3x01 - A Origem do Natal - A História Recontada (Season Premiere)
de Alex Xela Lima
É bem cedinho. Ouço no quintal o canto desafinado do galo
que acabou de espertar. Mamãe já está de pé na cozinha simples de nossa casa de
taipa preparando o café reforçado para este dia tão importante. Por uma fresta
do telhado, uma luz pousa suavemente sobre ela, iluminando seu rosto alvo. É
uma cena tão linda, mamãe até parece uma santa.
Papai acaba de chegar da roça, foi alimentar os bichos.
Falei no plural não porque sejam muitos, mas porque são três: uma vaca, uma
ovelhinha e um jumento, o Jericó. O último é o meu favorito e será nossa
companhia na viagem que temos de fazer. Ouvi dizer que será uma viagem longa e
exaustiva, e como mamãe está grávida, precisará bastante da ajuda do acanhado
jumentinho.
Uma nuvem de preocupação cobre papai, mas ele está assim
desde que soube da gravidez. Mamãe se mostra um tanto ansiosa pela viagem. E
Jericó é o único que está pronto, com as trouxas nas costas.
Partimos com o sol ainda nascendo por detrás do serrote. Dá
pra sentir aquele cheirinho bom de dia nascendo. Exala pelo caminho um cheiro
bom do meu lugar, da minha caatinga. Papai vai na frente. Com uma das mãos, ele
guia Jericó, com a outra, segura firmemente e se delicia com uma tapioca que
mamãe preparou. Eu vou aqui atrás desfrutando dos carinhos de mamãe.
Horas de caminhada se passam. Há um sol gigantesco que paira
sobre nossas cabeças e nos castiga. Mas precisamos mesmo ir à cidade. Ouvi
dizer que vamos resolver questão de família, coisa muito importante. Gente
grande é assim mesmo, dá muita importância para algumas coisas.
Pelo caminho de terra esturricada, papai poucas palavras
disse; perguntou se mamãe havia trazido café e cuscuz. Cuscuz é o pão nosso de
cada dia do sertanejo e o café não pode faltar. Mamãe segue pela estrada
cantarolando canções tão bonitas, que me transmitem uma sensação tão boa. Não
sei como explicar, só sei que mamãe às vezes parece ser um anjo na terra.
Já passamos por vários povoados, muitas marcas de sandálias
e exuberantes mandacarus ficaram para trás. A noite vem chegando mansa e
tranquila. São tão bonitas as noites de dezembro, há incontáveis estrelas no
céu... Mas uma estrela em especial está chamando a atenção de mamãe. Ela disse
que a estrela parece nos seguir. Isto seria possível? Papai disse que ela está
imaginando coisas por causa do cansaço da viagem. Deve ser o calor, é verão.
Um dia inteiro de viagem, não estou me sentindo bem.
Sinto-me sufocado. Para completar a agonia, ouço um barulho esquisito. Foi
Jericó! Ufa! Menos mal, não foi nada com ele, apenas uma das trouxas que
desamarrou e caiu. Papai já está dando um jeito. Para meu maior espanto, ao
levantar as vistas, papai aponta todo animado: — Maria, ali é Belém! Estamos
bem perto agora.
Neste ínterim, mamãe, segurando o pé da barriga, grita: —
José! Me acuda! O neném vai nascer!
A animação de papai, não mais que de repente, se converte em
uma grande aflição. Nós avistamos a cidade, mas ainda estamos distantes e
cansados, e para completar, não temos um lugar certo para passar a noite. A
minha agonia aumenta cada vez mais.
Sem pestanejar, papai coloca as trouxas nas costas. O pobre
Jericó carrega mamãe o mais rápido que pode. Enquanto isso, o meu mal-estar só
aumenta, me sufoca. Não encontro posição que me conforte.
A passos largos, seguimos pela estrada, descemos um último
alto antes de entrar pela rua principal da cidade. As pessoas nos olham
esquisitas, cheias de desconfiança e estranheza. Papai puxa do bolso de sua
camisa um pedaço de papel com um endereço que tia Isabel havia lhe dado dias
antes. Entramos por uma rua estreita.
— É aqui! Encontrei a pousada. — anuncia papai.
Ele bate a aldrava na porta. Mamãe sente dores. Bate
novamente. É alta noite. Mamãe sente dores cada vez mais fortes. Em paralelo a
isso, minha agonia se torna insuportável, eu preciso sair daqui. Papai empunha
fortemente a aldrava e bate terceira vez. Nada se abre. Mamãe se contorce num
grito. E um senhor com semblante irritado, enfim, entreabre a porta.
— Aleluia! — suspira mamãe.
O homem da pousada, por trás de seus bigodes encurvados,
pergunta o que queremos ali àquela hora. Papai tropeçando nas palavras lhe
explica o ocorrido e ouve a dura recusa: — Não temos vagas na pousada e isso
daqui não é hospital.
Papai, sem argumentos, olhando pro céu, como que implorando,
balbucia: — Eloim, Eloim, onde estás?
De súbito, uma senhora esbaforida atravessa a rua e impera
sobre nós: — Venham comigo! Eu tenho um lugar para vocês.
De um salto, atravessamos a rua, papai com as trouxas nas
costas, mamãe sendo conduzida por aquela senhora, Jericó correndo atrás e eu já
vendo tudo ficar branco à minha frente. Não suporto mais essa agonia.
Papai percebe que não há mais tempo de chegarmos na casa,
adentra por uma cancela, entramos em um celeiro. Mamãe não se aguenta mais em
pé. — O neném vai nascer aqui. — ela repete. Do meu lugar, não vejo mais nada,
apenas uma luz…
Ouço mamãe conceber um grito intenso... Neste instante,
mergulho na luz que se abre a mim e começo a chorar...
Meu pai chora, todos à volta de minha mãe choram. Acredito
que até Jericó está chorando de alívio e de alegria neste momento.
Papai, numa mistura de riso e choro, olhando para mim
amorosamente, comemora: — Maria, nosso Emanuel nos nasceu. Há no recinto
inimaginado uma alegria contagiante que abraça a todos.
Eu, agora, liberto da agonia e dentro de um balaio de cipó,
olho na direção da porta e consigo ver a estrela que mamãe falou e posso
afirmar que ela é extremamente linda, como um diamante brilhando no céu.
Sem que esperássemos, entram pela porta três homens vestidos
de roupas de couro, chapéus na cabeça e chibatas na mão. Os intrigantes
visitantes se apressando, retiram de seus alforjes pequeninas sandálias de
couro, uma quartinha com água fresca e um gibão de belíssimos bordados, os
quais são colocados juntos a mim.
Extasiados, em unânime, levantam as mãos ao céu e anunciam:
— Nasceu o Salvador do Sertão!
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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