2x05 - Beleza Morta
de Gabriel da Costa
Engraçado. Longe de mim lançar mão a esses papos de “objetificação do corpo da mulher” ou, qualquer que fosse a conversinha de sexo frágil. Eu não, eu sou o tipo de cara que quer baforar um cubano com um copo de whisky, e pouco importa se era sexo frágil ou forte. Pra mim era tudo carne. A piada maior foi essa, porque me lembrei desses devaneios enquanto estávamos sentados, eu e meu amigo Moura, num galpão de um conhecido dele. E aqui vale ressaltar, que eu e Moura amigos de o que? Uns 20 anos? Peguei o miúdo nos braços, um bebê desse tamaninho, depois vieram mais dois filhos dele, e eu também os peguei nos braços. Tio Armando era assim que me chamavam. O homem tinha uma família digna de inveja. Uma mulher linda e uma prole que eu e minha esposa nunca alcançamos. Estéril. O garoto não funcionava, eu não reclamava, meus dias tinham se resumido a ficar trancafiado no porão trabalhando em coisinhas de madeira, esculturas pequenas, um Hobbie, servia pra passar o tempo. Tempo que em outra situação seria gasto em cuidados com uma criança. Era o tipo de azar que deve dar de um em Um milhão, mas que pra mim servia de consolo, assim dava pra saber quando uma mulher tá interessada em você ou no seu patrimônio.
E assim foi da vez em que eu encontrei aquela francesinha, cabelo
escorrido, fala macia que eu não entendia uma grama, mas em dado momento a
língua ia pra outra função, então não importava. Ficamos por uns meses, e eu
tentando fisgar a mulher mandava um “jeT'aime” junto de uns cordões de ouro e uns
agrados, sabia que ela gostava porque na cama a coisa ficava um tanto
animalesca. A coisa foi se intensificando e, eu digo aqui que não sou de
apaixonar fácil, mas a Francesa tinha me pego de tal maneira que eu queria algo
mais sério e resolvi contar do meu problema com a perpetuação da espécie.
Tínhamos uma amiga em comum, a Joana, dessas que ri em demasia, e sabia um
pouco do idioma, tava ciente das minhas intenções e concordou em traduzir o meu
português sem jeito com a condição de também comer do macarrão e beber do vinho.
Não neguei. E as duas chegaram bem na hora, o molho já borbulhando,
espalhando a fumaça em tudo que é canto, e o vinho esperando ser aberto.
Bienvenue.
Gastei tudo que eu lembrava e as duas entraram. A Francesa do meu lado suspirando numa
garfada e beijando em outra, descobri que ela era modelo, na maioria revistas,
moda, cinema, ou o que aparecesse. Lá pras tantas de quando o vinho tava
fazendo efeito, eu resolvi falar logo de uma vez, um pouco receoso porque a
amiga por consequência ia ficar sabendo, mas aí eu já não tinha escolha. A
Joana maravilhada, apontando pro prato com o garfo. O que você pos aqui? Disse
enchendo a boca.
Nada, era só carne.
Daí então eu continuei na tarefa de contar sobre o meu problema. É que
eu, eu gosto muito de você e...
E assim a amiga ia traduzindo. Só
que tem um problema, eu não posso. Deu-se uma pausa, olhares. Não pode o
que? A Francesa olhando pra mim e sinceramente, eu não sei porque fiz tanta
questão. Quer dizer, que se foda não é, quem liga? Mas na época pareceu o fim.
Eu não posso ter filhos. E saiu,
seco e duma vez. Semanas depois a Francesa viajou. Sem ligações, sem Je T'aime. A filha da mãe nem pra
devolver os cordões que eu tinha dado. No fim, não era tão amor assim. Dias
depois desiludido, fui pro bar afogar a minha dor, acabou que foi aí que eu
conheci Moura, fazendo festa, garrafa na mão, ia ser pai. Na ocasião eu tava
muito triste e o homem muito feliz, ficamos amigos. O resto vocês já sabem.
Mas voltando ao raciocínio do sexo frágil, me lembrei disso porque mais
adiante, à nossa frente naquele galpão jazia uma mulher, uma mulher nua, linda,
magra e tudo mais que pode deixar um homem louco. Presa com uma tira envolvendo
o corpo e dando num gancho de açougue. Pendurada e gritando com um terror que
eu tenho certeza, nunca havia sentido na redoma em que morava. Chorava e se
contorcia, era até bonito ver aquele corpinho lutando até cansar pra
sobreviver, em certo momento eu acho que ela aceitou o seu destino e
simplesmente ficou alí, ofegando, as lágrimas banhando o rosto, o corpo a mercê
da gravidade. Ela olhou de um jeito tão penetrante pro Moura que eu tive
certeza que eles já se conheciam. O filho da puta me ligou no fio da madrugada
pedindo que eu me arrumasse e fosse o mais rápido possível “é coisa grave” ele
falou, dava pra ouvir o nervosismo na voz dele, e eu como bom amigo peguei meu
carro velho e fui sem questionar. Vocês podem imaginar a minha cara quando eu
cheguei e vi a situação. Que porra é essa Moura? Eu sei, eu sei. Nunca vi essa
mulher na vida Armando, é uma puta, disse que sabia quem eu era, e queria
dinheiro. Não falei nada. Quando se conhece alguém por tempo suficiente dá pra
saber quando está mentindo. Queria avaliar o tamanho da merda primeiro antes de
pensar em alguma coisa. Tem algo pra beber? Uma coisa forte se tiver. A mulher
dele era gente boa, uma dama, além de destruir na cozinha com os petiscos nas
noites de baralho. Eu não queria que aquela família acabasse por qualquer
merda, ia ajudá-lo, mas primeiro matei ele com o silêncio enquanto ela gemia e
grunhia, não tardou muito pra que ele falasse. Ela ia dar com a língua nos
dentes Armando, ia...fuder com tudo, eu não tive escolha. Disse abrindo a guarda, com a típica culpa
alterando o tom de voz
Ele tinha chegado aonde eu queria.
A garota era jovem, uns dezessete talvez mais, não queria saber. Será
que a família já estava procurando?
Conte tudo que souber. Falei depois de um gole do whisky. Moça jovem
Armando, bonita, eu amo minha esposa cê sabe disso, mas a garota me desarmou,
disse que gostava de mim, tava terminando os estudos e nisso a gente ficou
saindo. Só que aí fugiu do controle, ela ligava pra minha casa Armando, quando
eu tava fora a Elisa atendia e a garota desligava. A mulher começou a
desconfiar.
Ele ia detalhando a coisa e o desespero assumindo o controle, enquanto
isso a moça ali, exposta, observando a gente decidir sobre o que fazer com ela.
Até que eu me levantei, vesti a pior expressão que pude e me aproximei. A
garota suava, um pano na boca a impedia de falar. Cheguei perto e deu pra
sentir o cheiro dela, lá embaixo era tudo lisinho, e nos lugares em que ela
estava presa a pele branca tinha se avermelhado. Tirei o pano da boca dela,
olhava pra mim fixamente, os pezinhos suspensos no ar, até que sussurrou por favor, eu não vou contar nad... coloquei
de volta o pano. A moça tinha doçura na voz, ainda que ofuscada pelo pavor de
morrer. E aí Armando, o que faremos? Ora “o que faremos, essa merda é sua” foi
o que eu pensei, pensei em ir embora, mas quando vi o homem, ele estava todo
arranhado, a manga do lado esquerdo com um rasgo, e um silêncio quase como
súplica.
Alguém mais sabe que você saia com ela? Eu disse querendo que a situação
sumisse, assim como a francesa sumiu da minha vida. Não, ninguém sabe. Vá
embora, se livre dessas roupas, das coisas dela e do carro. Você nunca mais irá
tocar no assunto ou fazer qualquer pergunta. Até do carro?
Filho da puta, à beira de colocar nós dois numa cadeia e preocupado com
a porra do carro. Até do carro. Moura. O que? Eu vou precisar da blusa dela. Eu
disse e ele me olhou intrigado. Mas tem sangue nela... Exatamente.
Vá que daqui eu dou conta.
E eu dei.
Passou-se meses, mas gosto do whisky e o medo emanando daqueles dois
ainda me dava calafrios, o Moura tadinho, prisão pra ele era só o lugar pra “assassinos
e pessoas da pior espécie” não ouvi falar dele por um bom tempo. Tudo ia calmo,
até que o problema bate na minha porta. Literalmente.
A porra de um policial.
Opa amigão, é que o pneu da viatura falhou...
Suspeito. Muito suspeito, um pneu
de uma viatura furar bem na minha porta. Pode não ser nada, sempre pode não ser
nada, ou vai ver eles descobriram e querem me pegar, o Moura abriu a
boca...e...e... Pode entrar. Venha, eu coloco mais um prato na mesa. Minha
mulher falou toda solicita, enquanto eu fiquei parado olhando pro policial que
nem estátua, a viatura ao fundo, a farda...vai ver eu fui seguido, eles
descobriram a ligação... Isso, isso pode entrar. Falei recobrando a sanidade e
apertando a mão dele. Olha, não é todo dia que recebemos uma autoridade em casa
não é amor. Continuou minha mulher. Uma escuta, ele tem uma escuta e tem uma
van estacionada algumas quadras daqui. Amor? Sim, sim é verdade.
Eu tinha que tomar o controle da situação, ele devia estar notando o
nervosismo, a hesitação. Que nada, só
faço o meu trabalho. Mas como eu disse, meu pneu furou, será que você não teria
um macaco aí pra me emprestar? Ah, é claro. O Armando troca pra você, mas
primeiro você não pode sair sem provar do meu cozido. A mulher foi na cozinha e
deixou a gente só. Eu tinha que fazer algo. Trabalhando em algum caso
importante? Disse fingindo estar impressionado. Ah sim, sempre estamos não é? Todo caso é importante. Filho da
puta, queria socar ele ali mesmo. Arriscado, mas tinha que perguntar, até
porque, se ele tivesse algo contra mim, eu já estaria preso. E o caso da mulher
desaparecida? Vocês sabem de alguma coisa? Três meses e nenhum suspeito. O
homem parou, olhou pra mim e disse Não
posso dar detalhes, mas temos um cara em mente.
Minha espinha gelou, mas me mantive inalterado, a mulher chegou com o
cozido, náusea. Ele voltou os olhares para a carne. “Temos um cara em mente” o
que isso queria dizer? Será que eu era o cara? O que mais eles sabiam? A janela
de oportunidade havia fechado, voltar ao assunto seria burrice. Ele se
deliciou, comeu, comeu, e repetiu. Está
uma delícia! Qual o tempero disso aqui? A gororoba que eu como não chega nem
perto. Os dentes dilacerando, os talheres batendo, me lembrei dela, os
cabelos molhados de suor colados no rosto, o corpinho diminuto não ocupou quase
nada do porta-malas. Me deu uma vontade imensa de rir, mas eu me contive e
disse.
Pode acreditar, é só carne.
Troquei o pneu do sacana, apertamos as mãos e antes de ir ele chegou
perto de mim e disse. Não conte nada a
ninguém, mas nós, nós pegamos ele, o que, como assim? Falei de sobressalto. O
namorado, descobrimos que ele brigou com ela no dia do crime, fomos até a casa
dele...cocaína, algumas munições, e melhor que isso, a porra da camisa com o
sangue dela.
Obrigado policial,
um monstro a menos por aí, disse
entrando em casa radiante, porque está sorrindo tanto amor? Nada, é só que o
dia está belíssimo. Fui até o porão, abri a porta, tinha mais uma peça pra
trabalhar. A minha lâmina de entalhe ainda estava sobre a mesa junto com lascas
de madeira e uma escultura inacabada no centro. Peguei a faca, a garota
amarrada no canto do cômodo, chorosa, olhava com as órbitas brilhando enquanto
eu retirava o excesso de madeira. Ia ser difícil replicar aquele olhar, mas de
uma coisa eu sei.
Ia ficar
linda.
Conto escrito por
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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