2x05 - A Sobrevivência do Natal
de Jair Lisboa
Ninguém deu lá muita importância quando,
na virada de 30 de novembro para 1º de dezembro, exatamente à meia-noite, uma
bizarra chamada foi ao ar durante mudos cinco segundos e invadiu as telas de
todos os televisores em todos os canais ligados daquele país ao sul do Equador:
“NÃO
HAVERÁ NATAL!
Deus”
Uma desconcertante mensagem estampada
com garrafais palavras brancas na língua pátria ao fundo de um vermelho
encarnado. Naquele instante pôde-se supor uma brincadeira randômica, de fato
complexamente bem elaborada, visto a sincronicidade e o alcance do evento.
O desconforto recaiu sobre as operadoras
de TV aberta e paga que já no dia seguinte se meteram em reuniões para entender
como o intruso pôde entrar em todas as faixas de frequências. E na pauta, criar
mecanismos de se protegerem dessa piada de mau gosto, afinal de contas cinco
segundos na TV valem um dinheiro colossal.
Mas acabou por se tornar um pesadelo,
visto que, por mais proteções que se arquitetava, de forma absurda, a profética
mensagem passou a iluminar a virada da meia-noite dos lares nos dias seguintes.
No mês de dezembro as pessoas têm mais o
que fazer que ficarem preocupadas com tais mensagens. Na loucura do trânsito,
no empurra-empurra das compras, na lista dos presentes da família e
especialmente das crianças, nas roupas adequadas, na luminosa decoração
natalina da casa, o foco é nas confraternizações, nas festas, nas comidas e bebidas,
etc., etc. Em suma, uma correria, entra dezembro e quando se dá conta já é
Natal.
Por outro lado, as emissoras de
televisão evitavam pôr o fato em evidência, talvez para não dar créditos à
zombaria pública. Porém, à boca miúda, já havia uma discussão sobre as
mensagens noturnas. Aguçados pela curiosidade, indivíduos permaneciam acordados
até meia-noite para ver de perto o suposto recado de Deus.
Mas qual não foi a surpresa quando do
dia 09 para 10 de dezembro, além da televisão, que ainda não tinha uma resposta
plausível à invasão, motivo de demissão de equipes técnicas, houve um estampido
como o de uma bomba, exatos meia-noite, resultante do som gerado
simultaneamente por milhões de ringtones
e bips, em todos os celulares ligados do país, não importando a operadora, com
a chegada de uma inesperada mensagem:
“NÃO
HAVERÁ NATAL!
Deus”
Número não identificado.
Como existem mais aparelhos celulares do
que gente, a suposta segunda manifestação de Deus ganhou rumores, surgindo nos
dias seguintes mensagens de chacota:
“Não haverá Carnaval! Diabo”.
“Não haverá Salvador! Espírito Santo”,
um trocadilho infame.
Farsa ou comédia, o fato é que no debate
agora, além dos engenheiros de telecomunicações, entraram também os de rede e
os analistas da informação. E batendo na mesa de reuniões os presidentes das
operadoras, sobressaltados e ameaçadores, querendo a todo custo um fim para
este absurdo.
- Estes hackers estão cada vez mais engenhosos. E estão conspurcando nossa
imagem, nos expondo ao ridículo! Exigimos uma solução em quarenta e oito horas,
nem um minuto a mais.
Os segmentos religiosos não manifestaram
particular importância, se limitando a considerar um sacrilégio usar o nome de
Deus desta forma, um hilariante despropósito, cuja forma de revelação, não constava
nas escrituras.
E as enigmáticas intervenções assim se
seguiram, TV e celulares, sempre à meia-noite. Muitos despertavam com os
petardos enquanto outros faziam questão de permanecer acordados em frente ao
televisor e celular na mão, no aguardo de novas instruções de Deus. À luz da
sombria realidade, aquela gente, na maioria religiosa, não disfarçava certa
inquietação em face daquele pequeno, mas possível manifesto da Providência
Divina.
Exageradamente se discutiu e
desmedidamente se riu, até que na virada do dia 14 para 15 de dezembro, a
situação se agravou. Além de toda a rede de televisão pública e privada,
somando à caixa postal dos celulares, agora os microcomputadores, tablets, smartphones, enfim, qualquer dispositivo que estivesse conectado à
Internet, cabeada ou sem fio, recebeu por cinco segundos em sua tela, com as
mesmas tintas, a famigerada mensagem; se não a mais curtida, pelo menos a mais
visualizada:
“NÃO
HAVERÁ NATAL!
Deus”
O alarme desta feita foi geral, com
reflexos nas vendas de Natal, que já vinham se enfraquecendo e desabando de
vez, pois já havia uma grande corrente acreditando que realmente era Deus se
comunicando. No comércio, vultosos investimentos em produtos natalinos não
saíam das prateleiras. A indústria, consequentemente, deixava de produzir toda
espécie de bens para a ocasião. As autoridades do governo, com a Bolsa de
Valores já despencando, sinalizavam reuniões de crise, diante da terrível
ameaça que arruinaria o Natal. Catástrofe essa gerada ironicamente por uma simples
sentença oriunda não se sabia verdadeiramente de quem.
Renomados especialistas em segurança da
informação também entraram na batalha, na busca de rastros digitais da invasão
cibernética do supremo. Podendo o sistema de defesa ser o próximo alvo, a
Polícia Federal também se engajou na investigação em busca de dar flagrante
nesse deus. Um esforço em ritmo acelerado, e contra o tempo, para desvendar um
insólito mistério.
Como é natural, os teóricos da
conspiração apareceram e asseguravam a interferência dos Estados Unidos, que já
era sabido, burilava os segredos soberanos de todo o universo. Outros, por
palavras muito menos claras, suspeitavam do envolvimento direto de russos,
saudosos soviéticos, e sua poderosa rede de satélites sobre nossas cabeças,
para desestabilizar o consumismo capitalista do Natal. De qualquer forma,
seguro mesmo era a precisão britânica: exata meia-noite e tome mensagem.
A polêmica, no entanto, tornou-se
bombástica quando o dia 19 se foi para dar lugar ao dia 20. Acompanhado das
mensagens que já se seguiam, em todos os rádios e televisores ligados em
qualquer estação de qualquer frequência, e mais, em qualquer telefone celular
ou fixo cuja chamada estivesse em andamento, uma imperativa e cavernosa voz
atacava com gravidade, em cabíveis cinco segundos:
“NÃO
HAVERÁ NATAL!”
Não dizia Deus no final, pressupondo-se,
portanto, que sua voz deveria ser sua própria assinatura.
Uma visão que há dias vinha ganhando
força por uma grande maioria era a dedução lógica de que se não haveria Natal é
porque o mundo iria acabar, ou seja, o final dos tempos. E que, sendo assim, em
uma linha de pensamento religioso, seria o Advento, a vinda prometida de Jesus,
justamente no dia do seu aniversário, para arrebatar vivos e mortos, cegos e
surdos, considerando-se agora a presença do áudio.
Na possibilidade de um cataclismo, o
pânico instalou-se de vez na população. Representantes de diversas religiões
saíram da zona de conforto e entraram na questão, afinal Deus veio a público,
num mundo rasgado por ódio, iniquidades, guerras e injustiças, se manifestar
verbalmente.
Mas por que tais episódios não envolviam
outros países? Que especial atenção ou irrevogável repúdio Deus tratava esta
pacífica gente, a sutileza de se dirigir no idioma da última flor do Lácio?
A calamidade tomou proporções
incontroláveis: a falta maciça ao trabalho, as discussões acaloradas nas ruas,
igrejas lotadas, debates em mesas redondas na TV, fóruns na Internet. Na praça
o velho bumbo voltou a soar com um cartaz “O fim tá próssimo”. As redes sociais não tiveram descanso, explodiram de
postagens. Peritos realizaram testes na voz de deus informando ter indícios de
ser sintetizada, porém não fazia a menor diferença para a investigação. Afinal,
que registros vocais haviam da dramática expulsão do Paraíso?
Diante da extrema gravidade vigente, o
gabinete da segurança institucional do País veiculou em horário nobre uma
declaração oficial:
“Tendo em consideração a falta de
elementos suficientes de juízo da procedência das mensagens, de ordem tão
confusa quanto delicada, informamos que o serviço nacional de investigação
segue desenvolvendo mecanismos e ferramentas para destrinchar nebulosa trama. E
que não havendo motivos para alarde, recomendamos à população em geral voltar à
rotina, que haja o comedimento e a tranquilidade de todos para um Feliz Natal”.
Mas antes mesmo da população se
recompor, veio uma nova surpresa: tal qual o programa político eleitoral, no
dia 20 de dezembro, as mensagens passaram a ser propagadas também ao meio-dia.
Inclusive alguns juravam que o tom do todo-poderoso agora estava mais incisivo.
Talvez porque, dado o número de receptores ligados, até quem estava na rua sem
nenhum aparato podia ouvir, por ressonância, a voz de deus se amplificando no
espaço livre.
E na iminência do fim do mundo, o
burburinho era geral, de norte a sul, cidades do interior e metrópoles, milhões
de pessoas, crianças e adultos, zelosos ou convencidos, céticos ou pessimistas,
discutiam a ameaçadora declaração. As evidências eram implacáveis e o desespero
se alastrou pelo país.
Diante do curso dos acontecimentos, já
havia de maneira ponderada questões na sociedade sobre a transformação do real
significado do Natal, ocasião para celebrar o nascimento de uma iluminada
criança que veio ao mundo em condições adversas, através da abnegação, da
benevolência e do amor. Contudo, há muito tempo o que imperava eram os
excessos, o assédio ao exagerado consumismo materialista, voltado para a
exterioridade das coisas, à futilidade nos presentes e a uma insensata
ostentação. De forma sarcástica e bem-humorada, alguém postou o seguinte
comentário:
- O Pai não está nada contente de ver
seu Filho banido da própria festa de aniversário.
Ocorre que os eventos misteriosos
passaram a tomar dimensões inimagináveis. No dia 21 de dezembro as mensagens
intrusas começaram a veicular de hora em hora. No dia 22 a invasão se dava em
intervalos de quinze minutos. O caos se estabeleceu nas redes de comunicações,
congestionadas pelo broadcasting:
“NÃO
HAVERÁ NATAL!
Deus”
Um engenheiro em telecomunicações com
mestrado em Teologia foi a público expor de forma didática sua visão:
- Fisicamente, as ondas eletromagnéticas
estão por toda a parte, o nosso corpo é bombardeado por essa energia vibratória
a todo instante. Algumas frequências do espectro dessas ondas podem ser vistas
e ouvidas, como as cores e os sons, outras são invisíveis. Qualquer aparelho de
telecomunicações operando nessa faixa de frequências pode sintonizar essa
energia. Ora, a se considerar Deus onipotente e onipresente, uma energia que
vibra no universo, significa que Ele pode irradiá-la em várias frequências para
qualquer dispositivo ativo, como um celular ou um rádio, tecnologias humanas. E
os sinais? Deus não viria ao toque de trombetas e clarins? Sim, em uma ordem
perfeita estabelecida por Ele, há que se reconhecer os dias atuais, uma
inteligência cibernética se manifestando através dos modernos meios
tecnológicos como o rádio, a TV, os celulares e as redes sociais.
E concluiu sua dissertação informando
que, a rigor, era humanamente impossível alguém arquitetar tamanho plano
diabólico, o qual jamais se teve notícia.
Um Doutor em Física Quântica discordou
do nobre colega, enfatizando que avanço tecnológico não faltaria para um
simples ser humano, ou um grupo, engendrar e executar o presente comportamento.
E para dar consistência nas palavras, justificou através de uma complexa
apresentação, mostrando ser um caso explícito do “manto da invisibilidade
temporal”. Entretanto, poucos gatos pingados entenderam o tortuoso raciocínio.
Por outro lado, considerado o
agravamento da questão, o receio de alastrar a ideia do fim do mundo, ou uma
hecatombe daquela Pátria mãe gentil, do ponto onde as pessoas poderiam atingir
fatídicas consequências diante da perspectiva do aterrador quadro da consumação,
as igrejas buscavam aplacar os seus fiéis, rogando-lhes as orações. Pois que
nada se sabe dos inescrutáveis propósitos de Deus, porém não haveria razões da
Bondade infinita condenar de forma peremptória um pobre país e seus filhos.
Mostrando-se irredutível, no dia 23 de
dezembro o suposto deus baixou uma artilharia pesada. As ocorrências passaram a
ter intermitências de cinco minutos e foi impossível usar a Internet e
celulares. Pela progressão que se dava, na incorruptível mecânica do tempo, não
precisava ser especialista para chegar à conclusão do que ocorreu a partir da
zero hora do dia 24. Simplesmente a mensagem passou a ocupar todo o tempo
disponível, veiculando nos meios de comunicação ininterruptamente. Filmes,
novelas, esportes, programas de auditório, músicas, notícias nos rádios ou
telejornais, nada entrava no ar. Nem mesmo os canais ou as rádios religiosas se
salvaram. Diante da avalanche, os telefones celulares sucumbiram. A Internet,
totalmente congestionada pelas mensagens divinas, travou. E os viciados das
redes sociais transitaram da euforia ao desespero, nada de Twitter, Facebook, Whatsapp, Instagram. No-selfies.
Na véspera de Natal, o dramático
pronunciamento à nação da Excelentíssima Presidente da República não foi ao ar
impossibilitado pela ocupação da mensagem do superior. Não havia qualquer forma
de comunicação remota, como se o povo daquele país tivesse regredido um século,
onde o telégrafo era o meio de telecomunicações mais avançado.
Convêm observar que, como uma onda,
excluindo-se aí conhecidos indivíduos que só sabem lamentar da vida, somando-se
as diversas classes de aproveitadores e filósofos de botequim, surgiu um
movimento daquele povo, crentes, ateus, agnósticos ou heréticos, gerado
possivelmente porque a tragédia é o maior motor do caráter humano, ou pelo
irremediável sentimento batalhador em se opor a uma possível ordem de
destruição apocalíptica. E improváveis fatos transcorreram em todo o
território.
Familiares que estavam distantes, no
tempo e no espaço, dentro ou fora do País, ou internados em asilos, regressaram
para passarem juntos o Natal, ou, a se considerar a tragédia, pelo menos as
vésperas. Homens e mulheres, jovens e velhos passaram a se encontrar, a
conversar frente a frente e a se abraçar. Inevitavelmente reviram suas vidas, a
fazer um exame de consciência na busca pela solução de discórdias e pedidos de
desculpas. Crianças levaram seus brinquedos às crianças de orfanatos e favelas,
em prol das pouco favorecidas, se divertindo juntas. Moradores de rua foram
convidados a partilhar o Natal nos lares, doações foram realizadas aos mais
pobres. Conforto foi levado aos que amargavam nos hospitais e braços foram
estendidos aos encarcerados, em gestos espontâneos de gentileza.
Perante às circunstâncias, o interior e
exterior das casas não exibiam as suntuosas decorações de anos anteriores e o
recurso utilizado foi reunir a família e erguer o bom e velho pinheirinho, já
desprezado por muitos, com os enfeites natalinos e a manjedoura de Jesus
Menino. Para a alegria das crianças que nunca haviam montado uma árvore, se
divertiram desenhando coloridos cartões de Natal, escrevendo mensagens
fraternas de próprio punho. E se deram conta que, estando a Internet há dias
congestionada, seus pedidos via e-mail
jamais chegariam ao Papai Noel.
Na noite de véspera, à mesa de Natal, a
família reunida, harmonizando ao centro, a luz de uma vela. Para celebrar a
ceia, humilde pela falta de provimentos, o pão e o vinho. Perus e frangos
similares agradeceram. E na esperança da manhã de Natal, descansava um panetone
caseiro. Uma ceia acompanhada de antigas histórias de Natal contadas pelos mais
velhos. Depois, em volta do pinheirinho iluminado, os cânticos de Natal,
aprendidos e ensaiados nos últimos dias. Noite
Feliz, a mais bela, comovendo a todos. Pouco se falou em Papai Noel, porém,
evidenciando mais sentimentos que discursos, intensamente se enalteceu o Menino
Deus. Como se não houvesse o amanhã, cartões foram presenteados, palavras
afetuosas foram ditas entre casais, gestos calorosos, beijos e abraços foram
trocados pelas famílias. Retratos fiéis e reais, sem fotos, sem publicações,
sem televisão, sem vídeos, sem conexões virtuais, nada que pudesse desviar as
atenções.
Meia-noite se aproximava, as ruas
praticamente desertas. E todos apreensivos silenciaram, meditativos, imersos no
espírito natalino, alguns de mãos dadas, outros em preces. Os segundos
avançavam lentamente.
...23:57,
23:58, 23:59... Meia-noite. Eis que, saudando a entrada do novo
dia, a incógnita mensagem finalmente deixa de existir. E dá lugar aos primeiros
acordes de uma singela melodia, a cantata Jesus
Alegria dos Homens, de Bach. A música nos seus mais de três minutos leva
muitos a transbordar lágrimas. E logo em seguida, contrastando à primeira,
invade uma alegre marchinha de Natal, Boas
Festas, de Assis Valente, movendo aquelas pessoas, alegres por natureza, a
cantar e a dançar.
Depois disso, não há mais mensagens ou vozes, a convicção definitiva de uma dádiva, a chegada do Natal. A euforia e a paz tomam conta de todos, como se houvera o renascimento da vida, na esperança de que melhores dias poderia vivenciar aquele povo sofrido. Vibrantes, saem às ruas para melhor contemplar a maior decoração idealizada naquela noite: o céu estrelado ao abençoado calor daquele maravilhoso país.
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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Sinopse: Durante um rápido intervalo para o cafezinho, Otto ouve parte da conversa entre Diana e Lílian, em que a primeira relata a tristeza do filho, de 8 anos, pela perda paterna. Solidário, Otto se aproxima de Diana e da criança, Diego, a fim de ajudar o menino a superar a dor desse momento. De início, a partir de um presente de natal antecipado, propõe-lhe um desafio em tom de brincadeira. Ocorre que, com o passar dos dias, para surpresa de todos, a brincadeira se transforma em algo grandioso e traz ao mundo, às vésperas do natal, um livro infantil, que se torna best seller. A empatia de Otto por Diego, não só resgatou o menino de um momento depressivo, como revelou, precocemente, um novo escritor. Todos nós podemos, vez em quando, dar uma forcinha a Papai Noel no natal, assim como Otto.
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