2x20 - Reencontro em uma Noite de Natal (Season Finale)
de Cristina Faga
Minha mãe segurava o
menino Jesus no colo e seu olhar perdia-se no meio da árvore. Eu terminava de
passar o fio das luzes coloridas entre os galhos do pinheiro e fiz o primeiro
teste, acendendo a luz. Em alguns lugares, ficara um amontoado de luzinhas.
Apaguei-as e as separei para deixá-las distribuídas com equilíbrio.
Quando olhei para
minha mãe, ela ainda segurava o menino Jesus, perdida em lembranças de outros
Natais. Eu podia apostar que ela havia voltado à infância, quando seus dois
irmãos menores ainda não a perturbavam tanto. Intrometi-me no meio dos seus
sonhos:
– Então, mãe, ficou
bom? – e acendi as luzes.
Ela não me
respondeu. Minha pergunta só serviu para ela sair do transe:
– Será que eu já
coloco o menino Jesus na manjedoura ou espero até a meia-noite? Osnir gosta de
ver o menino Jesus somente à meia-noite, quando ele nasce, efetivamente. Já
Evandro gosta de vê-lo sob a árvore quando chega. O que eu faço?
– O que a senhora
quer fazer?
Desta vez, minha
pergunta serviu para colocá-la de volta ao transe. Ela não sabia o que queria
fazer. Seus lábios balbuciavam uma oração, os olhos fechados pediam com fervor
por uma mudança, por um milagre. Afastei-me da árvore para ver se estava bom.
Sim, agora as luzinhas tinham ficado espalhadas com harmonia. Harmonia! Era
isso o que, em outras palavras, minha mãe pedia a Deus.
Todo Natal era a
mesma ladainha: minha mãe, a dona Idalice, contava-me a mesma história na clara
intenção de resgatar, em cores vivas, a aquarela da memória cuja paleta fora
desbotada pelo tempo.
Dona Idalice era
mais velha que os dois irmãos: de Osnir, cinco anos e de Evandro, sete. Desde
muito cedo, ela teve a responsabilidade de preocupar-se, de cuidar, de
apaziguar os dois irmãos menores, devido à saúde debilitada da mãe, dona
Francisca. E desdobrava-se em cuidar da mãe, dos irmãos menores, da casa,
enquanto o pai, seu Antônio trabalhava como motorista de ônibus para dar
sustento e dignidade à família.
Mas houve um dia… –
sempre há um dia a partir do qual toda a história é marcada, todo o trajeto é
desviado, e tudo o que acontece depois é considerado como fruto, consequência,
desdobramentos desse dia. É o dia “D”. Isso é minha mãe falando. Sempre a
questionei se seria mesmo assim, se esse dia “D” não seria apenas um pretexto
ou um motivo para justificar tudo o que deu errado depois, tudo o que foi
diferente do planejado, tudo o que saiu do previsto e idealizado. Mas também
entendia que para ela, o dia “D” era um escape, era mesmo a origem palpável de
acontecimentos e fatos sobre os quais ela não teve nenhum controle.
Como dissera, houve
um dia a partir do qual os irmãos começaram a brigar e nunca mais pararam. Eles
se estranhavam. Não agiam como irmãos. E sobre os ombros de dona Idalice pesou,
além de todos os infortúnios, a culpa. Ela se sentia culpada, de alguma forma,
pelo estranhamento dos irmãos menores. Perguntava-se se foi alguma atitude que
tivera, uma predileção, muito mimo ou o contrário, um ódio enrustido, uma raiva
não declarada, questionamentos próprios de uma verdadeira mãe.
Com o passamento dos
pais, era natural que nos Natais a família se encontrasse na casa da dona
Idalice. Mas, não! Eles não agiram de modo natural. Eles disputavam um lugar
especial. Num ano, quando Osnir passava o Natal com Idalice, Evandro passava o
Ano Novo. No outro ano, trocavam de posição e era Evandro quem compartilhava a
ceia de Natal com minha mãe e Osnir comemorava conosco o Ano Novo.
Minha mãe estava
cansada da disputa, do amor fragmentado. O cansaço se devia ao peso da idade. A
cada ano, ela sentia suas forças se esvaírem. Isso era a vida! Nascer, crescer,
desenvolver-se e depois morrer. Os irmãos também estavam velhos. Cada qual com
sua família, três filhos cada um, todos crescidos, formados, iniciando nova
família. Minha mãe teve só a mim e eu entendo o porquê: tendo que cuidar dos
outros por tanto tempo, ela não achou tempo de cuidar de mais filhos. Eu até
gosto da exclusividade. Vendo a briga dos meus tios, tinha medo que alguma
coisa semelhante se desse comigo e meu possível irmão ou irmã.
Naquele Natal, ela
pediu que fosse diferente. Que os dois irmãos pudessem sentar-se à mesa, que
todos pudessem se confraternizar, sem disputas, sem brigas, sem rivalidades ou
ressentimentos envelhecidos. Eles concordaram sem reclamação. Talvez tenham
percebido alguma coisa diferente na entonação de sua voz.
Minutos antes de os
convidados chegarem, vi os lábios de mamãe se moverem num pedido insistente. Os
olhos absortos, as mãos trêmulas, o sorriso hesitante.
– Margarida, ajeite
o menino Jesus no cesto de palha, por favor! – pediu-me insegura.
Eu ajeitei e, assim,
assegurei-lhe que tudo daria certo.
A partir do toque da
campainha, o tempo ficou maluco. Passava depressa em alguns momentos e noutros
ia devagar. Os irmãos se cumprimentaram, as famílias se abraçaram e o foco das
atenções voltou-se para o peru que já exalava um aroma espetacular. Frutas
sobre o aparador. Castanhas e nozes espalhadas pela mesa. E quando dona Idalice
sorria de felicidade, conversando com as cunhadas, ajeitando os guardanapos ao
lado dos pratos, ouviu-se um objeto cair ao chão e quebrar-se. Todos correram
para a sala: tio Osnir pegava a cabeça do menino Jesus, enquanto tio Evandro
pegava o resto do corpo.
– Mas custava deixar
o Jesus Cristinho no lugar de seu nascimento!
– Ele ainda não
nasceu! Quer que ele nasça prematuro?
– É só um símbolo,
seu burro!
– Se é só um
símbolo, então, tanto faz! Tira-se o menino Jesus e coloca-se quando der a
meia-noite! E faz-se a minha vontade, e pronto!
– Ah! Então é disso
que se trata? Sempre tem que prevalecer a sua vontade, seu barão?
– Se não for a minha
vontade, é a sua que prevalece, bobão!
– Bestão!
– Bobão!
Se eu não estivesse
tão preocupada com mamãe, diria que a cena era muito engraçada: dois velhos
rabugentos brigando pela imposição de sua vontade, como dois birrentos mimados!
Minha mãe correu pegar a cola que tudo cola e a passou nas partes que haviam se
separado. Ela tentou juntar, mas suas mãos trêmulas não conseguiam a calma
necessária para fazer a junção. Então, ela explodiu:
– Passei a vida
inteira tentando fazer isso – juntar duas partes quebradas com amor, dedicação,
cuidados e olha o que eu ganhei: meu Jesus inocente quebrado! É isso o que
vocês fizeram comigo a vida inteira! Pois bem! Vocês quebraram, vocês que
consertem! – e saiu para o quarto chorando.
Não sabia o que
fazer, se corria atrás de minha mãe ou se ficava para ver o que ia acontecer e
não deixar acontecer o pior. Pena que mamãe não estava para ver o que sucedeu.
– Você sempre foi um
arrogante, um idiota, um imbecil!
– Não, não! Esse aí
é você, um imbecil, um idiota, um comedor de mortadela, arrotador de caviar! Dá
isso aqui que eu vou consertar!
– Não! Eu vou
consertar!
E puseram-se os dois
a puxar o Cristo de porcelana novamente. Fizeram tanto esforço que os dois
caíram no chão. Bom, aí ninguém aguentou. Todo mundo caiu na gargalhada. Até os
dois riram da palhaçada que encenaram. Tio Osnir se levantou primeiro e deu a
mão para tio Evandro. Os dois se abraçaram, enquanto ainda se xingavam. Riram e
consertaram a cabeça de Jesus Cristo.
Fui buscar dona
Idalice que apareceu à sala com os olhos vermelhos. Os três se abraçaram. Os
dois irmãos pediram perdão para a irmã mais velha. E depois do vexame, todos
fomos para a mesa cear.
Parece que o pedido
de minha mãe foi atendido. Pairava uma harmonia serena, como se a família
sempre tivera a atitude de paz e tranquilidade – a vida inteira.
Meus tios
olhavam-se, falavam-se, descobriam-se como se estivessem se vendo pela primeira
vez, como se estivessem percebendo suas diferenças, admitindo que tais
diferenças eram interessantes, complementares, enriquecedoras.
O que será que os
levou a viverem por tanto tempo separados, resguardados do afeto um do outro?
Será que alguns poucos xingamentos, aqueles que deixaram de dizer um ao outro
quando eram crianças, seriam suficientes para interromper o silêncio, aplainar
o abismo que se formou entre eles? Que mecanismos atuavam sobre a alma, a
mente, o comportamento deles? Talvez nunca venha a saber.
O que eu sei é que,
a partir daquele dia, daquele Natal, o outro dia “D”, os irmãos agiram
naturalmente como irmãos. E minha mãe, sentindo que tinha, finalmente, cumprido
sua missão, alcançado a graça que tanto pediu a Deus, pôde nos deixar seis
meses depois daquela noite de Natal memorável.
Em todos os Natais
subsequentes, em que continuamos a passar juntos, aquela imagem de Jesus Cristo
na cesta de palha foi requisitada. Ela era um símbolo. Não. Era mais que um
símbolo! Era a presença de dona Idalice no meio de nós e a certeza de que Jesus
Cristo está vivo e atuando em nossos corações!
E ainda há aqueles
que não acreditam em milagres!
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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Sinopse: O nascimento do menino Jesus é recontado de um outro ponto de vista e ambientado num cenário genuinamente brasileiro.
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