados, notoriamente mais aliviada. Ela começa a vasculhar os livros da biblioteca, mostrando interesse por um livro preto onde se lia com letras douradas: Em Busca de Watership Down – Richard Adams.

- Ela até tem o mesmo gosto por livros de coelhos assassinos, Ana, vai lá!

Ana sente ser empurrada em direção à garota e quase tropeça no caminho, a sorte é que a outra parece não ver.

Ana coça a nuca, se sentindo como uma criança que se perdeu dos pais, procurando desesperadamente algum assunto para abordar.

- Eu não mordo. – Mia diz – A menos que peçam.

Aquilo definitivamente só acentuou o “gay panic” que Ana estava sentindo, tinha certeza de que seu rosto estava mais vermelho do que a calcinha que usava.

Mia ri da situação, o que fez Ana se derreter por dentro ao ver os dentes brancos e os lábios curvados no primeiro sorriso que conseguia ver da outra.

Naquele instante, Ana decidiu que conquistaria aquela garota, custe o que custasse.

Mal sabia ela, que Mia pensava exatamente a mesma coisa.

+++§§§+++

Foi numa sexta-feira, no último dia de aula antes das férias do meio do ano.

Rony dormia profundamente ao lado de Ana, enquanto ela batia nervosamente a perna no chão, a ansiedade lhe comendo as vísceras.

Mia tinha faltado.

Ana se sentia ao ponto de enlouquecer. Queria fazer algo importante naquele dia. Mia e Ana conseguiram evoluir de estranhas para... alguma coisa. Rony definia o que elas tinham como: “Estágio Se Cheirando”. Ana ainda não tinha entendido bem o que aquilo significava, mas qualquer coisa era um progresso.

Gostava da amizade de Mia. Gostava de como as duas tinham um gosto peculiar por obras de terror e séries de drama. De como Mia inconscientemente sorria sempre que comia, ou quando as duas riam de piadas políticas. Ana se viu no caminho sem volta de estar indo à escola mais pela companhia da outra, do que pelos estudos em si.

Mas hoje era um dia excepcional. Ficariam um bom tempo sem se ver, e por mais que já tivessem os contatos e redes uma da outra, Ana se sentia estranhamente perturbada por essa quebra de rotina.

E além disso tudo tinha... a carta.

A carta que Ana escreveu em uma súbita crise de boiolagem, como definia Rony. Lá ela escreveu... coisas. Coisas intimas demais para cair em mãos erradas, e para o seu desespero, a carta tinha sumido de sua bolsa. Estava endereçada à Mia e no dia seguinte, a moça desaparece.

- Se roer mais as unhas, vai sangrar. – Rony resmunga, agoniado pela ansiedade da outra.

- Ela deve ter lido a carta. – Ana grunhe.

- Tinha alguma putaria lá?

- Não, por Deus!

- Então tá tudo certo.

- Como eu vou saber se tá tudo certo se ela não veio?!

- Vai ver ela teve uma dor de barriga e ficou em casa.

- Duvido muito. Atletas não tem dor de barriga.

- Ela não é atleta, só joga futsal.

- Não importa. Ela nunca faltou antes.

- Tem uma primeira vez pra tudo.

- Dá pra parar de me criticar e me apoiar?!

- Em que? Em você se torturar psicologicamente por algo que pode nem acontecer? Relaxa, Ana.

- E eu ainda tinha que devolver o livro que ela me emprestou...

- Por que raios você foi ler IT se você vai ver o filme, de qualquer modo?

- O terror dos livros é muito mais refinado do que um simples jump scare.

Rony revira os olhos e se acomoda novamente dentro do moletom preto que tinha afanado de Ana, finalmente descobrindo porque ela gostava tanto daquele manto preto, de fato, era muito confortável.

O celular de Ana vibra. Ele verifica se o professor não estava prestando atenção e abre a tela.

Mia: Psiu. Ainda tá na aula?

Você: POR QUE VOCÊ NÃO VEIO?

Mia: Assuntos de maior relevância.

Tá na aula ou não?

Ana suspira.

  Você: Sim, já tá no final. Por quê?

  Mia: Carrega o passe do ônibus e vem pelo portão de trás.

  S2

Ana engole seco, se sentindo ridícula ao sentir seu coração disparar só com um emoticon.

Os quinze minutos restantes da aula parecem se arrastar e a ansiedade de Ana só aumenta.

O sinal finalmente bate e Ana já se levanta com pressa.

- Rony, eu vou ali resolver um assunto e...

- Não precisa explicar. – o rapaz tira uma blusa limpa da bolsa e entrega à Ana – Veste isso. Não vou deixar você ir rosetar na rua de uniforme.

Ana sorri e pega a blusa.

- Espera, como você...

- Nada de perguntas. Confia no cupido e vai.

Ana decide não questionar mais nada e ruma para a saída.

E lá estava Mia de novo, chupando pirulito e com seu inconfundível boné vermelho. Elas sorriem ao se ver.

- Achou que ia se livrar de mim assim tão fácil? – Mia questiona com ironia.

- Nem por um segundo. – Ana ri de volta.

- Acho bom. Vem, tá quase na hora.

- Na hora de que?

- Do cinema.

- Que cinema?

- Você não queria ver IT? Pois vamos ver IT.

Ana sente as bochechas pegarem fogo. Aquela foi uma maneira bem abstrata de se chamar alguém para um encontro. Aquilo era um encontro? Não importava. Qualquer momento ao lado da outra já era motivo de jubilo.

As duas chegam ao local com tempo de sobra. Tomaram milk-shake e conversaram enquanto perambulavam pelas lojas do shopping.

Ana sentia o coração batendo fortemente dentro do peito, ela sabia o que estava acontecendo e Mia também. Uma sintonia eufórica, um sorriso que se recusava a ir embora e fazia as bochechas doerem, o caminhar perigosamente perto que fazia os braços se roçarem, se censurando para não darem as mãos, por mais que ambas quisessem.

A sessão do filme começa, e por mais sombrias que fossem as cenas, Ana não conseguia sentir medo de nada.

As mãos finalmente se encontraram no braço da poltrona. Podia não ser nada para a maioria das pessoas, mas Mia e Ana sabiam que aquele gesto era muito mais profundo do que poderia parecer.

Ficaram um bom tempo no shopping, mesmo depois do filme ter acabado. Passearam, comeram, riram. Ficaram debatendo política durante duas longas horas na praça de alimentação, até que viram o céu ficar escuro e se viram obrigadas a voltar para casa.

Enquanto o ônibus cruzava calmamente a ponte, Ana pode sentir toda aquela energia que sentia borbulhar dentro de si finalmente se assentar, como se um mostro rebelde finalmente estivesse se acomodando dentro de seu peito. Ela inconscientemente deita a cabeça no ombro de Mia.

A morena sorri como gesto e afunda seus dedos nos cabelos de Ana.

Foi o melhor cafuné que Ana recebeu na vida.

Elas não dizem nada. Pois não era preciso dizer nada.

Ao saltar do ônibus, as duas caminham calmamente pelo bairro, aproveitando as ruas desertas para permanecer com o contado das mãos.

Mia morava um pouco mais ao norte, mas não pareceu se incomodar em fazer um trajeto mais longo apenas para levar Ana até em casa.

- Que tipo de cavalheira eu seria se não acompanhasse uma dama até sua casa? – ela tinha dito.

Ana não pode evitar de rir e se envergonhar com a capacidade de Mia de fazer os gestos mais simples pareceram os mais especiais do mundo. Mas já devia estar acostumada. Tudo o que a outra tocava imediatamente criava cor, como se contaminada por uma aura ambulante de jubilo.

Mia não solta a sua mão até chegarem às escadas do prédio em que morava.

Os braços se esticam quando Mia para de andar, ambas se vendo obrigadas a se apartar.

Ana se vira para a outra, ainda sorrindo e não querendo quebrar o contato. Mia a puxa para perto, enlaçando sua cintura e fazendo Ana jogar os braços em volta de seu pescoço.

- Você é linda, sabia disso? – Mia diz.

- Eu acho que você precisa de óculos.

- Nah. A de óculos da relação é você, eu sou a surda. – Mia sorri e aponta para o aparelho auditivo que usava, fazendo Ana rir.

- Ok. Agora eu tenho duas perguntas bem importantes pra fazer pra você, ok? – Mia questiona e Ana assente – Primeira... posso ficar com a carta?

Imediatamente os olhos de Ana se arregalam e ela sente uma onda de choque percorrer seus músculos. Ela sente vontade de sair correndo dali, mas se sentia terrivelmente presa e segura dentro daquele enlace. Ana abaixa a cabeça e esconde o rosto no ombro de Mia.

- Você leu, não foi? – Ana pergunta com a voz tímida e abafada pela jaqueta da outra.

Mia ri com a reação.

- Bom, eu vi uma carta na minha bolsa com o meu nome escrito com a sua letra. O que eu deveria pensar?

- Rony, aquele filho de quenga... – Ana praguejou, fazendo Mia rir.

- Eu saquei na hora que foi ele que colocou aquilo na minha mochila, mas não ia reclamar. Afinal, eu tinha certeza de que você não ia ter coragem de me entregar aquilo. Ele me mandou uma mensagem dizendo: se machucar a minha amiga, eu vou machucar o teu rim. Eu não precisei perguntar mais nada.

Aquilo faz Ana sorrir, mas ainda estava sem coragem de encarar a outra.

- E a outra pergunta... – Mia relembra – é se eu posso te dar um beijo.

Um calafrio eletrizante percorre pela coluna de Ana, um frio congelante no estomago e mãos suadas. Ela inconscientemente aperta o abraço, o que faz Mia rir novamente.

- Ok, se não está pronta, tudo bem, mas eu vou cobrar depois, tá? – Mia sussurra em seu ouvido, lhe causando outro calafrio – Mas agora, eu tenho que ir.

O enlace se desfaz, apesar das mãos ainda permanecerem atadas. Ana ainda tentava não encarar o rosto da outra.

- Queria ter algo pra lembrar de você... – Ana sussurra.

- Ô, dramática, a gente mora no mesmo bairro!

- Ainda assim. Eu vou passar um mês sem ver você entrar na sala de boné e levando esporro do professor.

Mia sorri e tira o boné da cabeça, o colocando no rosto da outra de maneira brincalhona.

Ana riu ao sentir um cheiro gostoso e frutal no boné, provavelmente vindo do xampu da outra. Ela retira o boné do rosto e a primeira coisa que sente são os lábios de Mia se encontrando com os seus.

Foi calmo, sem pressa e com o gosto adocicado do sorvete ainda na boca de ambas. Elas sorriram em meio ao ato, mas isso não o fez de forma alguma menos especial.

- Tenho que ir agora, tá bem? – Mia lhe dá mais um beijo da boca e lhe beija as mãos em seguida, finalmente a soltando e se afastando.

- E o boné?! – Ana grita, antes que a outra se afastasse demais.

Mia sorri e grita de volta:

- Me devolve mês que vem!

Ana ainda fica parada por longos minutos naqueles degraus, se perguntando se aquele dia realmente existiu ou se foi tudo uma grande peripécia alucinada por sua própria mente fértil.

Ela sobe as escadas e entra em casa, se deparando com seu pai ansioso pendurado na janela e com um binóculo na mão.

- Eu já devia começar a procurar salões para esse casório?! – O pai pergunta, parecendo muito mais entusiasmado com o recém ocorrido do que a própria filha.

- Pai, foi só um beijo.

- Não é só questão do beijo! É questão de química, minha filha! Se essa garota tirar mais de 500 na redação do ENEM, você tem a minha benção e eu até pago o casamento!

- Pai! – Ana ri e revira os olhos, se dirigindo ao seu quarto.

Ela toma seu banho enquanto escuta seu celular vibrar constantemente com o recebimento de mensagens.

Ao sair, de camisola e banho tomado, ela finalmente desbloqueia a tela para ver as mensagens. Rony estava desesperado atrás dela.

Você: Oi, tô aqui.

Chegay agora.

Rony Cupido: Graças a Deus!

E aí, como foi?

Pelo amor de Deus, me diz que vocês usaram camisinha!

Ana gargalha com as besteiras de Rony e vê outra notificação aparecer.

Mia: Hey

Ainda tá acordada?

Ana sorri e começa a conversar.

O tempo discorre pelos assuntos até a jovem dormir, inconscientemente abraçada com o seu mais novo – e único – boné vermelho.

Conto escrito por
S. Guerra

Produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


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Sinopse: Em um dia ruim, Bruno perdeu seu emprego de operador de telemarketing e viu seu parceiro Caio indo embora. Nessa situação, o rapaz se vê obrigado a recomeçar sua vida profissional e pessoal. Porém o que ele não esperava era que esse recomeço transformasse seu amigo Henrique, comissário de bordo com quem dividia um apartamento em Copacabana em seu novo amor, após uma linda declaração.


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