1x04 - Damas de Ferro
de Karinny Gonçalves
Era uma tarde de sexta-feira.
Eu já havia terminado o meu almoço e dirigia-me para a biblioteca da escola.
Eu, com dezesseis anos, era referência em uma das melhores escolas goianas. Era
uma das alunas com as maiores notas e influência. Sabia que o meu futuro
dependia dos meus estudos e, por isso, mantinha aquele nível. Nesta tarde
haveria um campeonato de xadrez. Os melhores alunos do colégio participariam e
comigo não seria diferente. Cheguei à biblioteca e sentei em uma das mesas
preparadas para o jogo. O professor já havia organizado tudo: mesas,
tabuleiros, relógios e o silêncio tão amado por enxadristas. Ele então chamou a
todos e junto com alguns colegas, fui ouvi-lo. Dizia ele que faria o sorteio de
nossos oponentes. Cada um deveria pegar um papel na caixa. Fui chamada, tirei o
meu papel e voltei para junto dos meus colegas que me perguntaram, ansiosamente,
com quem eu havia saído. Abri o papel que estava minuciosamente embrulhado e
li:
— Rafaela...
Todos olharam para mim com um
olhar apreensivo. Perguntei aos meus colegas o porquê daquilo, mas ninguém me
respondia. Depois de alguns minutos, um deles tomou coragem para tentar me
explicar.
— A Rafaela... Pode não ser um
bom jogo...
Não entendendo a situação pedi
que me explicassem o porquê de tanta aflição. Enfim, contaram-me que a tal
garota era o pesadelo de muitos jogadores do colégio. Ela não chegava a se
importar se ganhava ou perdia, mas fazia de tudo para arruinar a mente de seus oponentes.
Atordoava-os, perturbava e transformava o xadrez em um jogo insuportável.
Deleitava-se com isso, disseram a mim. Ouvi tudo com cuidado. Inicialmente,
fiquei um pouco temerosa. Será que ela conseguiria fazer o mesmo comigo? Seria
uma humilhação intelectual pública... Não poderia deixar que isso acontecesse!
Decidi que não me abateria com isso. Colocaria um fim no prazer dessa moça.
Seus dias de deleite estavam contados. Recompus-me e voltei às mesas. Sentei em
meu lugar e esperei minha oponente.
— Rafaela... Rafaela... — Divagava
tentando imaginar como seria essa garota.
A curiosidade me consumia por
dentro e enfim uma voz me tirou daquela tortura inacabável.
— Oi... Carla, não é?
— Sim... E você deve ser... Rafaela?
— Isso mesmo! Desculpe-me o atraso,
tive alguns imprevistos.
Dizendo isso, ainda sorriu
para mim e sentou-se. Agora eu poderia observa-la. Aparentemente, ela não era o
“monstro terrível” que tanto falavam. Após aquela apresentação cordial,
mantinha um olhar sereno. Cheguei a pensar que meus colegas haviam se
confundido e que ela era outra garota com o mesmo nome. O nosso professor
chegou e fez os últimos ajustes para começar o jogo. Antes de se afastar olhou
para a minha oponente.
— Ei, Rafaela! Tenha bons
modos! Não quero mais problemas com o seu nome envolvido!
Ela sorriu e balançou a cabeça
afirmativamente. Senti um frio na barriga. Essa era a garota de que tanto
falavam! Meus amigos não estavam errados... Deixando o medo de lado,
direcionei-me a ela.
— Então... Vamos começar?
Ela olhou para mim por um
instante. Olhava fixamente dentro dos meus olhos como se me analisasse e como
se estivesse frente a uma presa. Aparentava ser uma predadora insaciável.
Queria algo. Eu sentia isso. Talvez buscasse tirar algo de mim... Minha alma?
Pode ser um exagero tal comparação, mas seus olhos eram realmente aterradores.
Em poucos segundos já havia retirado quase toda a minha confiança. Com medo,
desviei o olhar. Ela voltou-se para o relógio umedecendo os lábios lentamente.
Tornando a olhar outra vez para mim apertou o relógio.
— Vamos começar!
Ela iniciou o jogo de forma
rápida. Avançou duas casas o peão que protege o rei. Fiquei intrigada com
aquilo. Uma jogada nada usual... Até um tanto ilógica. Ela viu a indagação
estampada em meu olhar.
— Não espere de mim o habitual
e o padrão. Não é assim que eu jogo e não me refiro apenas ao xadrez...
Vi que ela havia começado seus
joguinhos. Um sorriso surgira em seu rosto. Na verdade, ela conservou-o durante
todo o jogo. Enigmático e misterioso. Cheguei a fantasiar o que aquele sorriso
diria a mim se pudesse:
— “Decifra-me ou te devoro” — Diria,
sarcasticamente, zombando de minha perplexidade.
Uma jogada, um sorriso e uma
frase e já estava desconcertada. Aquela garota sabia o que estava fazendo.
Imaginei que já se deleitava por dentro com a minha aflição. De qualquer forma,
eu não deixaria que ela fizesse isso comigo. Poderia ter dado certo com outros
jogadores, mas comigo seria diferente! Retornei minha confiança e sorri para
ela num tom cínico e até um tanto insano. Ela se surpreendeu, mas não chegava a
desfazer seu sorriso. Parecia intocável, assim como o Muro de Berlim já fora um
dia. Assim era o seu sorriso, mas como o pobre muro alemão, eu o faria virar
pó. Esse era o meu objetivo e essa seria minha vitória que até sintetizei em
alguns dizeres a ela.
— Fico feliz por não encontrar
o habitual aqui, afinal, eu não o procuro. Prefiro o desafio, o incompreensível
e o diferente. É nessas situações que me divirto mais, Rafaela.
Ouvindo-me, minha oponente
apoiou o queixo em suas mãos e inclinou-se em direção a mim.
— Enfim alguém que vale a pena
jogar e, quem sabe, não só isso...
Ela dizia isso enquanto
acariciava o meu rosto com uma de suas mãos. Passava-a desde meus cabelos até
meu queixo, vagarosamente, enquanto me encarava. Fiquei paralisada. Não sabia
se isso fazia parte de seus joguinhos ou se ela estava falando a verdade. Pela
primeira vez no jogo, após muitas jogadas, reparei melhor em suas feições. Era
uma moça japonesa. Deveria ter seus dezessete anos. Não muito alta, mas com um
corpo muito esbelto. Ela era, definitivamente, apaixonante! Naquele instante
tomei consciência disso. Olhava-a e a fitava dentro de seus olhos. Estava
ficando paralisada novamente. Já não conseguia mais me mexer, mas meus amigos
vendo a situação vieram em meu socorro.
— Carla! Joga logo! Está perdendo o seu tempo!
Voltei a mim e levei meu corpo
para trás o mais longe possível de Rafaela. Olhei para baixo e respirei fundo.
Precisava me recompor. Contei de um até dez (o mais ridículo que eu achava
aquilo) e voltei ao jogo. E a Rafaela? Permanecia com o mesmo sorriso e apenas
me observava. Fiz minha jogada. A partir daquela hora não a olhei mais, sabia
que seria minha perdição. Fazia meus movimentos sem nunca desviar os olhos do
tabuleiro. Não poderia arriscar a me distrair novamente. Assim, o jogo
caminhava e as mesas ao nosso redor começavam a ficar vazias. Todos haviam
acabado seus jogos e nós continuávamos ali. Nosso tempo já se esgotava e o jogo
continuava fechado e acirrado. Não havia nenhuma visão de saída. Talvez nenhuma
das duas ganhasse. A menos que... Eu conseguisse fazer uma armadilha para ela!
Sim! Essa seria a saída! Estendi uma de minhas mãos na mesa enquanto a outra
suportava o meu queixo. Precisava pensar, cuidadosamente, na armadilha e aquela
posição sempre me ajudava a pensar. Entretanto, minha oponente aproveitou-se da
minha distração. Quando vi, sua mão já, sorrateiramente, tomava conta do meu braço
que estava encima da mesa. Olhei para ela. Olhando para mim e depois para o
braço começou a retirar a sua mão, mas enquanto retirava-a, simultaneamente, passava-a
pelo meu braço arranhando-o lentamente e... Deliciosamente.
— Você realmente é uma grande
oponente, Carla. Já capturou tantas peças e está me suportando de forma
corajosa. Muitos já teriam desistido há essa hora, mas não você. Imagino se
você é o tipo de garota dominadora ou se talvez só esteja esperando que alguma
garota venha e a domine...
Quando terminou suas falas, já
me encontrava totalmente extasiada. Contraria-me dizer que apreciei muito
aqueles arranhões. Contra-atacando, quando sua mão já escapava do meu braço,
segurei-a.
— Vejo que está tentando
traçar o meu perfil psicológico. Quanto as suas proposições... Talvez sim, talvez
não. A pergunta que permanece é: Será você a garota que descobrirá?
Continuei segurando-lhe com a
mão esquerda e com a direita movi meu bispo.
— Xeque!
A armadilha estava pronta.
Ansiava para ver como ela sairia daquela situação. Agora eu estampava o mesmo
sorriso que ela e até comecei a compreender o seu deleite. Seus jogos eram
verdadeiramente excitantes. Ela olhou para o tabuleiro. Via que estava
praticamente sem saída, mas não desfazia o sorriso. Eu continuava ali,
segurando-lhe a mão. Já deveria tê-la soltado, mas não conseguia. Senti uma
estranha ligação com ela e estava tentando compreender essa sensação.
Surpreendendo-nos o nosso professor chegou.
— Desculpe-me, garotas, mas
terei que encerrar o jogo. Não posso mais esperar esse xadrez eterno de vocês.
Guardem as peças, outro dia tentamos novamente.
Estava desamparada.
Permaneceria naquela sombra de dúvida. Nunca saberia se teria ganhado ou não
daquela moça. Rafaela não parecia tão abatida quanto eu. Soltou minha mão aos
poucos e começou a guardar as peças. Como eu não demostrava nenhuma reação, ela
fez todo o trabalho e por fim se levantou. De cabeça baixa, vi que ela
continuava em pé ainda perto da mesa.
— Ei, moça! Bom jogo! Podemos
marcar outra vez, se você estiver interessada. Não precisamos da escola para
jogar.
Levantei a cabeça e mirei seu
rosto. Ela olhou e sorriu. Realmente as histórias eram verdadeiras. Pouco lhe
importava o xadrez. Ainda com sua ousadia zombadora, piscou para mim, pegou sua
mochila e saiu.
Eu fiquei ali, sentada durante
um tempo. Fora apenas um jogo ou ela estava interessada em mim? E aquela
sensação quando segurei sua mão? Dúvidas. Levantei-me e fui atrás dela. No
corredor, encontrando-a, segurei-a pelo ombro e a virei para mim. Fitamo-nos
mais uma vez. Puxei-a para perto de mim e a beijei. Parei um instante sorrindo e sussurrei em seu
ouvido:
— Xeque-mate!
Ela me olhou, sorriu e me beijou novamente. Era o fim daquele jogo de xadrez. O rei não havia sido capturado, mas eu havia conseguido algo bem mais belo e inusitado: uma linda dama oriental.
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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