Mulheres de 40 Também Sonham
de Bruna Longobucco
A casa no fim da
esquina não era pequena nem grande. Nasceu como uma a mais na linha sucessiva,
coexistindo, medianamente pacífica. Não abrigava pouco, nem comportava o
excesso. Apenas sobrevivia. Assim como muitos de nós, em nossas várias
versões... Somos como ângulos ou formas afins; rios que deságuam em oceanos,
atores ou meros espectadores.
Enfim, pessoas que
conhecem as janelas e, com elas, os sonhos, mas, que em certo ponto, lidam com
as portas, entendem seus limites. Concepção de que, cedo ou tarde, daremos
adeus às buscas insensatas e ficaremos suspensos. Em aparência, substanciais,
no entanto, assustadoramente frágeis. De um lado, a vontade de correr. Do
outro, a responsabilidade em ficar.
À margem, alguns se
vão. Partem ansiosos em direção ao que não souberam definir, foi desafio e
arriscaram tudo, por temer um dia ser nada. Ah, mas no horizonte que se estende
plano, no cenário urbano, muitos permanecem sem escolha. Nitidamente reais e
ainda assim opacos.
Com a casa deu-se a
mesma história. Embora almejasse o topo da montanha e questionasse as quedas
irregulares, ficou estática no meio do caminho. Parte concreta da visão que
compartilhavam as outras mesmas casas na linha reta. São tantos vizinhos, que
os telhados se confundem, formando, no todo, uma só expressão. Traços
inacabados de cimento que constituem cercas civilizadas. Há paredes de novas e
velhas roupagens, as que refletem pinturas delicadas, as que apresentam
reboques e cascas, muros que através de uma fina camada, encobrem ruínas. É a
cidade, sussurrou o tempo, com seres e caminhos pertencentes a uma mesma
estrutura.
Durante o dia, o sol
reflete as diferenças sociais, culturais, arquitetônicas. Mas durante a noite,
quando só se ouve a voz da montanha, a cidade é una, um só cenário compondo a
junção de todas as luzes. Luzes ofuscantes, momentaneamente, indivisíveis. Cada
luz uma vida e as vidas, infinitamente superiores às luzes.
Ao fixar a casa da
sacada eu penso nas paredes. No que guardam. No que escondem. No que as minhas
paredes sufocaram durante tanto tempo. Sem falar às vezes falamos. Os olhos e
os gestos denunciam. Quase ninguém percebe.
Hoje eu entendo que todos
os dias podemos fazer novas escolhas. Isso antes me soava como um livro de
autoajuda. Agora é a minha realidade. Pela primeira vez em meses, eu, Valentina
Greco, consigo fazer planos.
Desvio os olhos do
horizonte para dar seguimento ao meu dia.
A nuvem cinzenta que se
acomodou sobre minha cabeça durante anos desapareceu.
Encarei o espelho com
um sorriso. Cuidei de mim como não fazia há muito tempo. Preparei um almoço
saudável, organizei a agenda para a semana. Quando meus filhos foram para o
colégio, mudei meu status no Facebook: divorciada.
Meu novo emprego era
home Office, então eu fazia meu próprio horário. Revisava textos para uma
editora conhecida, que orgulho. Que alívio não depender de ninguém!
O apartamento era
pequeno. O bairro simples, nada da vida confortável de antes, com empregadas e
artigos de luxo, mas finalmente eu tinha um lar. Eu tinha dignidade. Sem
ninguém para me dizer o que fazer ou como me comportar. Sem ninguém para
criticar minhas roupas, o cabelo, o rosto, a voz e o corpo.
Foram oito anos de
agressão moral. De tortura psicológica. Oito anos presa a um casamento que
esmagou minha autoestima.
Conheci meu ex-marido
pela internet. Num site de relacionamentos. Eu era uma mulher de 30 anos que
tinha passado a juventude reprimindo seu comportamento para andar na linha e
por isso ainda virgem.
Até então eu vivia para
meus 4 gatos, um acervo de 3000 livros, 1000 DVDs e 480 CDS, que me tornavam
uma mulher ocupada. Eu escrevia romances que nunca publicava e lia toneladas de
histórias açucaradas. E Tudo isso parecia bastar, até o momento que a vontade
de ser mãe gritou comigo.
Meus amigos estavam se afastando,
mudando para longe, casando. Foi o gatilho para me sentir solitária. E a
solidão foi uma péssima conselheira. Foi assim que o Felipe Reis entrou na
minha vida. Ele tinha 35 anos, era um empresário bem-sucedido, boa aparência,
simpático, educado, formado em Administração na Universidade Federal. Não dei
importância para o fato de não ser ligado à família biológica, o que foi um
erro. Ali estava a resposta para um bom partido como ele ainda estar
solteiro.
Antes do casamento conversávamos
por horas, ríamos juntos, foram meses sem nos encontrarmos pessoalmente. Quando
finalmente nos encontramos vi que ele queria algo sério comigo, também vi nele
carência, acreditei que seríamos grandes companheiros. Tolo engano. Bastou
assinar os papéis e ele se transformou. Temperamento explosivo, agressivo, sem
qualquer tolerância, dado a rompantes.
A lua de mel foi um
inferno. “Não suporto cheiro de mulher”, não espere muito de mim na cama.
Começou assim. Qualquer coisa o destemperava. Descobri seu histórico de uma
infância abusiva e muito dura. Ele tinha sérios problemas emocionais, mas não
percebia.
Cada dia eu
experimentava uma grosseria diferente, uma nova mágoa. Não houve ato de amor,
mas de violência. Era um pesadelo.
Tentei disfarçar
enquanto pude. Escondi da família, dos amigos, até meu corpo me denunciar e gritar
por socorro. Não sabia o que tinha, ficava tonta, coração disparava, desmaiava,
sensação de morte. Depois de passar por muitos médicos, o diagnóstico foi
Síndrome do Pânico. Para Felipe o que eu tinha era frescura, “coisa de gente à
toa”. Não fiz terapia porque ele não quis pagar e eu não tinha renda.
Felizmente achei pessoas que passavam pelo mesmo problema e lendo seus relatos
e indicações de terapias alternativas consegui superar o pico da síndrome. Fiz
terapia natural. Li livros sobre o tema. Aprendi a respirar pausadamente e a
evitar os gatilhos.
Por que nunca o
denunciei à polícia? Por vergonha, medo da retaliação e também para resguardar
meus filhos. Não posso omitir que também não queria me expor. A opinião pública
pode ser dura. E mesmo nos dias de hoje sabemos que a mulher sofre preconceito.
O que sei é que a pena
para o meu silêncio foi amargar cada palavra dura que meu ex-marido desferia
como um tapa. Era como se eu merecesse aquele castigo por ter sido tão ingênua
ao me casar com ele e por não saber dar um basta.
“Inútil”, “louca”,
“alienada”, “você está acabadinha, hein?”, “só sabe comer, por isso está acima
do peso”, “não se cansa de comer, não é?” “Não fale mais, não suporto a sua
voz”.
“Corte minhas unhas,
elas estão enormes”, “faça minha comida, cadê meu suco?” “Mereço ser bem
tratado após bancar todos os seus gastos”.
E pra piorar eu fracassei
em todas as minhas tentativas profissionais, não fui chamada para os concursos
que fiz, dos currículos que enviei não recebi resposta, não tinha capital para
abrir uma empresa, o que tornava Felipe mais poderoso, porque enquanto me
sustentava prosseguia controlando cada um dos meus passos.
E na intimidade, os
olhares de nojo eram ainda piores do que as ofensas. No começo ele apenas
invadia meu corpo sem nenhuma preliminar. Engravidei no ápice das crises de
pânico, tomando calmantes e chás o dia todo.
Nem sei como consegui
largar a tarja preta, mas larguei. Pelos bebês. Veio um após o outro.
Depois dos filhos
engordei, meu corpo mudou e ele não mais me tocava, dizia que eu estava gorda,
feia, que não sentia atração por mim. De certa forma era um alívio, ao mesmo
tempo, ele justificava seu desinteresse me culpando por isso: “A verdade, Valentina, é que você não levanta
nem pau de presidiário”. “Nenhum homem vai te querer”. E o pior é que ouvi isso
tantas vezes que passei a acreditar. Comecei a evitar o espelho. Briguei
comigo. Até que ponto eu deixaria aquilo chegar?
Eu que sempre fui
mimada pelos meus pais, querida pelos amigos, que tive uma infância e uma
adolescência feliz, como encontrar coragem para revelar que meu casamento era
uma fraude? Que eu era uma mulher estudada, culta, e ainda sim vítima de um
relacionamento abusivo?
Não havia amor, nem
respeito, nem carinho, nem sexo. Cada dia que eu me olhava no espelho a
autoestima diminuía. Cada vez que ele me humilhava e eu não o deixava, ele se
sentia mais seguro de minha inércia.
Fui expulsa do seu
carro em locais ermos por pedir que ele diminuísse a velocidade. Fui agredida
por ter opinião, “você é mulher, cale a boca”. Fui maltratada durante minhas
duas gestações. Fui maltratada na maternidade. Fui humilhada a cada
oportunidade. Covivi com machismo, egocentrismo e violência moral.
Até que um dia
enxerguei além do espelho, da minha imagem desbotada e percebi que estava me envenenando
aos poucos. Eu me acomodei àquela vida sem cor, espinhenta, vazia de amor e de
sentimentos. Eu aceitei que ele me diminuísse.
E mesmo completamente
atordoada eu sabia que nada justificaria meu suicídio. Nada. Nem a imagem que eu queria passar para os
outros, nem o comodismo financeiro ou a falta de amor próprio.
Eu tinha uma forte
razão para ter tolerado aquela situação: proteger meus filhos de conviverem sozinhos
com aquele monstro. Não podia nem pensar numa guarda compartilhada ou visita
sem a minha proteção, mas estava me matando lentamente no processo de
protegê-los e de me resguardar do caos financeiro que a separação poderia nos
trazer. E finalmente reagi.
Foi difícil e
exaustivo.
Mais ofensas. Ameaças.
Após meses de luta,
incertezas e medos saiu o meu divórcio. Alforria.
Mudei minha vida
definitivamente.
Deixei aquela casca
vazia e seca para trás.
Muitos dos amigos que eu
pensava ter se afastaram de mim em meio à turbulência, não queriam ouvir minha história ou correr o
risco de me ver pedir alguma coisa, mas, felizmente, pessoas novas surgiram em minha
vida e me apoiaram.
Agora eu quero ir com
calma. Ainda estou me reconstruindo, mas até uma simples caminhada me parece
libertadora.
A mulher passa por
várias fases. Primeiro você é a boneca, a criança delicada. Depois a jovem
linda e cobiçada. Então, a gestação chega e muda seu corpo. Não é uma mudança
sutil. É drástica. De repente somos mãe. Não temos manual, mas temos a
responsabilidade sobre a vida de outro ser humano. O ciclo continua. Depois dos
40 um banho de realidade. Ganhamos a alcunha de dona, tia, como se fôssemos uma
mercadoria de segunda.
Somos admiradas e desejadas
até os 30, num dia qualquer acordamos e pronto, saímos da vitrine, o encanto
acabou. Vem a luta contra a balança, os procedimentos estéticos, tudo para
disfarçar os sinais do tempo. A verdade é que a sociedade é cruel com a mulher
e muitas vezes essa crueldade é banalizada.
Mas aos 40, mesmo na
montanha russa dos hormônios, nos altos e baixos dessa linha que chamamos de
tempo, eu posso afirmar que ainda há muito para viver. Eu me machuquei, mas
mesmo assim eu me permito acreditar no amor. O que eu não quero nem posso mais
é me submeter a uma relação abusiva, dolorosa, mas quero sim namorar,
aconchegar e experimentar o que me foi tolhido tão precocemente. Não aceito
mais que me deem um ponto final imposto.
Mulheres de 40 também
sonham e têm muito a sorrir, a descobrir, a contar e, sobretudo, a viver.
O que aprendi é que não
devemos permitir que agressores psicológicos saiam impunes de seus atos.
Palavras cruéis marcam, machucam e podem, em longo prazo, ter um efeito mais
danoso que a violência física. Não se deixem silenciar. Não permitam que alguém
silencie a beleza do seu mundo. O amor nasce primeiro em – e por – nós e só
então ele estará apto a se expandir.
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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