2x10 - Transformação
de Bárbara Pippa
Dizem que tudo começou ali.
Ele chorava, aos prantos, agarrado ao
lençol coberto de sangue, não suportando a dor da perda que sofrera, mas, quem
suportaria? A equipe médica da Unidade de Pronto Atendimento conversava entre
si, em certo tom desesperado, tentando retirá-lo dali, ao mesmo tempo em que
corriam contra o tempo para salvar o bebê. Ele observava a esposa deitada, sem
vida, manchada pelo vermelho que findou a existência daquela que ele mais
amava. Até mais que sua própria vida. Debruçava-se sob o corpo sem voz,
segurando sua mão gélida, sujando-se de suor, sangue e lágrimas
Ao lado, um corpo minúsculo, praticamente
sem vida, rodeado de tentativas vãs de ressuscitar o que já não tinha mais
volta. Na verdade, não chegara nem a ter início para ter a possibilidade de
retornar ao princípio. O homem sequer olhava para o bebê, que um dia seria seu
filho. Seu pesar direcionava-se todo para a mulher, sua paixão.
Estava destinado a concluir-se assim no
momento em que entraram em um carro para sair de casa. O destino? Não se
recordava, tampouco importava naquele momento. Lembrou-se que houve uma
discussão, algo quebrou em sua mão. A esposa gritou, correu para a porta e
bruscamente entrou no carro. Ele impediu que ela dirigisse, mas possuía menos
condição que ela de ser o condutor. O corte sangrava, sujando roupas e o
volante.
E foi seu fim.
De quem ele foi e de quem ele era; de quem
ele seria adiante.
O médico fez com a mão um sinal para os
dois que seguravam o homem levarem-no para fora da sala, enquanto ele
desesperava-se ainda mais por estar contido à força. Gritava que eles mataram
sua família, eles. Esquecia-se de
recordar do motivo que o levou ali. Não aceitava
De tanto remexer-se, conseguiu se soltar,
e lançou pontapés e socos contra os rapazes que somente tentavam acalmá-lo. Atingiu
um no rosto, ocasionando um corte no lábio do mesmo, e derrubou o outro. O
homem era alto, forte, aparentemente de 1,85m a 1,90m de altura; braços largos,
de quem se exercita, e postura de lutador. Somando com o sofrimento, sua
estrutura deveria ter triplicado para conseguir revelar-se um monstro. Não lhe
foi revidada a agressão, pois todos entendiam o que ele passava. Era injusto,
querer cobrar-lhe sanidade, em uma situação de terrível tristeza.
Ninguém o exigiu nada, nem explicações.
Observavam-no em silêncio, parado, em pé, em frente à porta e em estado de
parecer congelado. O médico coordenador aproximou-se, pôs sua mão no ombro do
homem e abaixou a cabeça. Fez como que para ele sair daquele ambiente.
O homem fitou o rosto de sua esposa,
dormindo, em um sono eterno, torcendo para estar bem.
Caiu em si. Descendo para esperar na
entrada do hospital por todas as obrigações de praxe que viriam a seguir, não
conseguiu terminar de caminhar. Parou no corredor, encostou-se a parede e
escorregou para o chão. Observou toda a sujeira de si e dela, agarrada à suas
roupas; seu corpo tremia; suas mãos suavam frio; seu hálito cheirava a whisky,
sua cabeça latejava, e, suas memórias ressurgiram para lembrar o que seu estado
ocasionou.
Já não era mais ele mesmo há muito, antes
mesmo de sua esposa engravidar. Ela,
taxidermista brilhante e exímia no que fazia; professora de universidade
conceituada, empresária de sucesso em seu ramo, de boa educação, inteligente e
renomada. Ele, escritor de um livro
só, remoendo sempre as glórias de outrora, que seu primeiro e único sucesso
comoveu; solitário, recluso, passando a se esconder por trás de copos de
bebida, e evitar os ambientes em que ficaria sendo apenas a sombra de sua
mulher
Taxidermia: antigo
processo de encher de palha animal morto a fim de conservar-lhe as
características
Ela apaixonou-se por um ser sensível, que
a tratava esplendorosamente. Foi sua paixão da faculdade, que ela observava no
bar perto de onde residia antigamente. Não ouvia quem reclamasse sobre sua
escolha, rebatendo que ele cresceria para um excelente homem.
Enfim, cresceu, mas apenas avançando na
idade e jamais na competência. Resumia sua rotina a uma garrafa de teor
alcoólico por dia, que dizia inspirar suas ideias; a trancar-se no escritório
Caminhavam para cinco anos juntos. Ela
planejava filhos e tinha a convicção de que ele seria um ótimo pai. Ele
acatava, mas nunca gostaria de ter filhos antes de terminar seu próximo
grandioso livro. Adiavam os planos em função de algo que nunca saíra do papel.
Ela, então, cansou de esperar. Deixava-o deslocado, evitava contato não sendo
necessário. Ele não era mais quem ela amava, se é que, algum dia, chegou a ser.
Percebeu que idealizava um grande homem,
mas ele nunca existiu. Ele gritava; bêbado; ela respondia, à altura. Ele
ameaçava agressão, ela retrucava. Ele tentava uma aproximação, ela evitava.
Cedeu uma única vez, em um momento de exaustão daquela constante guerra. Única
vez suficiente para gerar o fruto que tanto sonhava. Imaginava que ele mudaria
sua existência ao saber ser pai brevemente. A princípio, sim, ele teve a
notícia como deveria ser recebida. Porém, não demorou em que voltasse a sua
degradação diária, esquecendo-se que ela precisaria mais dele naquela época do
que jamais precisou.
Não havia mais paciência, e, talvez, nem
mais amor. Também não existia obrigação, então, ela permitiu que ele residisse
em sua casa até certo prazo. Tinha que sair à procura de emprego, esforçar-se
para morar bem longe dali, e não era uma escolha. Ele fingiu respeitar, mas
nunca entendeu ou aprovou a sentença. Ele a amava, mas não era um amor são. E,
claro, não enxergava assim. Era amor e ponto! Ela exaustou-se a tal ponto, que
preferiu não perder tempo com discussões, e como a casa não lhe faria reduções
em nada na sua vida, optou por apenas dormir ali, passando os dias acompanhada
da mãe e amigas, distante de seu inquisidor. Péssima seleção.
À noite em que se sucedeu, ele agia
estranhamente tranquilo, sóbrio e peculiar. Preparou um jantar, à luz de velas,
apelando para o romantismo, na tentativa
Ele caminhava de um lado para o outro da
sala, repetindo as frases feitas de não aceitação e de reprovação dela querer
separar-se. Ela não havia mencionado com esses termos de separação, mas ele
entendia, ao menos, isso. Ele insistia em utilizar-se de maneiras de
rebaixá-la, tentando engrandecer-se, como se houvesse mérito algum seu para
exultar. Aproximou-se nervosamente dela, prendeu-a com os braços por entre sua
cabeça, mantendo-a assentada no sofá.
Amanhecia.
A esta altura, encontrava-se chegando em
casa. Cumpriu todos os pormenores de liberação de corpo, enterro e o que mais se
fizera necessário. Decidiu por um banho antes de seguir para o cemitério. Ainda
enxergava o rosto da esposa na sua frente, temeroso de ser assombrado por seu
fantasma enquanto vivesse.
Caminhou pela casa, silenciosamente, até
parar na porta do escritório dela. Para ele, sempre fora um território
proibido. Não por determinação da esposa, ela jamais negou visitas ao seu
ambiente de desempenho, mas, por si próprio. Não se contentava em ver as
maravilhas que ela construía, a fim de lembrar-se de ser um fiasco em suas
obras e determinações
Saiu correndo, às pressas, sem banho, sem
roupas trocadas, sem nada. Deixou tudo como estava; do sangue seco agarrado
Dizem que o velório foi repleto de gente
do mais diverso conhecimento. Amigos, familiares distantes, curiosos,
admiradores, dentre outros. Todos que consideravam a mulher honrada, distinta e
uma excelente pessoa, fizeram questão de passar para dar seus cumprimentos, mas
não ao esposo. Ele não foi visto desde sua ida à funerária. Sumiu como areia
por entre os dedos. Alguns alegaram que deveria ser o estado de choque, outros,
a vergonha de ter sobrevivido
Porém, nunca seria.
Uma. Duas. Três.
Três semanas após o funeral, ele ainda não
tinha dado notícias. Não que alguém realmente se importasse com aquele homem,
mas, pela curiosidade de saber o que estava a fazer; sua sogra, então,
permitiu-se verificar em sua residência, para sanar a dúvida se ele haveria se
afogado com uma garrafa de bebida, enfim, livrando-a do encargo que seria mantê-lo
com a herança da filha. Toda aquela fortuna não poderia ser gasta com cautela,
tratando-se de quem era.
Adentrou vagarosamente a casa. Não foi
necessário chamar ou fazer alarde, a porta encontrava-se entreaberta, bastando
empurrá-la. A partir deste ponto, seu coração disparou. Não sabia o que
encontraria a seguir e temia. Um calafrio percorreu sua espinha, deixando-a
temerosa. Tudo parecia devidamente em seu lugar habitual, excluindo a má
organização de que ele mantinha o local. Estava tudo silencioso por demais. Ela
foi, pé ante pé, caminhando entre os recintos. Todas as portas dos quartos
estavam fechadas, com exceção da do escritório de sua filha. Reconheceria
aquele quarto apenas em pensamento, recordava-se do quanto era amado e
idolatrado por sua cria. Estava aberto, convidativo. Aquilo fez sua respiração
acelerar. Algo dizia, internamente, que era melhor sair dali antes que o
monstro aparecesse. Ela não dizia a ninguém, mas tinha certeza de que aquele
homem fora o culpado por tudo
Entrar? Seria a melhor escolha?
A sogra foi; mais no ímpeto de curiosidade
do que coragem. Tremia. Suava. Por dentro estava a gritar.
Ela observou algo sob a mesa. Não um algo
só, mas mais. Avançou quase em câmera lenta, torcendo para não ter a decência
de completar o sentido. Visualizou que não enxergava bem o que estava
sobreposto na mesa por estar coberto com três lonas pretas, fazendo um contorno
confuso e indeciso dos formatos que se tratava. Levantou a primeira como um
curativo: rápido e feroz, para causar menos sofrimento a si. Arregalou os
olhos, assustada
Uma hora mais tarde, a sogra retornou
acompanhada de uma viatura policial. Tudo permanecia do mesmo jeito de antes.
Dois oficiais entraram e encararam-se antes de levantar as lonas
A população achou que jamais iriam ouvir
falar do homem por ali e que o caso iria terminar como estava, mas, na manchete
do jornal local do dia seguinte, ele era primeira capa.
“[...] O homem roubou os corpos do
cemitério antes do velório, impossibilitando alguém saber por os caixões
estarem vedados como seu último pedido. Sua sogra encontrou os mesmos na casa
de sua filha, taxidermizados. O homem foi capaz de retirar todos os órgãos
internos de sua falecida esposa e de seu filho
Conto escrito por
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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