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Cine Virtual: Despertar

Conto de Evandro Candido
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Sinopse: Amâncio desperta numa manhã de domingo luminoso. Amarga uma vida que, sem querer, considera errada. Suas páginas escritas parecem ser tábua de salvação. Escreve uma frase gloriosa, orgulha-se dela.



Despertar
de Evandro Candido

 

Amâncio despertou por conta própria numa manhã de domingo luminoso. Foi levantando aos poucos, contra os arroubos da cama que o retinha. Atravessara uma noite de sonhos entrecortados, em que tranças saltitantes iam e vinham ao alento de seus olhos assustados. Na palma da mão, a cama ainda quentinha contrastava com o frio que lhe fazia cruzar os braços. Sobre a mesinha, folhas de papel. Tinha certo orgulho de olhar para elas; parágrafos desenhados uns sobre os outros. A letra era bonita, dava prazer a sua disposição organizada.

Pela janela de seu quarto de pensão, via a rua em estado de preguiça. Manhãs de domingo são feitas de matéria que não se explica, num amarelo gostoso. Dentro de seu quarto, qualquer coisa de lacuna assoprava. Lá fora, o sol chamando. Há dias, Amâncio não saía. Eram tempos de férias: quinze dias sem entrar no banco, sem preencher fichas de empréstimo para clientes, sem explicar a lógica dos juros e financiamentos (para ele e para os clientes muito insuportável), sem ouvir os discursos do chefe que ditavam a premência das metas. Quinze dias sem atendimentos, na paz do seu quarto, ao alento de sua mesa sobre a qual o seu mundo se desenhava.

Diante do espelho, a calva vinha comendo-lhe a cabeça e os trapos da autoestima. Já tentara tantos produtos garantidos, tantas opções milagrosas, que, por fim, chegara à conclusão de que todas aquelas opções cumpriam o papel de trazer a paz de ao menos ter tentado. Evitava pensar no futuro inevitável de sua cabeça totalmente descoberta. Sobre a mesa, os parágrafos aguardavam. Uma leitura breve trouxe-lhe um gosto amargo à língua. Havia apenas uma letra bonita sobre o papel, e mais nada. Já não encontrava sentido nas letras há dias derramadas.

Insistia em olhar pela janela na espera de alguém que porventura passasse. Ninguém, no entanto, passaria. Todos dormiam. A lembrança do banco vinha lhe amargar ainda mais a boca. Dentro de oito dias, se apresentaria novamente para o ritual de suplício. Muitas vezes mais haveria de fazê-lo, cada vez mais farto e irremediavelmente calvo. As folhas sobre a mesa sorriam-lhe em tom de consolação: amargavam, eram pobres, mas pelo menos existiam.

O friozinho arranhava e incomodava, mas não o suficiente para fazê-lo retornar à cama. O sol começava a atravessar sua janela; era imparável, tal como sua calva, tal como a certeza da retomada em oito dias. Olhou para suas folhas e viu, em meio a tantas letras, a palavra martelando, maldita: "retomada". Não queria retomar, não queria ver as filas se acumulando, as pessoas impacientes (e com razão) por um atendimento que não vinha. Abominava as horas marchando a ritmo de lesma, aborrecia o cheiro das cadeiras; grande era a vontade de rasgar os documentos importantes, de esbofetear o colega de trabalho de olhos verdes, cabelos brilhantes e namorada deliciosa. Queria seu quarto de pensão, a vista da rua, sua caneta e os papeis que aceitavam qualquer palavra, por mais absurda. Importava-lhe despertar por conta própria, mas acima de tudo ver passar, todas as manhãs...

Afastou o pensamento com um movimento de cabeça. Olhou suas pernas e braços cabeludos. Os malditos cabelos cresciam onde deveriam desaparecer e desapareciam de onde deveriam crescer. O mundo estava errado, invertido. No espelho, enfrentava tudo com mais detalhes; a desgraça vinha se desenhando: no centro da cabeça, um tufo de cabelos resistindo ainda; ao redor dali, tudo desmatado, inferno em vida, cozinhando-o em fogo brando.

Se ao menos suas páginas consolassem, se ao menos dissessem o que ninguém lá fora dizia..., mas, pensando bem, reparando com mais detalhe, bem que diziam algo. Uma frase o atraiu sobremaneira; tinha certo efeito e estilo, poderia salvá-lo, sem dúvida era poderosa, condensava a força do intelecto, a criatividade em estado de ebulição, os suspiros do gênio pronto para despontar e transformar o mundo. Era frase que sobrevivia entre tantas outras, já abortadas. Frase de brilho diferente, que chamava outras tantas, ofuscando o sol. Por fim, teria o direito de mostrar o dedo médio para as metas do chefe, para o colega de cabelos brilhantes. Não mais importariam os peitos de sonho da namorada deliciosa que todos os dias aparecia no banco; como ela haveria de ficar despida e dormindo em sua cama? - afastava a ideia-ruído com outro movimento de cabeça. Depositada na folha, a frase era viva e repleta de estilo, muito mais maravilhosa do que uma nudez imaginada. Dava-lhe motivo para seguir adiante, para pensar em algo mais do que aquilo que se lhe oferecia, aquele acúmulo de projetos por concluir.

Olhou para a rua mais uma vez. Arrumou sua cama com esmero. Um perfume de café chegou-lhe, robusto. Havia uma frase depositada em suas folhas, uma ideia de vigor que lhe salvaria para sempre, que lhe dizia que novos tempos haveriam de vir, dias longe do banco, ao sabor de tudo o que ele sempre quis ser, mas que, até ali, não era, nem de longe. Tudo seria compensado pela continuidade da ideia. Assentou-se na cadeira. Ignorando o frio, começou a pensar.

Um ruído leve de batidas na porta tirou-lhe a concentração. Ao abrir, a visão de uma menina de encanto tomou-lhe todo o corpo. Ela vinha, a pedido da tia, dizer ao "senhor Amâncio" que o café estava na mesa. Ele não pode pronunciar uma palavra. A visão dela fazia calar. Calado ele permaneceu, calada ela foi saindo, na certeza do recado dado. Amâncio fechou a porta com a sensação de chumbo derretido no coração. Sabia que o termo "senhor" fundava abismos e que, sem sombra de dúvida, ele via-se a beira de mais um, dentre tantos outros conscientemente cavados a longo prazo. O cheiro da menina ficava com ele, na superfície lastimada da pele, incrustado nas frinchas do pensamento. Retomou a caneta. Era preciso completar a frase gloriosa ou mesmo edificar outra de igual quilate. As ideias, embrulhadas, vinham tortas; as palavras se perdiam, despedaçadas. Era novamente impotente. Em seus ouvidos, o chefe gritava por conta do relatório aparentemente perdido. Em seus olhos, a namorada do colega chegava para levá-lo (o colega) ao almoço; passando por Amâncio, despejava o frio e comercial "bom dia". Em seu pensamento, a menina dava o recado; o formato de sua boquinha tão propícia ao beijo desenhava a palavra "senhor", tão tumular quanto o "bom dia".

De repente, teve vontade de urinar. No caminho do banheiro, encarou o espelho, lembrou do chefe, do colega, das filas, da namorada deliciosa na qual nunca poderia tocar, das explicações aos clientes que pediam financiamento de casa, do termo "senhor" e do código "bom dia" que trancafiavam tudo. No banheiro, diante do vaso, foi soltando o líquido cor de suco de maçã (tomava bastante água) enquanto se concentrava no teto. Foi quando sentiu um fiozinho morno em seu pé direito. Num movimento como que de reação a choque elétrico, retirou o pé; estava molhado de urina. Deu-se conta de que, junto ao jorro principal, saía, do lado direito, um jato fino, uma ramificação (imprevisível e incontrolável) que vinha lhe molhar o pé.

– Inferno de vida! Não posso sequer mijar direito!

Sentindo uma dor desconfortável pelo corte do mijo e constatando que acabara o papel higiênico, foi, com movimentos de manco, em direção a sua mesa. Ardendo de ódio, enxugou o pé exatamente com a folha na qual se encontrava a frase gloriosa.
 

Conto escrito por
Evandro Candido

Produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


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