Sinopse: Um mascate libanês vai para uma cidade no interior com seu filho para vender produtos e sustentar sua família. Mas uma visita a uma fazenda mal cuidada muda completamente os planos do imigrante.
O Mascate
de Walter Niyama
— Tecidos importados! Chapéus vindos direto da
capital! Espelhos do Oriente! E muito mais, venham sem medo, melhores preços
que estes vocês não encontrarão em nenhum lugar! — anunciava o mascate Rafiq.
Nascido no Líbano, já fazia cinco anos que se mudara com a família para o
Brasil. Para ganhar a vida, como muitos de seus compatriotas, ele passou a
exercer a função de mascate. Levando produtos da capital para o interior do
estado.
Com seu filho adolescente Naim, os dois conduziam a carroça por
estradas de terra e quando chegavam ao destino Rafiq montava o carrinho e o
carregava com as mercadorias. No início vendia apenas bijuterias como colares,
pulseiras, brincos, mas com o tempo e aumento do dinheiro começou a vender
tecidos, roupas e outras vestimentas.
Naquele dia, Rafiq pediu para Naim levar a carroça até uma
hospedaria próxima e cuidar dos pertences deles. Ele iria sair um pouco da
cidade em que estavam para visitar as fazendas na região. Pelo caminho encontrou
até alguns conterrâneos, uns com carrinho como ele, outros levando tudo
empilhado nas costas em grandes caixas.
Batendo de porta em porta, até que as vendas estavam indo bem.
Especialmente quando eram mulheres. Rafiq era um verdadeiro cavalheiro, muito
educado. Seu domínio da língua portuguesa facilitava as coisas. Dedicara-se
bastante ao estudo dela ainda na longa viagem de navio que fizera com sua
família para o estranho país nos trópicos que tinha um rei. Um rei no
continente americano.
Ele então chegou ao portão de uma fazenda bem mal cuidada. O
muro da frente parecia com o de uma construção abandonada. Mesmo assim dava
para ver que o lugar era ocupado por pessoas, já que dali Rafiq via mais ao
longe as vacas pastando e também o estábulo com os cavalos. Dava para ver que
os animais não estavam bem cuidados e havia mato e ervas daninhas crescendo por
toda parte. Bem, se havia gente ali, havia consumidores.
— Bom dia! Há alguém em casa? Tenho aqui tecidos de qualidade e
outros produtos maravilhosos vindos direto da capital!
O mascate ouviu passos de dentro e logo mais a porta de madeira
foi aberta. Para surpresa de Rafiq, quem o atendeu foi uma criança. Um menino
bem mirrado de pele negra. Talvez de dez
anos. Ou talvez até mais, porém dava para ver que estava magro demais e muito
abatido.
— Sim, senhor? Em que posso ajudar?
— Hã... Gostaria de falar com a sua mãe ou com seu pai, se não
se importa.
— Tenho pai e nem mãe, mas se quiser, pode falar com meu Senhor.
Mas ele não gosta de ser incomodado à toa, então é bom que seja para algo
importante — a criança não falava com arrogância, mas com tristeza. Um pedido
para que aquilo que Rafiq trazia fosse mesmo importante.
Do contrário, quem iria arcar com isso seria aquela criança.
— O que está acontecendo? — apareceu um homem, um velho branco
de nariz com formato de batata, barba grande, grisalha e desgrenhada, gordo.
Suas roupas eram todas velhas e remendadas. O sujeito nem se deu ao trabalho de
abotoar a camisa, com a barriga e o peito cheio de pelos à mostra.
Rafiq engoliu em seco. Ele de chapéu, terno, colete, sapatos
engraxados antes da viagem. O dono daquela fazenda naquele estado deplorável.
Combinava com o lugar, isso era verdade.
— Bom dia meu senhor. Venho lá da capital com produtos que com
certeza irão interessa-lo. Se quiser olhar mais de perto, meu carrinho...!
— Não quero nada, Salim.
— Esse não é meu nome.
— Para mim são todos Salim. Bem seus parasitas com produtos de
quinta categoria que dizem ser da Europa, não há nada aqui para ser levado. Não
tenho comida nem para me alimentar direito. Por isso é melhor ir andando tentar
enganar algum trouxa. E você — o dono da fazenda deu um tapa na cabeça do
menino. — De volta ao trabalho, ou fica sem janta!
O fazendeiro então bateu a porta na cara do mascate. O mascate
quis gritar umas poucas e boas para aquele homem. Mas se conteve. Não valia a
pena. Ele simplesmente cuspiu naquela porta e voltou para seu carrinho. Mas,
enquanto as rodas de madeira giravam em direção a próxima fazenda, Rafiq
pensava mais e mais na criança que estava ali com aquele homem terrível.
A bem verdade é que muitas coisas lhe eram estranhas nessa
terra. A língua, os costumes, as comidas, mesmo assim ele tentou se adaptar ao
máximo, ajudando sua família nesse processo. E também entendia que se alguma
coisa o incomodava, talvez ele devesse parar de se incomodar. “Os incomodados
que se retirem”, não é mesmo? Ele era um visitante nesse país. Um hóspede.
Quando chegou na hospedaria, Naim o ajudou a tirar os produtos
restantes do carrinho e coloca-los dentro de um baú que levavam na carroça. O
filho perguntou como foi o dia do pai que contou das boas vendas que fizera. No
jantar, contou das lindas paisagens que não cansava de ver, tantas árvores e
verde. Mas também contou do pobre menino e do fazendeiro terrível.
— Uma fazenda caindo aos pedaços? — perguntou Naim. — Já ouvi
histórias das outras vezes que viemos para essa região. Disseram se tratar de
um fazendeiro que com o tempo foi perdendo as grandes posses dele em jogos de
aposta.
— Isso explica o estado em que se encontra agora.
— Sim, ainda mais porque disseram que para não perder o que
ainda tinha de terras e animais ele passou a oferecer os escravos que tinha.
—... Já faz anos que a princesa deposta assinou a lei que
libertavam eles. Eu me lembro desse dia.
Muita gente comemorando e muita gente xingando como se não houvesse
amanhã.
— O que há para se fazer, pai? Às vezes as coisas são como são.
Sabíamos que a vida estava dura no Líbano e por isso viemos para cá.
— Sim. As coisas são como são. — Rafiq começou a enrolar um charuto
e assim que o acendeu se pôs a dar profundas tragadas. — Por isso agimos, não é
mesmo?
Já era três da manhã quando Rafiq e Naim chegaram à fazenda do
homem odioso. Se esgueirando pelo mato, torcendo para não pisarem sem querer em
uma cobra ou um escorpião, criaturas terríveis essas, os dois libaneses
chegaram a uma parte do muro que contornava a fazenda cujos tijolos permitiam
que eles escalassem a parede para o lado de dentro.
Eles levavam um lampião com eles, já que a luz da lua não era
boa o bastante. Claro, aquilo poderia denunciá-los, mas esperavam que não.
Andando por entre as plantações de cana de açúcar, Rafiq decidiu tentar a sorte
primeiro num velho barraco de madeira. Bingo. Quando abriu a porta, viu o
garoto ali, esparramado no chão com feno, tendo apenas uma coberta suja e
maltrapilha para se proteger do frio.
O menino acordou com o som do mascate e seu filho, além da luz
do lampião. Sonolento e confuso perguntou o que estava acontecendo.
— Viemos levar você daqui — respondeu Rafiq. — Há outros
escravos nesta fazenda?
— Não, meu senhor perdeu todos eles em apostas. Incluindo meus
pais. Não sei mais onde eles estão.
Prestes a tombar de sono, Naim pegou o garoto no colo e pai e
filho começaram a se dirigir para a parte do muro que tinham saltado quando uma
luz surgiu da casa seguida do barulho indistinguível de uma espingarda sendo
engatilhada.
— Quem tá aí? Quem tá aí? Apareça seu covarde!
Desesperado, Rafiq tentou apagar o lampião, mas já era tarde
demais. O homem os viu e atirou. Rafiq e Naim com a criança se jogaram no chão
antes e nenhum deles foi atingido. Eles aproveitaram que o homem precisava
recarregar a arma e correram para o muro.
Naim continuou correndo com a criança enquanto Rafiq se desviou
um pouco para os estábulos. Ele abriu a porteira do estábulo dos cavalos e
então tacou o lampião contra a construção de madeira que pegou fogo. Os cavalos
assustados saíram correndo dali em todas as direções, assustando o resto dos
animais da fazenda. O fazendeiro então tentou controlar a situação, aqueles
animais não podiam se machucar. Eram os bens mais valiosos dele.
Rafiq então escalou o muro para fora e encontrou com seu filho,
ainda com o menino no colo, o esperando. Os dois então saíram correndo dali.
Mesmo já a certa distância ainda dava para ver o fogo no estábulo e a fumaça no
céu. Além de ouvir os animais e os gritos do homem amaldiçoando os malditos
mascates.
E assim, ainda de madrugada, pai e filho já voltavam para a
capital na carroça, levando um passageiro a mais nos fundos. O menino por vezes
acordou durante a viagem, mas o mascate assegurava de forma calma e carinhosa
que ele podia voltar a dormir e assim o fazia.
— Mamãe vai
ficar muito confusa quando chegarmos a casa — disse Naim. — E orgulhosa também
quando souber da história, meu pai.
Rafiq riu
da observação do filho. Sim, seria uma baita história para contar quando
chegassem a casa.
Conto escrito por
Walter Niyama
ProduçãoBruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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