3x11 - Preciosos Papéis de Seda
de Clara Ponciano
Ela chegou em casa, procurou por Peri, seu
cachorrinho que dormia profundamente no tapete próximo ao sofá sem se dar conta
dos barulhos que ela fazia. O que é a idade, pensou Ivone, com seus quase
dezesseis anos já não enxergava bem e escutava pouco, somente alguns sons
agudos ou sons que só ele ouvia. As vezes do nada saia latindo como se alguém
estivesse tentando entrar no apartamento, parava na porta olhando para o vão
entre a porta e a soleira e latia muito.
Lembrou-se do tempo em que o pequeno Peri
ficava alerta a qualquer movimento que faziam dentro de casa. A mãe, Dona
Esmeralda, dizia que parecia ter um cachorro em cada canto da casa, tal era a
agilidade com que a seguia pela casa.
Largou as compras sobre a mesa e antes de
qualquer ação foi até onde Peri estava. Ele acordou um pouco assustando, como
sem entender o que acontecia, mas ficou muito feliz, como normalmente procedem esses
anjos peludos, é tanta demonstração de amor que é quase impossível não os amar.
Ivone conversou com Peri como se ele
fizesse perguntas imaginárias que ela ia respondendo e ele prestava muita
atenção.
-
Sim, deu tudo certo. Consegui comprar tudo o que tinha planejado.
-
Não, não comprei os presentes das crianças, eu fiquei de conversar com a Ritinha
e pedir sugestões, será mais assertivo.
-
Você quer saber quando eu vou montar a arvore de Natal e o presépio? Não tomei
coragem ainda, mas está na hora não é mesmo? Você também sabe que será difícil
este ano sem a mamãe por aqui.
-
Claro que eu sei que você também sente falta dela.
A mãe tinha falecido há 10 meses, seria o
primeiro natal sem ela.
-
Ah! Você está com fome? Eu também estou, vamos para a cozinha?
E, em um rápido movimento, os dois foram
para a cozinha, foi quando o telefone tocou, Ivone atendeu, era sua tia
Filomena, irmã caçula de sua mãe e única tia viva.
-
Oi!
O “oi” de sua tia era inconfundível, era
um pouco tímido e ao mesmo tempo acompanhado de uma risadinha. A tia passara a
ligar para ela com mais frequência desde o falecimento da mãe, sempre gentil
querendo saber se estava tudo bem e se precisava de alguma coisa.
Ivone tinha um único irmão, Ademar, 5 anos
mais velho que ela, morava com a família no interior, falava com ele com alguma
frequência, mas a distância não facilitava muito a convivência, quando a mãe era
viva ele ligava mais vezes, falava com mãe e depois com ela para saber se
estava tudo bem ou se precisavam de alguma coisa. Com o passar dos meses foi
ligando cada vez menos, só trocavam mensagens. Ela se lembrava de uma história
que a mãe contava sobre “o burro das relíquias”, todos agradavam o burro que
carregava as relíquias, e o burro achava que ele tinha muito valor, mas o valor
eram as relíquias e não ele. Quando lhe tiraram as relíquias ele sofreu ao ver
que ninguém mais se importava com ele.
A tia falou novamente:
-
Oi!
-
Oi tia, tudo bem? Como a Sra. está?
-
Vamos tocando a vida, né filha? Estou te achando um pouco pensativa, aconteceu
alguma coisa?
-
Não, está tudo bem. É que eu acabei de chegar e estava de papo com o Peri.
-
Ah! Entendo, eu também converso muito com a Lola e sabe que as vezes ela
responde. Mas estou ligando para saber se você não quer vir passar o Natal aqui
em casa? A gente não faz nada especial mesmo, seu tio Alfredo dorme cedo, não
tem paciência para esperar a ligação da Sofia e pelo Alfredinho que passa por
aqui as 23h antes de ir para a casa da sogra. Tal pai tal filho, os dois acham
um desperdício ficar acordado até meia noite só para fazer um brinde e depois
ir dormir. Eu sempre durmo tarde, um dia a mais um dia a menos, não faz
diferença.
-
Eu não gosto de deixar o Peri sozinho, agora que ele está velhinho e surdo até
que não sofre tanto com os fogos de artifício, mas alguns anos atrás era um
problema. Ele está na fase de comer e dormir, dorme quase o dia todo.
-
Você pode trazer ele e vem preparada para dormir, aqui em casa tem quarto
sobrando. Eu já planejei tudo, você vem com o Peri na véspera do Natal, no meio
da tarde. Tomamos um café com bolo de cenoura e outras gostosuras, depois vamos
assistir à missa do galo às 19h, aqui na igreja de Santa Margarida Maria, dá
para ir a pé. O padre Marcelo é ótimo, a homilia dele é sempre iluminada pelo
Espírito Santo. A noite brindamos com o Alfredinho e comemos a ceia. Sei que
você gosta de espumante, eu vou pedir que o Alfredinho traga um dos bons, vamos
tomar tudo e jogar muita conversa fora.
Enquanto a tia falava Ivone ia pensando
nos prós e contras do convite da tia, mas concluiu que seria melhor ir. Quem
poderá saber como será o Natal do próximo ano. Além do mais a tia era excelente
companhia.
-
Muito bem, a Sra. me convenceu, eu irei. E não foi só pelo espumante, mas pela
companhia e a proposta de jogar conversa fora, adoro.
-
Que bom, já me animei a preparar uma ceia bem gostosa. Agora vai descansar,
você acabou de chegar e eu aqui tomando o seu tempo.
-
Imagina, eu estava pensando em montar a minha arvore de Natal, que não montei
ainda, eu fico adiando. A Sra. conhece a mania que a mamãe tinha de escrever
nos papeizinhos de seda ...
Antes que terminasse de falar a tia disse
que sabia, que uma vez ligou para ela no dia seis de janeiro e ela estava
guardando o presépio e até leu uma anotação sobre o casamento da Sofia.
- Por essas e outras é
que acho difícil, mas vou fazer amanhã pela manhã. Beijo grande tia e muito
agradecida pelo convite.
Ivone pensou um pouco na tia, dois filhos,
Sofia morando nos Estados Unidos e Alfredinho não era muito chegado a
celebrações, concluiu que ir será bom para as duas. Falar sobre os tios, os
avós, relembrar a infância não vai faltar assunto. Há sempre alguma nova história
de família esquecida que submerge quando estamos descontraídos, e, se
estivermos tomando um bom espumante então, virão muitas lembranças boas.
No dia seguinte cedo, após o café, Ivone
pegou as caixas contendo a pequena arvore de Natal, os enfeites e o presépio.
Sua maior dificuldade era montar o presépio, ela sabia que quando desembrulhasse
as imagens e começasse a ler as anotações que Dona Esmeralda acrescentava a
cada ano, poderia vir lembranças boas e outras nem tanto.
Assim que a pequena árvore foi montada e
decorada com bolinhas prateadas e fitinhas vermelhas ela começou a desembrulhar às peças do presépio. O papel de seda que embrulhava a imagem de São José tinha
de tudo, entre tantas anotações tinha em um ano a preocupação com a saúde do
marido, a mudança do filho para Bauru, o vestibular do neto e no ano anterior
ela mencionava a própria saúde e a preocupação em achar que estava dando
trabalho para a filha. Já com a imagem de um dos Reis Magos mencionava o
falecimento do pai, a surpresa que a irmã Filomena fizera visitando-a no seu
aniversário em novembro e o arranjo com flores do campo que recebeu de Ademar.
O papelzinho que embrulhava Nossa Senhora estava bem frágil, mas ainda dava
para ler sobre o casamento da Sofia, o nascimento dos bisnetos gêmeos e do
problema de saúde de Peri dois anos atrás.
A manhã foi transcorrendo sem que percebesse,
tão distraída com as anotações, era como se ouvisse a voz da mãe enquanto lia
as anotações, tão insignificantes e ao mesmo tempo tão preciosas. Deixou o
embrulho do menino Jesus guardado para ser colocado na véspera do Natal, ouviu
nitidamente a voz da mãe dizendo “não podemos colocá-lo, ele ainda não nasceu”.
Os dias de dezembro passaram com a
velocidade que é peculiar para esta época do ano. Ivone comprou uma linda
camisa para a tia, bem ao estilo que ela gostava, estampa miudinha e com mangas
curtas. Para o tio Alfredo comprou vinho, sua uva preferida era Carmenere, foi
fácil. Ficou em dúvida se comprava alguma coisa para Alfredinho e Marisa e
decidiu por comprar algo para o casal, uma sacola térmica para vinhos, o casal gostava
muito de vinhos e seria útil.
Os presentes dos sobrinhos netos ela
resolveu com a sobrinha Ritinha, que também morava em Bauru, definiram juntas os
brinquedos, transferiu o dinheiro e a sobrinha se prontificou em comprar.
Ritinha era muito prática, deve ser o efeito de ter que criar filhos gêmeos,
não dá para ficar enrolando, decidir rapidamente era a melhor solução.
O irmão tinha sugerido que ela fosse para
Bauru no final de ano, mas ela falou do convite da tia e ele não insistiu,
afinal a família da cunhada era numerosa e certamente a casa estaria cheia.
Na véspera do Natal ela acordou cedo e
repassou tudo o que precisava fazer antes de sair, combinou com a tia de chegar
às 15h, então se planejou para sair de casa com antecedência, não queria se
atrasar e nem tão pouco se estressar com o trânsito.
Estava quase de saída quando se lembrou do
presépio e do menino Jesus, iria colocá-lo antes de sair, afinal retornaria no
dia seguinte a noitinha. Pegou o pequeno embrulho e abriu, estava sem tempo,
mas não resistiu e leu as anotações da mãe. Na mensagem do ano anterior estava
escrito.
“A Ivone correu muito comigo para exames e
consultas, foram tantos exames”
Ela recordou que há um ano ela e Dona Esmeralda
estavam em uma maratona de exames e consultas médicas e quase não tiveram tempo
de preparar o Natal, mas a mãe estava bem, fraca, mas bem, seu problema era o
coração. No final de fevereiro ocorreu o infarto e foi fatal. Dona Esmeralda
dizia que não queria dar trabalho e não deu, dizia que tinha medo de doenças
que a fizesse perder a memória e se manteve lúcida até os últimos dias de sua
vida. Este era o maior consolo de Ivone, saber que os desejos da mãe foram
atendidos.
Voltou para o papelzinho ainda em sua mão
e percebeu que havia ainda mais coisas escrita.
“Que no próximo Natal a Ivone tenha mais
tranquilidade e esteja feliz, ela merece”
Ao ler aquelas
palavras Ivone sentiu um ligeiro arrepio, como um vento passando pela sala e ao mesmo tempo uma paz e
automaticamente respondeu “Está sendo mamãe e vai ser” e saiu com Peri, se
sentindo abençoada pela mãe e com a certeza de ter recebido o melhor presente
de Natal de todos.
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
REALIZAÇÃO
Copyright © 2020 - WebTV
www.redewtv.com
Sinopse: A história de um natal, especial para uma menina de 8 anos, de uma família simples, mostrando a importância de uma mãe afetuosa e determinada para o desenvolvimento dos filhos e união de sua família.
Comentários:
0 comentários: