Dissabores
de Cupertino Freitas
Procura-se moça para
dividir aluguel e despesas de apartamento. A candidata deve ser responsável e
organizada. Há um quarto disponível, todo mobiliado. É só chegar e morar.
Minha mãe era sensitiva. Dias antes de morrer, alertou-me
sobre energias negativas, disse que eu precisava me inteirar mais sobre a alma
das pessoas que me cercavam para evitar dissabores. Citou explicitamente a moça
com quem eu dividia apartamento, perto de quem sentia-se bastante
desconfortável. Dei de ombros, achei que era paranoia dela. Há dois anos eu
dividia o apartamento com Ilka, que pagava sua parte do aluguel e das despesas
mensais rigorosamente em dia, nunca atrasava, atendendo perfeitamente às exigências
estabelecidas no anúncio que postei em um site de aluguel de quartos. Nunca vi
pessoa mais responsável e organizada.
Quando voltava de seu trabalho num call center, Ilka
trancava-se em seu quarto e passava horas e horas online, em sites de teoria da
conspiração, no underground da internet (a tal da deep web), em redes
sociais ou jogando com pessoas que jamais iria encontrar nessa vida, que
moravam na Coreia do Sul, Índia ou Nova Zelândia. Parecia que estava apenas
fisicamente no Brasil, mas sua cabeça, seus interesses, suas relações eram
sempre com estrangeiros. Era como se preferisse amigos virtuais e desdenhasse
daqueles com quem poderia ter uma relação real. Não tinha parentes na cidade, e
nunca falava sobre eles. Enfim, era meio estranha, tinha uma existência fora da
curva, mas não me causava aborrecimentos — ou dissabores, como
dizia minha mãe. Assim eu achava, só que eu que nunca fui muito boa em ler as
pessoas, em interpretar suas intenções. Não sabia identificar se eram do bem.
Para mim, quem cumpria suas obrigações era do bem. Como Ilka.
Quem também era do bem era Pablo. Estávamos firmes no
namoro e eu vislumbrava a possibilidade de morarmos juntos. Isso implicaria a
saída de Ilka do apartamento, pois Pablo acreditava que uma terceira pessoa no
espaço tiraria nossa liberdade. Mencionei o assunto de maneira tangencial com
ela, queria sentir se encararia com tranquilidade mudar-se, caso Pablo
resolvesse vir morar comigo, um dia. Ilka disse que jamais ficaria num lugar
como uma terceira pessoa, uma intrusa numa relação.
Estranhamente, desde então, ela passou a falar muito em
Pablo, a elogiá-lo sem motivo aparente. Achei seu súbito interesse meio
suspeito, afinal ele era alguém que ela mal conhecia e com quem praticamente
não interagia. Concluí que havia se apaixonado por meu namorado, mas não dei
muita importância, pois não tinha o menor receio de sua competição.
Pablo tratava Ilka
com indiferença. Nunca havia comentado comigo nada sobre ela, mal dava notícia
de sua compleição, de sua forma de andar, de sua bunda grande — e
ele era tarado por mulheres rabudas. Era como se ela inexistisse. Ela podia ser
minha rival e agir de forma sub-reptícia, tentando dar em cima dele, mas jamais
seria correspondida pelo meu namorado, um professor do ensino médio,
inteligente, descolado. Ele não tinha nada em comum com aquela moça de
interesses esquisitos ou bobos, e que nem bonita era. Não havia a menor
possibilidade de Pablo de interessar por Ilka. Eu confiava nele cegamente. Em
alguns meses de namoro, havia se transformado em meu porto seguro, alguém que
ficou ao meu lado, dando carinho e atenção, depois da morte de minha mãe. Fazíamos
planos para o futuro, tínhamos projetos, parecia que nosso destino estava
selado: uma vida maravilhosa, com viagens ao exterior, filhos, um seleto grupo
de amigos e envolvimento em causas nobres.
Quando nos conhecemos, através de amigos comuns, soube de
seus outros relacionamentos: todos acabaram de repente, quando tudo parecia
bem. Não levei em conta o fato de ele já ter sido casado duas vezes, dois
casamentos que duraram menos de um ano. Os sinais estavam todos ali, diante de
mim, mas eu preferi não enxergar. Minha mãe, no hospital, parabenizou-me pelo
novo namorado, pena que ele estivesse viajando a trabalho. Ela gostaria de
tê-lo encontrado para conhecer sua aura e abençoar nossa relação.
No dia em que descobri a verdade, amanheci com uma sensação
estranha, um peso no peito, uma vontade de chorar. Saí para trabalhar mais cedo, deixei Pablo no quarto, dormindo, e no
outro, Ilka, em seu universo paralelo, teclando efusivamente com alguém do
outro lado do planeta, às seis e meia da manhã.
No caminho para a estação do
metrô, percebi que havia esquecido o celular no banheiro e resolvi voltar para
pegá-lo. Entrei no apartamento, passei direto para o meu quarto e vi Pablo, na
minha cama, com a cabeça entre as pernas de Ilka, suas mãos a lhe acariciar os
seios, gemendo por dar prazer, enquanto ela arquejava. Depois eu o vi ir pra
cima dela e penetrá-la devagar, numa cadência que parecia ensaiada. Ela filmava
tudo com um celular. Fiquei assistindo à cena, oculta, até que suas respirações
ficaram bem ofegantes. Então anunciei minha
presença, dando uma pancada forte na porta. Pablo levantou-se assustado, Ilka
cobriu-se por inteiro. Fui para a sala e esperei os dois saírem. Pablo passou
primeiro, estendi minha mão direita e ele me entregou as chaves do apartamento.
Ilka saiu para trabalhar meia hora depois. Naquela manhã, mandei trocar a
fechadura do apartamento e deixei as coisas dela na portaria.
Alguns dias se passaram desde o flagra e eu ainda não
conseguia dormir direito. Ao deitar-se na cama onde fui traída, a cena de Pablo
e Ilka transando retornava à minha mente, era como se eu a assistisse de novo.
Uma noite, recebi no meu celular dezenas de links para sites de pornografia e
prints de vídeos em que Pablo fazia sexo com mulheres de traseiros enormes na
minha cama. Levantei-me enojada, benzi-me e corri para a sala. Fiquei no sofá,
deitada, inerte, pensando em como poderia evitar novos dissabores, até
adormecer. No outro dia, acordei disposta, fiz uma compra online — um novo colchão —
e deletei o anúncio no site de quartos para alugar.
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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