3x09 - Um Presente para Sempre
de Cupertino Freitas
Quando a gritaria começava, só a
comida servida ou o apagar das luzes fazia a turma parar. Meu irmão e
companheiro de gaiola não se importava com o estardalhaço, mas eu me incomodava
muito. Fechava os olhos e tentava bloquear o barulho me aconchegando a ele. Era
um líder nato, meu irmão. Lambia minhas orelhas e eu já ficava mais calmo.
Enquanto esteve comigo, senti-me protegido. Mas foi levado por uma moça de
cabelo engraçado e eu acabei tendo que ficar sozinho na gaiola, aguentando o
choro alto dos filhotes da nova ninhada.
Meus dias de solidão se acabaram na
tarde em que apareceu um homem careca acompanhado de um outro com os olhos
esbugalhados. O careca olhou para mim e sorriu. O de olhos esbugalhados
comentou: “ele é mesmo uma graça, mas parece um pouco estressado”. O careca
então falou: “leve ele para fazer xixi”. Depois que eu terminei de fazer xixi,
o homem de olhos esbugalhados me pegou nos braços afetuosamente e disse: “Você
é o meu presente de Natal, Charlie, e eu vou ser o seu novo papai”. Foi assim
que fiquei sabendo o que eu era, qual o meu nome, e quem era meu papai.
O careca era o pai de papai. A casa
dele era enorme, toda iluminada com lâmpadas coloridas. O som de uma música
saindo de um aparelho pequeno e possante falava em uma noite venturosa, em que
nasceu o Salvador — “Glória in Excelsis Deo”! Eu adorei a música e papai
parecia entender isso: de vez em quando, mexia no aparelhinho e a música
voltava a tocar. Estava tão feliz, me abraçava e fazia questão de me mostrar
para cada um que chegava. Ouvi muitos elogios, todos diziam que eu era lindo.
Nessa atmosfera festiva, os humanos
rasgavam papeis e jogavam no chão, e tiravam presentes de dentro de caixas de
papelão — roupas, vidros com líquidos cheirosos, objetos estranhos. Eu não me
interessava por nada daquilo, mas as caixas me impressionavam bastante. Peguei
algumas, sorrateiramente, e me diverti a valer, sem ser importunado — estavam
animados demais para ver o estrago que eu estava causando. Depois de algum
tempo, todos foram para a mesa de jantar. Eu fiquei embaixo da cadeira de
papai. Ele me deu uns pedaços de carne. Poucos, infelizmente, pois uma senhora
tola disse que não se devia dar comida de humano para cachorro.
Voltamos para casa tarde da noite,
no meio de uma chuva gelada. Fomos por uma estrada cheia de curvas; tinha muita
água na pista. A música bonita de que eu gostava tocava no rádio. De repente,
ouvi um estrondo e comecei a ser jogado de um lado para outro. O motor do carro
parou, mas a música, não. O refrão continuava sem cessar — “Glória in Excelsis
Deo”!
Esperei pacientemente que papai
despertasse. Até que a fome apertou. Fui atrás, por conta própria, de algo o
que comer. Andei muito, até que, exausto e com frio, deitei no acostamento e
adormeci. Acordei assustado com um homem gordo de barba branca me pegando pela
nuca e me jogando em um saco. Fiquei lá dentro, tremendo e temendo por minha
vida, ouvindo o barulho de tralhas de ferro chacoalhando e batendo umas nas
outras. Eu gritava, na esperança que papai me ouvisse. Talvez tivesse acordado.
O sol já estava claro quando
consegui colocar o focinho numa fenda do saco e senti o cheiro de comida.
Haviam pessoas sentadas em mesas ao ar livre se alimentando e rindo alto. Eu
precisava desesperadamente que alguém me desse um pedaço do que estavam
comendo. Usei minhas últimas forças e lati choramingando. Então, uma garota de
olhinhos puxados abriu o nó do saco, olhou-me gentilmente e pegou-me em seus
braços. A metade do seu sanduíche matou a minha fome. Depois, os pais da
menininha conversaram com o homem de barba branca, que permitiu que eu seguisse
viagem com eles. Fiquei com esperança de que estivessem me levando de volta
para papai. Com certeza, a essa altura ele já havia acordado e estava à minha
procura.
Fomos parar numa cidade grande, bem
maior e mais barulhenta do que a cidadezinha em que eu vivia com papai. A
família morava em um apartamento num prédio cheio de pessoas de olhinhos
puxados. A menininha implorou aos pais para que eu ficasse, mas eles lhe
explicaram que o proprietário não permitia animais nos apartamentos. Eles iriam
me deixar num abrigo, e lá alguém iria tomar conta de mim. Logo, logo, eu teria
um papai. Fiquei aliviado quando ouvi aquela palavra doce. Ansiava por chegar
logo a esse tal de abrigo.
Os voluntários limpavam e tentavam
manter tudo em ordem, mas não conseguiam, porque eram muitos cachorros ocupando
um espaço reduzido, e todo dia chegava pelo menos mais um. Havia uma grande
crise, eles diziam; os humanos estavam perdendo seus empregos e não podiam mais
cuidar de seus animais de estimação. No abrigo havia cães de toda raça, idade e
procedência. Alguns, como eu, resgatados por uma família bondosa, outros que
eram vítimas da tal crise, outros tantos negligenciados, ou que se perderam de
seus donos, e uns que nunca encontraram quem os quisesse por terem algum
defeito ou transtorno. Não era um lugar agradável. Mas eu pensava que era o
local ideal para eu reencontrar papai.
Não gostei de ter como companheiro
de canil um poodle que rosnava o tempo todo. Nossos vizinhos eram um pastor
alemão de latido raivoso e uma vira-lata que adorava uivar. Eu desenvolvi a
mania de ficar rodando dentro do canil. As pessoas me olhavam, me achavam
sapeca, mas estranhavam meu comportamento. Eu ficava rodando porque sentia uma
angústia imensa por estar ali, preso, e, principalmente, por esperar tanto por
papai e ele não aparecer. Será que havia se esquecido de mim?
O tempo foi passando e eu perdi a
esperança de que papai viesse me resgatar. Adoeci de tristeza. Fiquei com o
pelo feio, apareceram feridas em meu corpo. Elas coçavam, ardiam, me irritavam.
Emagreci. O doutor apareceu no abrigo, tirou meu sangue, me deu remédio. E
disse que não tinha mais o que pudesse fazer. Eu sentia muita dor e
desconforto. Deixei de comer, de beber água, e, finalmente, de fazer xixi.
Numa noite muito fria, o doutor veio
ao abrigo, me deu uma injeção e eu caí num sono pacífico e profundo. Acordei
num lugar diferente de todos os que já havia estado. Era iluminado por lâmpadas
coloridas, mas não como as da casa do pai de papai. As luzes resplandeciam
intensamente; eram como estrelas no céu, e enchiam o ambiente de paz e alegria.
Havia música tocando, a que eu tanto gostava, linda, só que não havia
aparelhinho, nem rádio, nem nada. A melodia estava impregnada no ar — “Glória
in Excelsis Deo”! E haviam caixas de papelão, muitas, de vários tamanhos e
formas, a abrir e fechar. Pareciam me cumprimentar, todas dispostas a brincar
comigo. Eu sorri, achando tudo bonito. Havia também uma mesa farta, com comida
de humano e comida de cachorro. Então, papai apareceu numa porta, feliz, todo
vestido de branco, me pegou nos braços e disse: “Eu sou o seu presente de
Natal, Charlie, e eu vou ser o seu papai para sempre”.
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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Sinopse: Ivone está se preparando para passar o primeiro Natal sem a mãe, Dona Esmeralda, falecida há 10 meses. Conta com Peri, cachorrinho fiel companheiro da mãe e agora dela. Seu maior dilema é montar o presépio de Natal, pois sua mãe tinha o hábito de escrever mensagens nos papeis de seda que embrulhavam as imagens. Neste processo a tia Filomena tem papel importante para que tudo se desenrole de forma satisfatória.
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