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Cine Virtual: Feliz Dois Mil e Vinte?

Conto de Joelma Couto
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Sinopse: Final de 2019, Antônio arrastava suas angústias pessoais, familiares e profissionais. Insatisfeito com o casamento e sentindo o peso da vida moderna. Desconhecendo o que o esperaria em 2020, um ano sem precedentes na história da humanidade. Como a COVID-19 o atingirá? É sob essa dura realidade que ele buscará reencontrar-se.



Feliz Dois Mil e Vinte?
de Joelma Couto

Que tal felicidade é essa? Fui arremessado nesse planeta caótico onde não encontro nada verdadeiramente seguro. Sou empurrado através do tempo e consumido pela incerteza. Nessa batalha de gigantes muitos habitam em mim. Se não bastasse essa guerra invisível minhas escolhas são esmagadas pelo mundo e suas regras. Sonhos recorrentes permeiam as minhas emoções, a maioria deles está profundamente ligado ao curso de medicina que apesar dos problemas financeiros conclui. As dificuldades que enfrentava para firmar-me profissionalmente, trabalhei em alguns hospitais, sonhava com especialização, consultório e tudo que fazia parte das necessidades de um médico recém-formado. Assim os próximos passos que daria rumo ao meu sonho, estavam traçados. Conheci uma garota linda e rica, nos envolvemos foi atração física arrebatadora e de repente uma gravidez. Fim de linha para meus os sonhos. Diante do ocorrido fui convidado para um almoço onde seria decidido meu futuro.

— Rapaz, você está ciente do mal que causou?

— Sim, senhor.

— Não criei filha para ser mãe solteira.

— Compreendo, senhor.

— E mais, terá que fazê-la feliz, ela é minha menina.

— Fique tranquilo.

— Terá que casar, ser homem e agir como tal. — Consenti com tudo que ouvi ali. Voltei para casa destruído, sepultando meus planos. O que fazer? Fui derrotado pelo monstro da libido.

Com o salário de um jovem médico não conseguiria sustentar a família, sendo assim passei a trabalhar numa grande empresa produtora de eventos para complementar a renda. Dois anos com essa dupla jornada, cheguei ao limite e por questões financeiras tive que abandonar a medicina. Fiquei em frangalhos, mas era necessário. Rapidamente comecei a subir de cargo minha carreira nessa área tomava proporções inimagináveis e assim se passaram quinze anos.

Abateu sobre mim um cansaço dessa vida acelerada, perdi o contato com o ritmo do meu próprio coração, sem a menor conexão com os meus sentimentos. Vi meu casamento esfriando naquilo ele se sustentava e meu filho mudando numa velocidade brutal. Eu sendo sugado pelo sistema, não acompanho a invasão dos cabelos brancos, as rugas e a flacidez da minha pele. De fato, essa busca desesperada em consumir tem sido a maior responsável por essa escravidão consentida. Já não basta ter um carro, tem que ser o lançamento, celular, esse fica ultrapassado em um piscar de olhos e o mais ridículo é que ninguém usa todas as funções básicas.

Mas que inferno, essa engrenagem gira, não tenho como pular deste barco e a mínima sensibilidade que ainda resta dá sinais claros que este está à beira do naufrágio. Não vejo como seremos salvos. Como se não fosse suficiente o caos interior e familiar, o mundo está a passos gigantescos para a completa desordem. Ninguém ouve e todos falam. As redes sociais expressam isso, basta ficarmos por alguns minutos observando e a incompreensão é gritante. Todos despejam seus medos e suas angústias, estamos doentes. Até que ponto seremos capazes de alimentar estes monstros?

No escuro do meu quarto, resgato o antigo Antônio dos escombros, onde seus velhos sonhos jazem. Aromas, melodias e o ritmo da vida intensamente sentindo, eis que surge o despertador rasgando o silêncio da madrugada. Lá se vão meus sonhos regressando ao esquecimento, afinal, hoje é segunda-feira e o dever me chama.

Assim o ano de 2019 está prestes a findar. Serei capaz de uma mudança radical em 2020? Presumo que não, tenho projetos inacabados, profissionalmente preciso mais. E o futuro? Esse não espera. A angústia cresce na mesma proporção que é ocultada dos demais, entulhando o espaço das minhas tensões e ecoando nos pesadelos. Sou um profissional bem-sucedido não posso manifestar sinais de fraqueza. Lá se vai mais uma semana, pulei feito macaco para dar conta dos compromissos. Meu deus, meus lobos internos gritam e debatem-se contra as grades.

Sábado, paciência esgotada, tanto quanto o corpo. O relógio biológico não perdoa, no horário habitual estou acordado, olho aquele corpo esculpido ao meu lado parece ter saltado de uma revista masculina. Eu poderia pensar como tenho sorte, uma verdadeira boneca toda minha. Logo aos primeiros sinais emitidos por ela ao acordar, sou arremessado contra a minha gélida solidão, onde nada que eu dissesse mudaria os compromissos sociais do final de semana.

— Que chato, estou atrasada, leve-me ao salão!

— Bom dia, querida. O que houve com o seu carro?

— Está na revisão, por falar em carro, já escolhi o presente de natal.

— Trocar de carro novamente?

— Enjoei, não suporto ficar mais de um ano com o mesmo carro.

O que me resta, senão assistir sua busca ansiosa para resolver seus “problemas”, salão de beleza, ‘shopping’, roupas, calçados e maquiagem, coisas que dizem fazer parte do ritual de beleza necessário a uma mulher. O que de fato carrega no seu íntimo, quais são suas angústias e seus desejos? Parece desfilar confortavelmente em seu papel. Pensando bem, muitos à minha volta, transmitem essa mesma impressão. Mas, no fundo, estamos todos fugindo do espelho capaz de nos mostrar nossa verdadeira imagem. O ritmo frenético ao qual estamos nos impondo não nos permitem parar, e se pararmos, logo buscaremos meios para fugirmos, nos ocupando superficialmente.

E nesta noite de sábado estamos a caminho de uma grande festa no sítio do meu sogro, onde será comemorado o aniversário de quinze anos da minha cunhada. Ao estacionar o carro sou invadido pela mesma sensação de inadequação e logo nos primeiros passos, encontro alguns amigos o que diminui meu desconforto. Gradativamente vou entrando no clima de comemoração. Aprendi lidar com essas festas, nada que provoque contentamento extraordinário, mas sobrevivo.

Meu filho com quinze anos eu desconheço seu mundo, ou melhor, tudo que ele vê e vive está preso à tela de um computador, até mesmo nas reuniões com os colegas e lá está o celular parecendo seduzir muito mais do que o contato real. Fico passeando pelas minhas memórias num verdadeiro e profundo questionamento. Onde ficou aquela criança que jogou bola comigo, parquinhos, brincadeiras e leituras? Por um bom tempo ler história, infantis ao seu lado era meu melhor programa familiar, já que o convívio matrimonial resumia apenas em cobranças, obrigações e pouquíssimos momentos insossos.

Festas de final de ano aumentam a correria, igualmente a superficialidade e, nessa altura está armado verdadeiros rituais desprezíveis aos meus olhos. Definitivamente, não faço parte desse meio, sou apenas um observador recluso na minha tristeza. Vejo escoar fragmentos de vida que ainda restam. Eu apenas sobrevivo às reuniões sociais, onde todos parecem confortáveis ao comemorarem seus progressos financeiros e profissionais. Enchem o peito ao contar seus acúmulos e descrever o que ainda ambicionam. Minha alma parece encolher diante da insignificância de tais conquistas.

Não recordo onde ficou enterrado meu contato com a arte, a boa música e a leitura. Por que ao invés de correr feito louco para a manutenção dos caprichos consumistas de Carol, não a apresentei ao meu mundo, foi por pura covardia? Penso que, no fundo, ganhar dinheiro também me dá um certo prazer. Prefiro pensar que sim, afinal fiz escolhas. Por que nunca a levei a um concerto? Boa Ideia, e assim cheio de entusiasmo passo em uma joalheria escolho um lindo colar, compro bombos e flores. Lá está Carol diante do computador, pouco receptiva, mas mantenho meus planos românticos.

— Hum, presente? Obrigada!

— Querida, iremos ao concerto hoje.

— Pode ser.

Cheio de expectativa, igual um adolescente no primeiro encontro, a cadeira não acomoda meu corpo, caminho de um lado ao outro diante do espelho, reviso os últimos detalhes, pareço bem. Finalmente, ela aparece linda e perfeitamente produzida.

— Nossa!

— … — apenas um sorriso enfeita seus lábios divinamente esculpidos.

Depois de muitos anos, mal posso conter a emoção ao entrar no teatro, meus olhos passeiam por toda parte, pareço estar sob o efeito de alguma substância capaz de provocar sensações por todo corpo. O silêncio gradualmente sendo preenchidos pela mágica viagem da 9.ª Sinfonia de Beethoven, bruscamente interrompida ao perceber o completo desconforto da minha companheira, que dá sinais claros e manifesta verbalmente seu descontentamento. Os minutos vão se arrastando, estou agora incomodado e não tiro os olhos dela. Assisto minhas ilusões se perderem, afinal ela jamais entenderá em que ritmo meu coração pulsa e nem mesmo dispõe de vontade para tentar. Eu também não a compreendo nas suas escolhas e aquilo que ele considera ser “felicidade”.

— Que programa, francamente!

— Desculpa, só pensei…

— Aquilo é música?

— Já disse, desculpa.

Silenciosamente entramos no carro, ela coloca suas músicas favoritas e eu mergulho na minha viagem solitária recordando o que acabei de ouvir naquele teatro, que apesar do incidente, vivi momentos de glória emocional e espiritual.

Sonhos lindos inundaram meu corpo de vida e cada célula respirava. Preciso mudar, só desconheço como. Dizem que homem só pede divorcio quando se apaixona por outra e esse não é meu caso. Ah! Deixa para lá, deve ser fantasia… vou arrastando os meus dias e acumulando bens, que tem suas vantagens. Ainda há vida em mim, pude perceber naquele concerto. Tentarei mudar alguns hábitos. Afinal, ano novo, vida nova, não é assim? Pelo menos é o que fantasiamos todo início de ano.

Aos primeiros raios de sol dessa manhã de domingo pulo da cama, invadido por questões existências, nenhum espaço dessa linda casa que vivemos parece ser meu lugar. Seria essa minha visão, reflexo de algum problema de ordem emocional, ou de fato a vida moderna nos empurra para essa completa fragilidade onde o verniz, socialmente aceito nos “protege”? Com a cabeça fervendo, entro no carro e entrego-me ao que ambiciono ser início dos meus projetos de ano novo. Debussy invade os espaços do carro se estendendo ao meu corpo, dispenso ar-condicionado, este momento pede o vento acariciando minha pele e cabelo. As ruas por onde, percorro lentamente, atravessam as minhas retinas contagiando o meu ser, e invadido por essa magia chego à casa dos meus pais.

— Filho, que saudade!

— Mãe, que conversa é essa?            

— Claro, te amo. — Seu olhar e abraço caloroso reforçam as palavras proferidas pelos seus lábios.

— A memória está ruim minha velha, esqueceu? Ontem estive aqui.

— Não, mas você hoje está diferente.

— Bobagem, são seus olhos.

— Ah! Ricardo deixou as chaves do teu apartamento.

— O que houve?           

 — Terminou o curso, vai trabalhar no Rio de Janeiro.

 — Guarde aí, se alguém precisar.

Dia agradável ao lado daqueles que mantem minhas raízes, almoço em família, histórias recheadas de dificuldades e pequenas, porém saborosas conquistas. É chegada a hora de voltar. Através do retrovisor vou guardando o meu melhor, naquele mundo que ainda é meu, eu sinto isso. E os minutos vão passando, os noticiários que trouxeram aos nossos olhos uma ponta de tristeza neste dia, emerge e assim assisto à dissolução de alguns planos. É inevitável ser impactado com as mortes e o caos instalados em outros países vitimados pelo novo COVID-19.

Convivo com aqueles que ignoram as dores de um planeta, a ponto de não enxergarem as reais ameaças. Os noticiários há cada dia nos mostrando que seremos atingidos. Eu sinto não apenas por pertencer a mesma espécie, mas também pela minha formação. Sei das medidas necessárias para atravessarmos este momento. Compreendo as dificuldades de uma sociedade imediatista e infantilizada.  Não sei em que medida serão capazes de suportar momentos de isolamento e solidão.

A realidade política e econômica do nosso País é preocupante. Convivemos com a ignorância opcional ou real, entre outras.  Um povo que sofre pelo descaso dos poderes públicos. É impossível mensurar o que nos reserva para o decorrer deste ano.

Como eu havia previsto e ao mesmo tempo temido, os hospitais do nosso país contabilizam seus casos. A nova realidade incide diretamente nos hábitos de muitos, especialmente aqueles que vivem em grandes centros. Distanciamento, isolamento passam a compor os novos hábitos. Devido ao cancelamento dos eventos, estou as voltas com minhas dores e sinto-me paralisado. O que farei da vida? Tempo sobrando, organizei a biblioteca, li alguns livros, e assim tenho aproveitado este tempo. Tomo conhecimento do noticiário para assegurar a informação necessária. Fiz algumas tentativas de entrar no mundo do meu filho, sem sucesso. Se bem que a vida de Carol e Lucas não sofreram grandes alterações, eu quem sou, para variar, um estranho no ninho. Consciente das recomendações da OMS, tento convencê-los da necessidade do distanciamento e sou criticado. O ritmo da família dela continua com festas, eventos menores e fechados, mas eu não compartilho dessa irresponsabilidade e agora tenho argumentos que me garantem o distanciamento de tais reuniões.

            Este período de descanso já passou dos limites, São Paulo vive momentos de horror, não suporto mais ficar nesse mundinho fechado, assistindo pela TV o rumo que a pandemia toma e logo ali, ao meu lado. Mas por onde começo? Penso rápido. E estou aqui a meia hora tentando colocar em pratica minha decisão. Finalmente tudo resolvido, resta apenas começar.

 — Lucas, eu e tua mãe estaremos te esperando na biblioteca dentro de dez minutos.

— Certo — consentiu com os olhos presos à tela do computador

— Carol, vamos à biblioteca precisamos conversar.

— Sim.

— Aguardaremos Lucas.

— Sim papai, o que houve? — Disse meu filho ao nos encontrar a sua espera.

— Vou trabalhar como voluntário no combate à pandemia.

— Voluntário? Francamente, não é você que se esconde desse tal vírus perigoso? — Seu tom habitual de ironia não me surpreendeu. 

— Sim, ao contrário do que sua família prega e age, é perigoso sim.

— Então, vai bancar de herói?

— Não, só preciso me sentir útil, e fazer jus ao meu juramento.

Conhecendo o nível das nossas conversas, já presumia essa reação. Prossegui pondo em prática os detalhes.

— Embora vocês não acreditem nos riscos de contágio, farei minha parte.

— Como? — Disse Lucas.

— Ficarei no meu antigo apartamento, está desocupado. Vou trabalhar diretamente com infectados, prefiro não expor vocês.

— Alguma dúvida?

— Normal, papai.

— Ficaremos bem. — Disse Carol, sem mais uma palavra.

Peguei apenas roupas, objetos pessoais, pois o apartamento ainda está montado desde o tempo da faculdade. Não desfiz porque sempre abriga algum jovem estudante da família, aquele espaço está carregado de lembranças, as quais não quero esquecer. Despedi-me de Lucas e Carol, recomendei-os aos cuidados que sei, não seguirão. Entrei no carro certo do que enfrentarei, hoje dormirei na casa da minha mãe, onde darei as últimas recomendações. Coloquei Beethoven sonata ao piano e sai com a missão de ajudar salvar vidas, mas, no fundo, estou salvando a minha, independente à que estarei exposto, mesmo assim não tenho dúvida.

— Filho, o que houve, você aqui?

— Ficarei uns dias no apartamento.

— Por quê?

— Medida de segurança, vou trabalhar como voluntário, no combate ao (COVID-19), portanto não vou expor minha família ao vírus.

— Parabéns meu filho, Deus te ilumine.

— Obrigado, mamãe, por favor se cuidem.

— Claro, às vezes teu pai fica nervoso, mas passa. Ficar preso não tem sido fácil.

— Verdade, a família de Carol não está preocupada com isso.

— E Lucas?

— Computador não transmite vírus aos humanos. — Rimos da minha piadinha.

— Meu Deus! Esse excesso também é uma espécie de vírus.

— Verdade mamãe, mas a adolescência é marcada por excessos.

— E esse é seu único, não é?

— Isso me tranquiliza, aplicando nos estudos, obediente e bom caráter.

— Fico tranquila. — Disse mamãe.

Assim continua nosso papo, transformando a cozinha em sala de reunião. Eu, mamãe, papai, meu irmão mais velho (um artista brilhante, que nunca soltou a barra da saia da nossa velha, ainda bem) e minha irmã caçula, essa não difere muito de Lucas.

Revigorado, depois dos momentos de aconchego familiar, despeço-me excedendo nas recomendações. O olhar de incentivo e aprovação de todos ali, enche meu espírito de coragem, sigo certo das dificuldades, mas algo maior me move através do trânsito tranquilo e nem parece que estou em São Paulo. Finalmente a primeira visão do apartamento reforça minhas certezas, o aroma deste lugar, resgata aquele estudante entusiasmo e tudo está exatamente como antes. Alguns objetos deixados por outros estudantes que como eu, usaram este espaço para abrigar seus sonhos. Agora estou aqui movido por uma força misteriosa. É impressionante a forma como aquele cansaço desapareceu e sinto-me de volta ao vigor dos vinte e oito anos.

Amanhã será meu primeiro dia no hospital, aproveito o resto do dia para matar saudade deste lugar, meus livros e antigos CDs. Cercado por moveis simples, mas atendem as necessidades do momento. Uma biblioteca modesta e aconchegante, aproveito para ler um pouco. Meu espírito precisa de munição, pego o livro — Em Busca do Tempo Perdido — Marcel Proust, aconchego-me na poltrona de couro ao lado da escrivaninha certo de que estarei em ótima companhia pelas próximas horas.

No horário habitual meu coração dá sinais e antes mesmo do despertador. Levanto-me coma certeza que terei um dia repleto de emoções, preparo um café como nos velhos tempos, e aquela mágica sensação diante dos mistérios da vida injeta uma espécie coragem. Passarei por um treinamento preparativo, antes do trabalho.

Olho a entrada do hospital onde tantas vezes alimentei minha alma de sonhos, hoje após tanto tempo volto em busca de uma luz que devolva ao meu ser a capacidade de sonhar. Essa é minha tentativa de resgatar a humanidade adormecida em um corpo que caminha para a finitude, e esteve escondida atrás de uma “felicidade” programada. A qual nunca verdadeiramente estive presente. Este lugar tem cheiro de vida, embora muitas vezes apresente mais mortes e dores, e que, no fundo, abriga almas sendo resgatadas perante suas dívidas.

— Bom dia!

— Bom dia. Dr. Antônio, ótimo tê-lo conosco nessa batalha.

— Sinto saudades deste lugar, espero poder contribuir minimamente, embora esteja enferrujado.

— Este treinamento será capaz trazê-lo de volta — disse Dr. Carlos em tom de brincadeira.

Foram refrescando meus conhecimentos, ao passo que fui apresentado às inovações. Em seguida, treinamento específico no tratamento ao novo vírus.

— Confesso, estou bastante apreensivo.

— Fique tranquilo, Antônio você dará conta. Sempre que, precisar estamos aqui. — Dr. Carlos com sua segurança e capacidade de nos acalmar. Além de ser um profissional brilhante é um ser iluminado.

Regressar todas as noites ao cantinho que acolhe meu corpo cansado e no dia seguinte atravessar minhas limitações e incertezas na tentativa de enfrentar este momento. Assim foram meus dias. Após cumprir todos os treinamentos necessários, estou pronto para lidar diretamente com os casos graves.

Depois de um bom banho, preparo uma sopa, antes tomar vendo um bom filme, ligo para mamãe:

— Filho, tudo bem?

— Sua benção, mamãe.

— Deus te guarde e proteja, meu filho.

— Papai está mais tranquilo?

— Como sempre, teimoso. — E assim nossa conversa segue.

Em seguida ligo para Lucas e Carol, preciso saber como estão.

— Alô

— Tudo bem filho?

— Normal.

— E tua mãe?

— Está dormindo.

— Ela está bem?

— Penso que está.

— Diga a ela que amanhã ligarei, boa noite filho.

— Boa noite, papai.

Acordo bem mais cedo que o habitual, mamãe, suco de laranja e torradas com geleia. Minhas narinas são invadidas pelo aroma de café fresquinho, enquanto alimento minha alma ao som do Bolero de Ravel, tomo o café lentamente, afinal hoje será meu contato direto com as dores alheias, depois de tanto tempo.

Tentando conter a aflição sigo rumo à minha missão. Visto-me como se estivesse numa guerra, o que não deixa de ser. Nosso inimigo além de desconhecido é invisível (de certa forma, pois as medidas de higiene e proteção nos isolam a tal ponto que chegamos a fantasiar que o enxergamos, não apenas no ar, objetos e colegas à nossa volta. Todos numa distância que se acredita oferecer segurança e cada um lidando à sua maneira diante dessa realidade), estamos todos vulneráveis, isso é assustador.

Ao entrar no espaço reservado aos casos graves, sou atingido frontalmente pelo que há de mais frágil, a linha delicadíssima que separa vida e morte. Muitos dos que aqui estão, gozavam de boa saúde, e, se encontram aqui, isolados e entubados. É uma realidade inimaginável e não apenas pela minha pouca experiência, mas pela invasão silenciosa e inesperada.

Volto para o apartamento não mais vencido pelo cansaço e apatia que há algum tempo arrastou-me pela vida. É essa experiência de lidar com o que há de mais frágil e finito que revigora minha alma, trazendo luz ao que verdadeiramente posso chamar de vida.

Enquanto preparo uma refeição leve e nutritiva, ouço J.S. Bach: The Violin Concertos, buscando serenidade. Após obter notícias da família, faço uma retrospectiva deste dia sem precedente.

Já se passaram trinta dias, fui tantas vezes dilacerado ao presenciar mortes, outros ali precisando do aconchego familiar e contando apenas com os cuidados profissionais. Os quais nem sempre conseguem lidar com sua solidão humana e profissional. Muitos que como eu também estou longe de suas famílias, com o intuito de protege-las. Ali vivemos também momentos de alegrias, ao vermos pessoas se recuperando.

É inevitável buscar compreender este momento, e, ao mesmo tempo, sonhar com possíveis mudanças. Embora eu não consiga acreditar que a humanidade sairá melhorada. Poucos, passarão por verdadeiras metamorfoses. Haverá aqueles, como sempre houve ao longo da história capazes de alimentar seus dons artísticos, e presentear o mundo com aquilo que conseguirem produzir. Mas, infelizmente muitos sairão piores, gostaria que essa fosse apenas uma fantasia pessimista, mas são reflexões de alguém que conheceu o ápice da superficialidade humana.

Obedecendo o que sempre faço ao chegar onde revigoro minhas energias, permaneci por alguns minutos revivendo as experiências dos últimos cinquenta dias. Tenho travado verdadeiras batalhas não apenas nesse desafio diário que abracei, mas também no resgate à minha alma. A complexidade da existência voltou a dialogar com o silêncio das noites escuras, onde a solidão é minha companheira e aliada. Aliada pelo simples fato de que apenas através dela serei capaz de enxergar a minúscula centelha de divindade que alimenta minha esperança. Com o peito transbordando de saudade hoje uso chamada de vídeo.

— Filho!

— Sua benção, mamãe, saudades do seu colo!

— DEUS te proteja, meu filho, também estou com saudades, mas ela suporta.

— Tudo bem por aí?

— Sim, apesar de conviver com o distanciamento, os noticiários, estamos aprendendo lidar com nossas angústias.

— (…) E assim permanecemos em silêncio, assistindo as lagrimas do outro… sei que é ali onde abasteço minha capacidade de atravessar tempestades e agora não está sendo diferente são aqueles olhos que revigoram minhas forças.

Após alguns minutos de silêncio, conversamos, rimos e brincamos. Ela contou histórias engraçadas de papai, onde seu único evento externo é colocar o lixo para que o carro pegue. As compras da casa ficam a cargo do meu irmão, sei que ele segue as recomendações à risca, no que se refere a cuidados pessoais, com máscara, higienização, e todo procedimento ao voltar com as compras. Isso deixa meu coração tranquilo. Meu povo é obediente.

Com a mesma esperança de ter momentos calorosos faço chamada de vídeo para Carol:

— Carol?

— Oi!

— Tudo bem?

— Tudo, papai testou positivo, está com sintomas, continua em casa, nosso médico está cuidando dele.

— E Lucas?

— Está bem, fizemos o teste, não temos sintomas, mas como papai testou positivo, agora estamos aguardando resultado.

— Se cuide, e cuide do nosso filho.

— Sim.

— Hoje deixarei o celular ligado, se precisar…

— Não vai precisar, está tudo sob controle.

— Quero ver Lucas.

— Lucas, toma.

— Oi! Papai.

— Tudo bem, filho?

— Tudo. E você?

— Estou bem, com saudades.

— Também.

— Se cuide, meu filho. Se precisar, me chame!

— Certo.

— Deus te proteja, meu bebê. — Ele ficou sem graça, mas, no fundo, sinto que nossa relação terá momentos de cumplicidade profunda é apenas uma travessia própria da adolescência e vai passar.

Carol parece que nem diante da ameaça direta desce do seu pedestal. Não alimento ilusões, agora não é momento para pensar nisso e o tempo dirá. Esse momento familiar mexeu profundamente comigo, e sempre busco música para elaborar minhas emoções, Tárrega, Fantasia La Traviata Guitar (Tatyana Ryzhkova, tocando divinamente) e nessa atmosfera entrego-me.

As luzes ascendem e eu estou em uma igreja belíssima, onde a orquestra apresenta o Réquiem de Mozart, o maestro com um ar angelical conduz como se tocasse o céu, de repente o despertado atira-me contra a realidade, estou aqui no meu quarto sob o efeito do que acabei de ouvir. Dominado por essa magia levanto-me, vou de encontro à minha missão e no percurso para o hospital divago através daquela imagem e melodia.

Ao chegar, sou surpreendido com um paciente entubado, tardo um pouco a reconhecer aí checo o nome, Rubens Alcântara, é meu sogro. Meu Deus! E Carol? Corro ao telefone.

— Alô.

— Carol?

— Como você está?

— Estou bem, preocupada com papai, ele está hospitalizado.

— É, eu sei, acabei de vê-lo.

— Como ele está?

— Sob os cuidados de profissionais competentes.

— Eles vão salvar meu pai, né? — Ouvi seu choro do outro lado, e aquela indagação infantil. Fiquei sem chão: o que respondo? Sei da gravidade do quadro dele, não posso iludi-la e também não posso fazer nenhuma previsão. Cuidamos de muitos nas mesmas condições e sobreviveram.

— Todos estamos empenhados em salva-lo. Fique calma, não há nada que você possa fazer agora, além de esperar e orar.

— Certo.

— E Lucas?

— Está bem.

— Dê um abraço nele, beijo.

— Tchau!

Volto ao trabalho, meu Deus como este vírus é cruel. Sr. Rubens pratica atividade física, é saudável, sessenta e cinco anos, não fuma e bebe socialmente. Definitivamente, não há nada que nos assegure de que estaremos livres. Essa incerteza é fonte de angústia, crescente.

Meu sogro ali, vencido e feito um robô ligado aos aparelhos. Onde foram suas convicções, escolhas e fortuna? Fez piada com o vírus, assumiu posição favorável à economia e defendeu seu patrimônio. Nunca morri de amores por ele eu poderia estar comemorando, mas saio do hospital completamente desolado. Tomo banho e depois apenas um suco, fico por alguns minutos, inerte, olhos fixos no teto do quarto.

— Xeque-mate! A natureza se revolta. Cadê tua medicina? Toda ciência humana se curva diante do invisível. — Uma voz ecoa e parece assoprar ao meu ouvido. Dou um pulo, olho em volta, apenas eu e os móveis do quarto.

A caminho do supermercado observo a cidade vazia algumas pessoas caminhando tranquilamente como se não houvesse nada que as incomodassem nem mesmo o uso obrigatório das máscaras. Outras além de usarem máscaras caminham como se estivessem com nojo de tudo e de todos.

Desço do carro, olho em volta e o estacionamento, completamente vazio. Sou tomado por uma espécie de paralisia e nem mesmo o tempo que avança com os ponteiros do relógio consegue arrancar-me dessa imersão. De repente:

—Toninho? — Apenas meus amigos íntimos da adolescência chamavam-me assim.

— Opa, Anne? — Como esqueceria uma garota com alhos, feito faróis em noites escuras?

— Sim. Como está?

— Estou bem, ou melhor atravessando este momento. E você?

— Nem me fale minha mãe estava morando na Itália foi a primeira da minha família e meu esposo trabalhava na Espanha foi um mês depois e desde então tenho tentado superar a dor da perda.

— Sinto muito! — Como não chorar por dentro ao ver aqueles olhos ensombrados?

— E o pior, não pude estar com eles nem para o velório. É como se eu os houvesse abandonado no momento derradeiro.

— Lamento profundamente. — Meus olhos nem sabem como reagir diante de tudo isso.

— E agora vivemos sobressaltados diante da ameaça diária. — mais uma vez não consegui suportar sua angústia.

— Verdade. — Uso apenas os olhos para expressar minha comoção, não sou muito bom com as palavras principalmente em momentos de dor. Trocamos nossos contatos e isso foi tudo que o momento permitiu, nos despedimos de longe.

Dói muito não poder abraçar uma pessoa querida e ainda agora em que ela está abatida e fragilizada. Estamos ilhados em nossos próprios corpos. E sob esse efeito volto para meu refúgio onde passarei o resto do dia duelando com meus medos e assistido apenas pela, a solidão.

Vivo um momento de profunda introspecção que em grande parte se deve a atual realidade, mas é inegável que os problemas arrastados ao longo dos últimos anos não foram resolvidos e apenas em alguma medida, adiados. Enquanto isso abraço meu caos interno e em paralelo tento contribuir como consigo na tentativa de amenizar o caos externo. Convivo diariamente com a possibilidade de que a qualquer momento serei atingido pelo vírus, sendo assim continuo seguindo à risca todas as recomendações.

Entro na UTI com o mesmo ar reverencioso habitual, tenho visto com muita frequência desligarem aparelhos e prepararem os corpos. Aquele corpo diante dos meus olhos, é Sr. Rubens. Meu Deus! E Carol? Não sei exatamente o que sinto, mas conheço parte da sua história pessoal e em alguma medida compartilhamos algo. Fora dezesseis anos tentando manter uma relação o mais cordial possível.

Sem a mínima condição de permanecer ali, volto ao apartamento e tomo um banho. Tenho que ir ao encontro de Carol, ela precisa do meu apoio e quanto antes. Só no caminho percebo que esqueci as chaves, mesmo assim sigo.

— Lucas, onde está sua mãe?

— Soube que vovô faleceu, pegou o carro e saiu.

— Onde ela foi?

— Não sei, saiu sem o celular.

— Meu Deus!

— Vovó está vindo para cá.

— Ela já sabe que sua mãe saiu?

— Não, mamãe ficou desesperada.

— Liguei para vovó, quando fui procurar mamãe, ela havia saído de carro.

— Vou para o hospital ela deve ter ido ver com os próprios olhos.

Saio aflito na esperança que ela esteja a caminho do hospital. E assim vou analisando a relação que ela sempre teve com o pai mesmo com trinta e um anos não deixou de ser menina, muito mimada e não cresceu. Meu Deus! O que será daquela criança? De repente avisto um tumulto, sou avisado de que houve um acidente de trânsito e tem alguém gravemente ferido. Desço do carro para prestar os primeiros socorros, reconheço ao avistar é Carol presa às ferragens. Ao aproximar percebo que ela está com vida.

— Papai, meu pai.

— Calma, o resgate está chegando, respire. — Tento acalma-la como posso, está presa às ferragens, temos que esperar.

— Quero meu pai.

— Estou aqui com você, vai ficar tudo bem.

Finalmente ela foi retirada das ferragens e levada ao hospital. Devido ao protocolo de distanciamento tenho que ir no meu carro. Acompanho cada detalhe ela está gravemente feriada e seus olhos visitam a realidade humana através da dor.

Na sala de espera aguado aflito não sabendo mais o que pensar e essa agonia parece durar uma eternidade.

— Sr. Antônio?

— Sim.

— Sua esposa não resistiu, sinto muito.


Conto escrito por
Joelma Couto

Produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


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