3x07 - Papillon - O Voo de Raquel
de Gisela Peçanha
Olhavam-se à distância. A mesa de doze lugares (ornada com uma toalha de seda francesa, e taças de vinho de cristal vermelho), os protegia da proximidade, dentro do mormaço do silêncio. De quando em vez, os passos de Dorotéia – a governanta – ecoavam sobre a tábua corrida brilhante e reluzente - meticulosamente polida para a noite de Natal. Sim. Era véspera de Natal.
Lá fora, luzes dos pinheiros coloriam um todo
branco e gélido, mas corações permaneciam vazios e sem esperanças. Os corações
com dor, sem brilho e sem voz. Mudos.
— Pudim de nozes, Senhora? – Perguntou Dorotéia, ao servir seus patrões - sentados, cada um na ponta
extrema da mesa imensa. Ele, grisalho, vestindo um terno azulado, porte
diplomático; ela, esguia, fechada, dentro de um vestido de veludo negro. E, dentre o tintilar de talheres de prata, o barulho do
engolir do vinho, e a marcação rítmica dos saltos dos sapatos da governanta
sobre o piso de madeira, apenas o som das gargalhadas e cantorias natalinas –
vindas da vizinhança. Era um bairro alegre e movimentado, no ponto mais alto da
serra da cidade de ‘’Saudades’’, no Rio Grande do Sul. Muitas crianças
emprestavam seus sorrisos e suas leves vidas, e seus puros anseios de apenas
serem felizes a cada minuto. E, na noite de Natal, não poderia ser diferente.
— Carmem, por
favor, melhora a sua cara. É Natal. –
Pediu Bernardo, cabisbaixo.
Ela – discretamente – secava com o guardanapo,
uma ou outra lágrima que deixava escapar. Engolia a comida que não tinha sabor.
Doces que não tinham doçura. O azedo e o amargo que retratavam a vida sem
gosto. Nada lembrava uma noite de Natal. Comer pão e beber água, ou estar
defronte a um banquete como aquele, significavam o mesmo. Não se olhavam. Não
sorriam. E Carmem alternava o enxugar das lágrimas, com beijos num pingente de
borboleta que trazia no peito. Há um ano ela usava este cordão; o havia
comprado para a filha Raquel, no Natal passado... uma borboleta de ouro, com
anteninhas de brilhantes...seria o presente para a menina amada. A garotinha
dos olhos cor de céu de brigadeiros. A chama de sua maternidade. A luz da vida.
— O que quer que eu
faça? Que finja que sou feliz? Que cante? – Irritava-se Carmem.
Bernardo expressava desalento. Perdia a fome.
Um nó na garganta. Não suportava mais a melancolia da mulher que definhava a
olhos vistos, e só fazia chorar pelos cantos. Dorotéia também tinha os olhos marejados,
por entender o sofrimento daquela mãe que nunca mais veria sua filha única,
falecida poucos dias antes do último Natal – num acidente de barco.
Não sabia nadar. Tinha apenas dez anos. E foi tudo tão de repente! Numa
viagem de férias para o litoral do Nordeste, numa tempestade repentina, uma
onda veio do nada e derrubou tudo: a vida, a esperança, e o berço do anjo. A
menina colocou a boia e estava agarrada à mãe, mas ambas foram jogadas ao
longe, para o fundo. Carmem se debatera na água como uma leoa feroz, mas não
conseguiu salvar a menina. E, todos os dias após esse momento, foram mergulhos
em culpa, em dor, e em sono; assim, ela ia empurrando a vida. Bernardo se
refugiava, diariamente, em garrafas inteiras de vodca. Ela, dormia sem parar e
nunca mais entrara no quarto da filha, que ainda estava intacto; dezenas de
bonecas de pano ou de louça, sem sorrisos e sem colo. A cada quinze dias, a
arrumadeira tirava o pó e varria, sem derrubar nada nem retirar qualquer coisa
do lugar. Mas, Carmem, há um ano não entrava lá.
Para ela, o Natal estava encerrado. A ceia sem fome. Sem troca de beijos,
sem brindes, sem orações ou presentes. Dorotéia retirou a mesa, trocou de
roupa, despediu-se de Carmem com um abraço cúmplice e afetuoso, e foi cear com
seus filhos. Bernardo trancou-se no escritório para embebedar-se ainda mais,
afundado sob sua plataforma de sobrevivência.
Carmem decidiu recolher-se também, e deu por finda, a ceia de Natal. Atravessou o corredor com dezenas de fotos de Raquel, e foi olhando, uma a uma. De quando em vez, parava diante de um dos retratos e dava um beijo chorado. Lágrimas asfixiavam seu peito. Aquele corredor escuro, interminável, passarela de toda uma vida da menina. Parou diante da porta do quarto da filha, acariciou a madeira cor de rosa, passou a mão na maçaneta em formato de coração e, mais uma vez, beijou o pingente de borboleta.
— Raquel, meu amor...mamãe não
conseguiu lhe dar este colar... sussurrava, encostando o rosto contra a madeira...até
que, inexplicavelmente, o trinco desengatilhou e a porta se abriu. Num ímpeto
de coragem, Carmem respirou fundo e decidiu entrar.
Acendeu a luz do abajur e passou os olhos em
tudo: viu o armário, as cortinas, as bonecas prediletas, e um casaquinho
deixado sobre a poltrona. Tudo igualzinho ao último dia da menina. Lentamente,
tomou nos braços o casaquinho de lã e o levou ao rosto, esfregando na face com
sofreguidão – até ralar a pele. Sentindo o cheirinho da filha, via que tudo
ainda estava ali! Deixou-se cair sobre o tapete, agarrada ao casaco, emitindo o
choro mais dolorido que alguém – um dia – ouviu, numa noite de Natal. Chorou,
por horas. Lágrimas de um oceano inteiro. E, exausta, esvaziada, em posição
fetal, adormeceu profundamente; abraçada ao casaco e apertando forte contra o
peito, a inseparável borboletinha dourada.
Os primeiros raios da manhã penetraram através da janela, cortando com
filetes dourados a cortina de renda. Era o dia de Natal. O sol aquecido
transformava o quarto – antes escuro – num solo de cores. O tapete branco,
estava da cor das laranjas doces e do cobre forte.
Carmem começou a abrir os olhos e a dar-se
conta de onde estava. O quarto era pura luz, e pássaros alvoroçados entoavam
melodias de boas-vindas a um novo dia que chegava.
Inusitadamente, ela sentiu seu coração
tranquilo, borbulhando amor e ternura. Olhando tudo a sua volta, teve até
vontade de sorrir, como há muito tempo não fazia. Sentou-se no tapete, pegou o
casaquinho e o dobrou cuidadosamente, colocando-o de volta sobre a poltroninha.
E, como em todas as manhãs, buscou o pingente de borboleta para dar o primeiro
beijo do dia. O presente de Natal que ela jamais entregou à filha; mas, ao
procurá-lo no peito, não havia mais nem o cordão nem a borboleta! Olhou pelo quarto
todo, vasculhou todos os cantos! Rastejou por cada pedacinho do chão, na
esperança de encontrar o objeto tão amado. Mas nada encontrou... dormira segurando
firme a borboletinha, dentro de sua mão quente, apertando forte: sobre o
coração. Todavia, Carmem não se desesperou pela falta. Ao inverso.
Surpreendentemente, sentiu-se em paz...
Ergueu-se e escancarou a janela do quarto. A
geada da madrugada derretera toda, enxugada por um raro forte sol de inverno
sulista. Deixou este sol entrar e aquecer seu rosto, na primeira manhã que viu
em cores, no último ano.
Não apertaria mais a borboleta sobre seu
coração, como fazia desde o Natal passado. E em todos os dias. Nem mais a
beijaria, em lágrimas, a cada amanhecer e em todo o anoitecer.
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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Sinopse: Um homem se dá de presente de Natal um filhote de cachorro, o narrador da história, que recebe o nome de Charlie. Charlie e seu papai vão para uma festa natalina e na volta para casa sofrem um acidente que vai mudar a vida dos dois.
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