Bicgrafia
de Fred Le Blue
BICGRAFIA
(microhistória de bolso da ditadura empresarial civil-militar no Brasil)
Descrição: “Lembro-me da última vez que estivera livre, leve e solto ou leve, solto e livre, ou solto, livre e leve ou todas as anteriores. Já foi há muito tempo que já não me lembro com exatidão de texto impresso com impressora a laser em papel coche. Mas, me lembro com exatidão de marca d´água em papel moeda que foi há muito tempo. Tempo é uma coisa relativa, ainda mais para quem passou a maior parte do tempo preso, como eu. Não eu que eu não tivesse atividade, mas digamos que estou em uma espécie de cadeia de exploração capitalista com aqueles grilhões de bola pesada nos calcanhares de Aquiles. Esse, aliás, seria um bom nome para mim, se não tivessem me dado, sem deixar de incorrer em certo autoritarismo, Boliveira Inocêncio Colombo, ou, simplesmente, BIC.
Nos
primeiros tempos de minha vida, quando ainda não estávamos nessa ditadura que
assolou as instituições no Brasil por mais de infinitos 20 anos, me servi à
escrita com todas as minhas tintas. O mundo era para mim do tamanho da bolinha
de tungstênio. Eram cartas e mais cartas
encharcadas de lágrimas para todos os países do mundo e, até que me cansei de
tantas viagens mochileiras e tantos selos colecionáveis e saí da agência do
Correios e fui parar na Gazeta Vespa Matinal. Ali, foi realmente uma cachaça mineira
de primeira grandeza. Ladeado por outros profissionais como eu de alto quilate
e calibre, tínhamos tanta liberdade de escrita total em textos escritos a
quatro, cinco e, às vezes, até 6 mãos, que depois de um tal de revisa aqui,
revisa acolá, me sentia meio sem ar. Tanta pressa era porque eram depois tudo
era diagramado de noite para ser rodado no parque gráfico que mais parecia uma
engrenagem industrial e, de madrugada, ganhar as marquises da cidade, onde o
pessoal encadernava as folhas antes do galo e donos de banca acordarem. Falávamos de reforma básica que o presidente
Jango queria implementar. Havia esperança no olhar e toda intelectualidade
minimamente sensível estava em oba oba. A redação jorrava, na verdade, inundava
paixão pelo bom texto de tanta efusividade besta que a liberdade de expressão
facultava-nos.
Lembro,
como se fosse antes de ontem, quando chegaram os militares e fecharam a Gazeta
sob o pretexto de que ali era um antro de comunismo míope e pedófilo. Foram
anos de anos de lamúrias, augúrias e angústias augustinas. Profissionais
tiveram que se autoexilar em outros países para não serem presos. E eu mesmo,
por pouco que não fui nessa leva exportado para o Chile. Mas é que o dever me
chamava e tinha que seguir para a militância nos pasquins da contrarevolução,
pois “hay que endurecer, pero sin perder la palabra jamais”. Lânguidos tempos
de gordas provações. Nessa época os textos eram escritos com tinta vermelha.
Muito sangue correndo fora das veias. Os panfletos eram distribuídos em faculdades
e Centro Acadêmicos e, muitos deles, eram considerados subversivos. Isso
permitiu muitos jovens saírem do estado de alienação política que a ditadura
preferia com sua retórica desenvolvimentista e nacionalista fascistas. Mas,
resistimos às duras penas a que o regime ditava. E acho que, apesar do que
aconteceu depois, não me arrependo de nenhuma vírgula. Era preciso colocar os
pingos nos i´s, pois o estado de exceção abria um parêntese sem precedentes na
história política do Brasil.
Naquela noite, as estrelas não haviam
aparecido no céu de Brasília e o luar parecia mais minguado do que em noite de
lua minguante, apesar de que no calendário deveria ser cheia. Eles tinham
acabado de levar Ernestino, líder estudantil da UnB, um dos principais colaboradores
do Pasquim chamado “Não foi-se o Martelo” e não demoraria muito, descobririam o
Q.G. de onde provinha todo um arsenal simbólico de combate aos tantos “ai´s”
que a população gritava a cada canetada inconstitucional no Planalto. Seriamos
presos, torturados e muitos literalmente depenados com métodos tortuosos. Não
haveria de sobrar pedra sobre pétala para escrever se quer uma breve biografia
como essa – o que remete a como me safei desse mato com muitos cachorros
farejadores. Por sorte, para cada golpe existe um contragolpe com desigual
peso, porém força contrária maior, que só a teoria quântica para explicar
tamanha sinergia que permitiu a um bando de formigas pincher derrotar
aquele bicho de 5 generais. Mas isso só foi ocorrer com uma campanha direta ao
ponto pelas Diretas-Já que unificou de judeu a jogadores de futebol em prol de
uma única pauta.
Se
hoje estou nessa agência bancária, atado a esta seção de depósito automático
não deixa de ser ironia do destino, pois acredito ter sido uma forma que encontrei
depois que a ditadura se foi, mas o trauma “panóptico” não, de forma, que eu
mesmo passei a ser o meu algoz, ou melhor, o gerente do banco. Depois de tantas
perambulâncias pelos universos da prosa das mais distintas caligrafias (muitas
ilegíveis, como as dos palhaços doutores), não deixa de ser espantoso me ver e
ser visto nessa pequena agência dentro do Rio de Janeiro, dentro da
Universidade Federal do Rio de Janeiro do prédio da Letras, sem poder se quer
escrever lé com cré. Somente números complexos, números cardinais, que não tem
nada haver com cardumes, números pís que não tem haver o número do PIS, pois
contas universitárias desempregados trabalham com baixas cifras e os centavos
são contados a cada centavo. E aí, quase não sobra tempo para o milagre dos
peixes da poesia e a criação poética, essa piracema para poucos que quiserem
subir o rio pela sua terceira margem. Acorrentado literalmente, com os poros
encouraçados pelos porões da ditadura, tento estimular os jovens que me
procuram ir contra as correntes junto comigo para eu sair desse masoquismo
auto-imposto que me encontro. Mas, preocupados com teorias de crítica literária
poucos são os que escrevem de próprio punho textos que não sejam epígrafes
felinos de facebook, epitáfios
homossexuais de porta de banheiro. É que nos tempos da imagem que tem caneta é
cego. Talvez, por isso, todos andem cabisbaixos com os olhos vidrados nos
frágeis monitores do Iphone, eu-phone, e seus teclados eletroacústicos mágicos,
quase sempre a serviço do desserviço a nação. Os tempos mudaram e eu não
acompanhei a involução da escrita. Me sinto tal qual as máquinas de
datilografia “QWERTY” diante de um I-MAC, que ama muito tudo isso e tem tudo
haver com o Big Mac. Volta e meia, meia volta, contemporâneos concidadãos dizem
que poderia me dar bem em agências de propaganda, mas de cada 10 profissionais,
11 são diretores de arte e designers e os tempos estão mais Olivier (Toscana)
mil e uma fotos da Equipe Benneton do que o (Washington) Olivetto mil e uma
utilidades da Bom Brill. Pensei em fazer um anúncio de classificados, mas a
atendente do call-center informou que
a secção de empregos se fundiu com a de acompanhantes e achei que não pegaria
bem figurar nesse hall de vendedores
ambulantes de si mesmo, experts em
marketing prostitucional.
A não
ser para as canetas Mont Blanc, a escrita está em decadência. Já não se vive
mais o embate hameletiano nas papelarias, entre BIC e Compact, “eis a questão”.
E apesar da Paper Made ter tentado
acolchoar esse duelo com canetas de almofadinhas, estamos diante de uma crise
sem precedentes no mercado gráfico. A ditadura acabou, mas acho que os
jornalistas ainda continuam escrevendo receitas de bolo em suas “folhas”. Ou
melhor, receitas de ebola. E os escritores, que supostamente, teria mais liberdade
textual, atados até ao pescoço como acadêmicos com obrigação de citar Focault,
Bourdieu e outros iluminados para serem aprovados com louvor e glamour, por seus “pares-concorrentes”.
Ainda vejo um zine ou outro que algum
estudante deixa cair por aqui na agência, mas, fora isso, poesia já não se tira
de letra. Já que estou mais entre os números agora, perto de zero.
Durante
as manifestações de 2013, voltei a me empolgar e vários jovens me pediram
socorro para escrever esse novo facecartaz
da história do Brasil. Era a revolução brasileira, atrasada 500 anos luz,
com todas as letras de fazer tremer até mesmo o anti-imperialista acordo
linguístico lusófono que extinguiu o trema. Porém, com a repressão de represa
Bel Monte durante a gestão, justamente, de uma presidenta ex-guerrilheira de
esquerda na época da ditadura, meses depois voltaram para as carteiras,
resignados com sua condição de somente another tijolo oprimido e
comprimido contra a parede. Meses depois das revoltas sociais, já perto das
eleições, vi exercícios militares serem feitos por toda cidade e aqui também no
campus com direito a desfile fálico
funkeiro com armas apontadas para o céu, como se Deus fosse ter medo de bala
perdida. Esse clima de remake de
ditadura que me fez lembrar o funesto Ernesto, não o Che, mas o Guimarães,
herói estudantil abatido pelos abutres como abacate com cheiro de jacá. Vai ver
esse ballet bamboleante era porque
estavam em campanha política democrática pela ditadura, o que seria único na
história do Brasil cheia de acontecimentos únicos. Minha colega de seção ali da
outra mesa de envelope de depósito bancário tem uma teoria mais plausível: que
eles estavam com medo de que fosse eleito algum candidato de esquerda mais
radical (ou menos apaziguada) e essa violência visual era uma forma de coação
para barrar o crescimento eleitoral do candidato de extrema esquerda. No final
das contas me senti em liberdade condicional não ter que trabalhar nas eleições
e ter que ter visto esses brasileiros todos votarem quase que nos mesmos
candidatos de sempre em outubro de 2014 e continuar refém dos mesmos
sequestradores do bem e/ou dever público. Os tempos mudaram e nem precisam de
mim nas seções eleitorais para colorir, pintar e desenhar o “xzinho” ao lado do
nome do candidato – dá última vez que compus a mesa eleitoral o Macaco Tião até
tinha tirado um criativo terceiro lugar, representando os votos nulos. Hoje em
dia, está tudo informatizado como em filme de ficção-científica. Taí, um gênero
que nunca coloquei minha poeticidade, apesar de que dizem as más línguas ser
ela importada do mundo lunar. Nesses tempos de ditadura da imagens polarizadas,
acho quer seria mais inspirador escrever de lá mesmo. Se cansar desse planeta
que está voltando a ficar raso e quadrado ao som de "caneta azul",
peço asilo político lá e vou ser feliz como uma caneta voadora
não-identificada. Doravante, sem patrocinadores que não me pagam um centavo:
"Não mais escravo!". O difícil vai ser conseguir escrever no papel
com tamanha gravidade...
... E estarei
livre da “república do guardanapos” com canetadas nepotistas favorecendo amigos
políticos e de virar morcego hospedeiro do COVID-19 em 2020. Porque na Terra a
única tinta que tem sido usada mesmo nos últimos meses é o tal de álcool em gel,
mas que não nos limpa da falta de consciência planetária e humanitária de
muitos que não estão seguindo o isolamento social escrevendo poesias saudáveis.
Mas aí já é outra estória!
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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