2x08 - Borboleta Estática
de Gisele Wommer
Carmen acordou no hospital. Não
lembrava quem era, nem a razão de estar ali. Três anos em coma, um médico lhe
explicou. Poucas pessoas tinham esperança de que ela acordasse. Em uma tarde de
outono o marido havia resolvido descarregar o revólver .38 que possuía. Cinco
tiros atingiram Carmen, e o último, a cabeça de Mauro.
Quando os filhos a visitaram ela mal os reconheceu, eles
mudam muito em três anos. Nenhum pareceu demonstrar saudades ou felicidade pela
mãe ter acordado. Ela não os culpava, eles haviam aprendido a viver sem ela.
Três anos é muito tempo.
A pior visita foi a da cunhada. Ela quase culpou Carmen por
demorar tanto tempo a acordar. Contou que o filho mais velho havia sido preso
por tráfico; a filha tinha uma criança de dois anos soropositiva e não sabia
quem era o pai; o caçula não tinha ouvidos, não obedecia a ninguém e já tinha
registro criminal por furto.
- Sinto muito, Carmen. Eu fiz o melhor que pude, tive que
criar o meu filho e os seus três. Mas os seus, bem, os seus são impossíveis.
O que doía em Carmen, era que nenhum deles havia contado
nada daquilo quando foram visitá-la. Ela era avó e não sabia. Não reconhecia
mais os seus filhos, nem a si mesma, menos ainda aquele cenário de horrores que
agora era a sua vida.
No ombro direito olhava a antiga tatuagem de borboleta,
agora deformada. Ela tatuou, não lembrava quando, porque borboleta significa
liberdade. Que piada. Lembrava de uma família feliz, de filhos perfeitos, de
uma casa ampla e o marido, sim, dele não lembrava o rosto, mas também não tinha
uma reles recordação de ter sido destratada por ele alguma vez.
Ela não tinha previsão de sair do hospital. O corpo não
tinha a mesma locomoção de antes. As sessões de fisioterapia eram infernais, a
dor lhe consumia. O tiro no ombro, aquele que partiu a borboleta e acabou com
sua liberdade, fora o menos grave que sofrera. O médico lhe contou que
removeram uma bala perigosa próximo a sua coluna, duas no seu abdômen e a
última, alojada na nuca, provavelmente não poderia ser removida.
Carmen observava seu corpo, espantada. Marcas de cirurgia
haviam sido talhadas desde baixo do seu umbigo até o meio dos seios. Estava raquítica,
não conseguia ficar em pé sozinha. Exames eram sua rotina. Já havia feito duas
cirurgias reparadoras. Na terceira o médico lhe avisou:
- Só mais esta Carmen, e poderá reconstruir a sua vida.
“Vida, que vida?” Ela pensou quando passava mais uma vez
pelo bloco cirúrgico. Não tinha uma vida para onde voltar. Sua ausência na criação
dos filhos fora irreparável. Não fazia a menor ideia de como iria se sustentar
e o médico já havia avisado que ela teria de conviver com algumas sérias limitações
para sempre.
Passou pelo grande relógio no bloco cirúrgico e pensou que
queria voltar no tempo, para antes de conhecer Mauro, depois lembrou que não
podia voltar tanto, pois assim não teria os filhos. Dez anos, seria perfeito.
Fechou os olhos com a anestesia.
- Acorda, mamãe, estou com fome!
Carmen abriu os olhos e viu o filho mais novo pequenino,
devia ter quatro anos. Os cabelinhos loiros enrolados, a mão gordinha. Abraçou
o pequeno e começou a chorar, os outros dois entraram rapidamente na sala,
então, abraçou os três. A melhor sensação que já teve em sua vida, ver os
filhos pequenos novamente. Ela pensava freneticamente o que faria diferente da
primeira vez, pensava numa maneira de segurar o tempo, talvez.
Explicou aos três pares de olhos que lhe fitavam preocupados
que havia tido um sonho ruim, nada mais. Preparou os lanches preferidos das
crianças e dedicou a tarde inteira aos filhos. Limparia menos a casa desta vez,
agora ela tinha certeza de que a vida era curta.
O filho mais velho só tinha dez anos, mas ganhou um
verdadeiro sermão sobre drogas e trabalho honesto. A filha, só tinha cinco, mas
ganhou uma aula de educação sexual que a deixou completamente apavorada. O
menor não queria parar para ouvir, mas precisou ficar sabendo sobre a
importância de jamais tomar posse de coisas que não são suas. Os três ouviram a
mãe falar por horas sobre as consequências de tudo que fizemos na vida.
Carmen se preparou psicologicamente para ver Mauro. Ele
chegou em casa à tardinha. Olhou para aquele belo homem e não conseguia
acreditar que ele havia atirado nela cinco vezes e se matado, deixando os
filhos à mercê de deus sabe quem. Quando ele se aproximou para beijá-la, Carmen
se virou abruptamente.
- Não me sinto bem.
- Ué, querida, vamos no médico.
Olhou desconfiada para o marido. Como ele poderia ter lhes
selado um destino cruel, sendo tão atencioso? E o principal, o motivo, tinha de
haver um. Mas Carmen preferiu não pensar.
Naquela noite, Carmen não dormiu. Levantou-se e se trancou
no banheiro por horas. Inspecionou o corpo. Não havia marca de cirurgia alguma,
nem a borboleta tatuada. Estava bem agora, corada, gordinha, saudável. Ela
tinha que se manter assim, tinha que fazer tudo diferente. Abriu a última
gaveta do banheiro e encontrou a caixa preta, escondida nela estava o famoso canela
fina, o revólver que quase havia acabado com sua vida.
De repente, as lembranças invadiram sua mente de uma vez só.
Mauro estava em pé na porta da sala, o revólver em punho. Os olhos arregalados
de raiva. Ela chorava, descomposta e pedia por favor. O primeiro tiro partiu a
borboleta, ardeu, queimou e sangrou. Ela não teve tempo de pensar quando ganhou
os dois da barriga, tonteou. Virou-se para correr e então foi atingida nas
costas e na nuca. Caiu e ouviu mais um disparo.
Lágrimas escorriam de seus olhos. Suas mãos tremiam no
banheiro. Desejou que tivesse sido mais um pesadelo, mas lembrou da nova chance
que ganhou da vida e decidiu aproveitá-la. Amanhã jogaria fora o canela fina.
E também Mauro.
No dia seguinte, Carmen pensou se jogava o revólver no rio
ou usava ele para matar Mauro. Refletiu e concluiu que não devia gastar sua
nova chance na cadeia ou os filhos teriam o mesmo destino cruel de antes. Tratou
de fazer tudo da maneira correta. Começou livrando-se do revólver.
Nos meses que se seguiram Carmen tratou de se divorciar.
Mauro ficou desolado e não conseguia saber o motivo. Já ela, não conseguia
olhar para aquele homem e muito menos fingir que o amava, até o cheiro de Mauro
era insuportável.
Ele a deixou com a casa. Ela arrumou um emprego, dedicava-se
em primeiro lugar aos filhos. Com Mauro tinha uma relação amistosa, pediu a ele
várias vezes que nunca abandonasse as crianças. Ele fingia estar tudo bem, mas
achava que Carmen apenas atravessava uma fase e que acabariam retomando o
casamento.
Dois anos depois, Carmen pegou seu filho mais velho com
drogas escondidas no quarto e quase infartou. Fez com que ele morasse com o pai
por uma temporada e exigiu que fizesse tratamento psicológico. Não era possível
que o destino seria cumprido exatamente igual, Carmen não aceitava.
Com o passar do tempo dedicou-se ainda mais aos filhos e os
longos sermões aumentavam. Tatuou sua borboleta no ombro direito exatamente
igual. Mauro teve um chilique assim que a viu e ela precisou lembrá-lo de que
ele não fazia mais parte da sua vida.
Sua nova chance estava sendo aproveitada a cada segundo. Na
sua visão, as coisas corriam bem. Os filhos estavam tranquilos e ela poderia
fazer da vida o que bem desejasse. Ainda tinha pesadelos com aquele dia, ainda
tinha arrepios quando lia notícias de feminicídio. Ainda não tolerava armas,
mas estava feliz. Tanto que, se permitiu assumir um novo relacionamento.
Mauro não aceitava que ela tivesse ninguém. Jogava sujo,
lhe ameaçava tirar os filhos. Tantos anos depois e ele ainda tinha esperança de
reatar. Carmen se manteve firme, Mauro era passado.
A vida nos prega peças, ou seriam as pessoas que a
dificultam ao extremo?
Sete anos depois, na noite em que teria ocorrido a desgraça
maior de sua vida, Carmen convidou seu namorado para um jantar em um
restaurante. Sandro era belo, dez anos mais jovem do que Carmen.
Estavam de mãos dadas, as taças de espumante cheias quando
Mauro entrou. Desta vez, ele não portava um revólver e sim uma pistola. O olhar
era o mesmo daquela tarde. O primeiro tiro acertou a cabeça do recepcionista
que tentou lhe impedir. O segundo, o peito de Sandro que caiu morto na hora.
Então ele olhou para Carmen cheio de ódio, em meio a gritaria de pessoas que
fugiam desesperadas, ela fechou os olhos, e sentiu a borboleta sendo novamente
deformada.
Naquele momento ela lembrou, da última vez que ganhou
aquele tiro, Mauro entrou em casa no meio da tarde e a pegou na cama com
Sandro. Lembrou da expressão de espanto nos olhos dele. E lembrou do primeiro
tiro na borboleta, quando olhou para o lado e viu o filho menor escondido atrás
de um armário. Então lembrou de quando caiu e viu os dois outros filhos
abraçados, chorando na cozinha. Como ela fora capaz de levar outro homem para
casa com os filhos pequenos presentes? Pelo menos na segunda vez procurou fazer
tudo certo, mas o destino não estava disposto a perdoar.
Levou os dois tiros na barriga, levantou apoiando-se na
mesa. Se virou e sentiu a ardência nas costas e na nuca. Caiu. Ouviu mais um
estampido e então o barulho do corpo de Mauro caído no chão. Antes de fechar os
olhos viu os três filhos correndo em direção a ela com um buquê de flores. Ela
seria pedida em casamento, eles estavam lá para uma surpresa, mas Carmen jamais
ficaria sabendo disso agora.
Três anos depois, acordou no hospital mais uma vez. E então
chorou desesperadamente. Ela lembrava de tudo o que havia ocorrido, nas duas
vezes. Mentalizou que queria ficar ali, exatamente naquela situação. Não queria
melhorar. Sua última chance havia ceifado duas vidas. Lembrava do
recepcionista, de Sandro e principalmente dos olhos dos filhos que, mais uma
vez, presenciaram tanta atrocidade.
Olhou para a borboleta partida ao meio e pensou que ela a
representava perfeitamente bem: uma mulher audaciosa que tentou voar e teve as
asas abruptamente arrancadas.
De mãos dadas com o destino agora, ela não queria mais
nada. Ela não sentia mais nada. Era não era mais ninguém.
Conto escrito por
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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