2x12- Melhor para os Dois
de João Baptista dos Santos
“Pode
ser, mas fugiu ao combinado, não mexer nas coisas dos outros, o que é meu é meu
o que é dele é dele. O trato valeu por dois anos, agora o cara vacilou, ainda
quis discutir, deu merda”. Este foi o argumento apresentado pelo autor do
delito ao ouvir a observação da autoridade policial de que o motivo do crime
cometido (furto de dois cigarros) era considerado fútil pelo rigor da Justiça e
agravaria a pena.
A vida
já fora diferente para este homem, homicida pela segunda vez. Dirigia ônibus
coletivo pelas ruas da cidade capital de Estado, salário pouco mais certo,
casinha no morro com mulher dentro, depois duas filhas. Apareceu o tal Carioca,
estragou tudo, colega de profissão, “traíra” pura. Os amigos alertaram, “abre o
olho, daqui a pouco não vai conseguir entrar no carro, os enfeites da cabeça
não vão deixar”. O flagrante em motel de quinta categoria. A faca fazendo
estragos nos dois – exagero - não precisava tanto.
Condenação,
agravante pelos requintes de crueldade, agravante pela premeditação. Dezoito
anos, regime fechado. Com seis anos o bom comportamento o colocou na rua livre.
Livre? O estigma de ex-presidiário, os trinta e cinco anos de idade, portas
fechadas. Abriu-se a do alcoolismo, progressivo e destruidor. A rua como
moradia, em seguida um barraco de madeira debaixo de um viaduto na periferia da
cidade. Nunca mais viu as filhas, nem parente algum; nenhuma visita na
penitenciária. Foi traído, fez a justiça que julgava certa com as próprias
mãos, todos lhe viraram as costas. Do morro para debaixo da ponte. A mudança
pode parecer, a princípio, não muito dolorosa, ser considerada pouca coisa. Não
é. No morro ainda se tem certo status, humilde, mas real. Debaixo de viadutos e
elevados, seus moradores ouvem diuturnamente o barulho dos carros passarem
sobre suas cabeças, as pessoas dentro daqueles veículos os ignoram, aliás, os
que passam a pé agem da mesma maneira.
Representam a escória da sociedade. Provocam asco ou temor quando se
aventuram pelas ruas, considerados delinquentes em potencial.
O
outro homem, agora morto, que surripiara os dois cigarros, também vivera o lado
bom. Funcionário público municipal de serviços gerais no interior do Estado.
Casado, um filho. Alcoolista, foi perdendo tudo que conseguira; primeiro o
emprego, em seguida a família. Na Capital, tentando mudar de vida conheceu a
mendicância para sobreviver, morador de rua, em consequência, as mazelas
decorrentes. Mais um entre milhares de migrantes; equivocadamente eles pensam
na cidade grande como solução para seus problemas. “Lá tudo vai ser mais
fácil”. Ledo engano.
Manhã
de uma segunda-feira ensolarada, um homem para seu carro próximo a um viaduto
na periferia da cidade. Procura homens para carregarem e descarregarem um
caminhão de produtos comprados para sua loja. Vê dois maltrapilhos em frente ao
aglomerado de barracos de madeira debaixo da ponte. Um deles, sentado no chão,
quarenta anos de idade presumíveis, tem na mão uma garrafa, o outro,
aparentando trinta e poucos anos, em pé. O homem se aproxima, eles discutem, ou
melhor, somente o dono da garrafa fala: “pode tirar o olho da minha pinga
mendigo, você não vai beber dela não, nem te conheço”. Apesar da presença do
álcool e da aparente animosidade, o homem recém-chegado interrompe a iminente
desavença e os convida para a empreitada. Aceitam imediatamente. Aquele
trabalho unirá aqueles dois homens que são aqueles já citados anteriormente. Ao
final do serviço, o que negava a cachaça e ex-motorista de quarenta e um anos
de idade oferecerá guarida ao outro, ex-funcionário publico municipal, em seu
barraco de madeira no aglomerado onde, mais cedo, foram contratados para o
serviço. Tomou a decisão após ouvir a história do novo companheiro, expulso,
por motivo de discórdias, de uma comunidade idêntica àquela na qual ingressava
naquele momento. Única exigência: “o que é meu é meu, o que é seu é seu”.
Óbvio, redundante, mas vale como lei. Contudo, eles dividiriam humilhação,
descaso, miséria. As únicas coisas concretas compartilhadas: a comida e a
cachaça, esta, remédio para todos os males para quem vive na pobreza extrema. A
bebida, antes de ser uma diversão, se torna uma fuga de todos os infortúnios
vividos.
Dois
homens alijados da sociedade, morando juntos com todos os ingredientes para a
união não dar certo. Surpreendentemente as coisas funcionavam, talvez pelo
contraste, o gênio explosivo de liderança do dono da tapera contra o afável e
submisso “hóspede”. Muitos diziam, se uma mulher se meter entre os dois tudo
vai desandar. Hipótese improvável, a dupla gostava de mulher ocasional, nada de
criar vínculos, nem pensar em formar casais estáveis; este termo pode parecer
deslocado naquele contexto, mas apesar da vida desprovida de recursos materiais
e meios para exercer a cidadania, alguns se juntam, inclusive têm filhos. Porém
a dupla viveu experiências dolorosas em seus relacionamentos, um vítima de
traição, o outro por causa de seu próprio vício, mas nem por isso menos
traumática, isto os desestimula.
“Você
está arrependido de ter matado o amigo com uma facada certeira no coração?”
Pergunta o Delegado ao acusado sentado à sua frente, a fim de fechar o
depoimento de autuação em flagrante. Cabisbaixo, responde: “Não senhor, foi
melhor para nós dois, ele morreu, ficou livre da vida de cachorro sem dono e de
tudo de ruim que tem nesse mundo. Eu vou para a prisão, que já conheço, onde
pelo menos todo o dia tem comida.”
A vida
e a liberdade são valores desdenhados por aquele homem, contrariando o que
seriam anseios normais de um ser humano. Homicida pela segunda vez, desprezado
pela sociedade, vê tudo com outros parâmetros. Viver à margem da sociedade,
sofrendo, preferível morrer. Liberdade sem ter o que comer, melhor na prisão
fazendo as refeições regularmente. Surpreendente a lógica apresentada. Mas é,
sobretudo, triste.
A
Polícia ao fazer a perícia no local do crime encontrou um caderno velho com
anotações feitas pelo homem assassinado, como se fosse um diário. Por não
datá-las, percebe-se que as fez sem a intenção de narrar os fatos
cronologicamente. Apenas anotações periódicas do cotidiano sofrido. Os escritos
surpreenderam o velho Delegado, não só pela clareza do texto, mas principalmente
pelo seu teor dramático, revelador das circunstâncias em que se deu a tragédia:
“Continuo
a morar debaixo do viaduto com o Bené, um bom amigo. Um tanto nervoso, até
violento quando contrariado, ainda assim boa pessoa. Passamos muitas
necessidades, mas vamos levando, de vez em quando aparece trabalho.”
“Estou
escrevendo porque tem dois dias que só comemos pão e tomamos café. O pão é
velho, nós ganhamos. O café é Dona Maricota que dá, ela mora ao lado da nossa
maloca. Gente boa.”
“Apareceu
trabalho, capinar lotes. Durante três dias, vamos ter dinheiro. Alguém poderia
gostar do nosso trabalho e chamar para assinar a carteira. Estou sonhando,
bobagem, capinar lote não leva a lugar algum, qualquer um sabe fazer.”
“Tem
mais de quatro meses que não escrevo. Aconteceu muita coisa, Dona Maricota
morreu de ataque do coração. Chamaram o SAMU quando ela passava mal, demorou um
tempão, quando chegou estava morta. O corpo também ficou mais de oito horas
esperando o rabecão. Foi enterrada como indigente numa sepultura rasa. Não
deixaram abrir o caixão no cemitério. Será que o corpo dela estava lá dentro
mesmo? Falaram que muitas vezes eles vendem o corpo para ser estudado pelos
estudantes de medicina. Enterram o caixão vazio, enganando parentes e amigos.”
“Corre
um boato aí que o governo vai aumentar a largura da avenida que passa debaixo
do viaduto e nós vamos sobrar. Bené disse que tem que ser indenizado. Será? Não
acho que os políticos vão gastar dinheiro com mendigos, eles vão nos expulsar
daqui e fim.”
“Vi
num jornal velho que teve enchente lá na minha cidade. Fiquei um pouco
preocupado, mas depois pensei, eles não quiseram saber mais de mim. Se bem que
meu filho, coitado, uma criancinha na época, não tem culpa de nada. Na verdade
ele não é mais meu filho, outro pai deve estar cuidando dele.”
“A
polícia deu batida aqui. Procurando neguinho que roubou dos ricos. De
madrugada, vasculharam tudo, neste lugar não respeitam o horário de dormir.
Vieram sem mandado, sem nada. Nós também somos gente, eu pelo menos sei dos
meus direitos. Mas reclamar como? Levar porrada de graça.”
“Estou
com o caderno na mão para escrever, mas não sei como começar. Muito tempo que
não escrevo. Escrever para quem? Para mim mesmo? Só pode, ninguém vai ler isso
mesmo. Quero escrever para falar que ando numa tristeza danada. Bené já
perguntou o que é que há? Não sei, choro quase todos os dias sem motivo algum.
Jamais encontrei um sentido para minha vida, nem nos bons tempos, aliás, não
tenho certeza se eram realmente bons. Agora então...”
“Escrevi nesse caderno dois meses atrás, mais
ou menos. Nada mudou. A tristeza continua, não tenho vontade de fazer nada, nem
de comer. Beber cachaça sim. Quando aparece trabalho só vou porque o Bené me
empurra pra frente, o que eu quero é ficar deitado sem fazer nada. Continuo
chorando todos os dias. Talvez pela certeza de que o amanhã provavelmente será
pior que o hoje.”
“Quase
dois anos morando nesse lugar. Está tudo ruim. Eu com a tristeza que não me
deixa. Bené com raiva pela falta de trabalho. Sem trabalho não tem comida.
Agora é tempo de frio, outra noite passou um carro distribuindo sopa quentinha,
foi uma festa. Festa para os outros, porque eu não tô nem aí para comida. Gente
caridosa ainda existe, não era do governo não.”
“Bené
disse que não aguenta mais passar fome, está desesperado. Eu não estou ligando
mais para nada, mas me dói ver o amigo desse jeito. E essa chateação que não me
deixa. Quase não converso mais.”
A
última frase explicando o trágico final:
“Pensei muito, muito mesmo, encontrei uma maneira de resolver todas as coisas.”
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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