Cine Virtual: O Dorminhoco e o Estado Ausente - WebTV - Compartilhar leitura está em nosso DNA

O que Procura?

HOT 3!

Cine Virtual: O Dorminhoco e o Estado Ausente

Conto de Luciano Araujo
Compartilhe:








Sinopse: Um pedinte chamado Dorminhoco muda de vida ao conhecer dona Constituição, sendo inserido no mundo da cidadania.



O Dorminhoco e o Estado Ausente
de Luciano Araujo


Caracterização 

Era um dia nublado, com ventania intensa, típico de uma tarde de segunda feira, por volta das 16h30. Um homem de meia idade estava deitado na calçada, tendo uma quantidade de água escorrendo para o meio fio, lhe servindo de companhia. Este homem se debruçava ao pé de uma lixeira e usava um saco de lixo como travesseiro. Vamos batizar nosso protagonista de Dorminhoco, um homem, cujo rosto  estava envolto pela posição em que dormia, sendo este um anônimo, dentre vários indivíduos em situação de rua, existentes em várias cidades brasileiras, usando a via pública como cama e o céu aberto como teto. Trata-se de uma realidade tão corriqueira que os pedestres transitam, sem sequer olhar para o semelhante, que está no chão, conforme está ilustrado em nossa imagem de referência.

Outro personagem presente neste texto e que será o antagonista desta história é o Estado Ausente, caracterizado pelo patrimonialismo (apropriação de bens públicos para fins privados), clientelismo (realização de um ato em troca de favores) e por permitir a grande desigualdade social existente no Brasil. Enquanto o Dorminhoco está presente em várias ruas, a ponto de sua presença ser até banalizada em nosso cotidiano, o Estado Ausente intensifica suas práticas de exclusão de uma coletividade, pela ausência de políticas públicas de inclusão social, que forneçam moradia, saúde, segurança, emprego e educação de qualidade. Ao invés da prestação de serviços de utilidade pública, tendo em vista a melhoria das condições de vida de uma coletividade, há a precarização no modo de vida de muitos brasileiros, obrigados a arcar com o aumento abusivo de impostos, que onera, de forma expressiva, as camadas populares.

Assim como o rosto do Dorminhoco é desconhecido, não sabemos neste primeiro momento o seu nome, se é Pedro, João ou Mateus. Se ele foi casado, se teve filhos ou onde residiu. Já o Estado Ausente é composto por diversos burocratas, que fazem mais do mesmo, ou seja, enriquecem com a desgraça dos excluídos socialmente. Característica exclusiva do Estado Ausente, que pode assumir a forma de uma Monarquia ou de uma República, ou seja, o entrave maior não é o sistema político, mais sim, nossos representantes legais. 

Corre - corre 

Eis que nosso personagem Dorminhoco acorda, com a trovoada estridente ressoando no céu, de forma tão abrupta que ele se levanta em meio ao grande susto. Ao acordar, se lembrou de que não havia comido nada no decorrer do dia, seu estômago doía e roncava como se estivesse vivo. Logo, veio à mente fazer o que sempre fez para sobreviver, pedir uma esmola para qualquer um que estivesse em sua vista, mas a sorte não lhe sorria, era ignorado pelo corre-corre dos transeuntes, e em troca de dinheiro ouvia frases depreciativas: 

- Vai trabalhar vagabundo!

- Não tenho tempo a perder com você! 

A sorte não sorria para o pobre Dorminhoco. Em meio à grande fome, fixou seu olhar no forno de uma padaria. Tratava-se de um forno simples, no qual são colocados frangos para assar e, em meio ao giro do espeto, o cheiro suculento daquele frango dourado inebriava seu olfato e suas papilas gustativas reagiam, provocando um desejo tão intenso em nosso Dorminhoco, que ele podia sentir sua salivação aumentar. Seu apetite atingia o êxtase e nosso Dorminhoco nem se dava conta do barulho das buzinas irritantes dos automoveis e das freadas bruscas realizadas pelos motoristas da cidade, até o momento em que sua concentração foi interrompida por um grito:

- Sai daqui vagabundo! Está afastando a freguesia!

Era o padeiro, que se incomodou com o pobre Dorminhoco e tentou afastá-lo do forno. Porém, seus gritos não surtiam efeito, pois aquele forno provocava uma atração tão grande no Dorminhoco que mais parecia uma força magnética atraindo os opostos de dois imãs. Eis que aparecem dois Policiais Militares (PMs) que, em sua ronda vespertina, são abordados pelo padeiro em cólera, exigindo destes que afastassem o pobre Dorminhoco. Estes PMs, de forma imediata, atendem ao pedido do padeiro, afastando o Dorminhoco aos gritos e cacetadas, usando seus cassetetes  emborrachados  e duros. Indefeso, em meio as cacetadas desferidas pelos PMs, Dorminhoco pergunta:

- Por que me batem?

Os policiais respondem:

- Porque somos a lei.

Na verdade, eles não são a lei, mais sim, os representantes do Estado Ausente, que agem com truculência, a fim de oprimir aqueles que não sabem como se defender (voltarei mais a diante nesta questão). Antes de sair correndo, nosso Dorminhoco observa os nomes que aparecem na identificação dos dois policiais. Num deles aparecia o nome: “Abuso de” e no outro “De autoridade”. Após isso, Dorminhoco só pensou: “tenho que sair daqui”. Enquanto os PMs falavam:

- Corre-corre!

Realmente, aquele foi o momento em que o Dorminhoco sentiu na pele o braço forte dos representantes do Estado Ausente, mais precisamente, às 16h40 daquela segunda feira. Após fugir dos agentes do Estado Ausente, ele se sentou na sarjeta de uma rua, que, ironicamente tinha sido batizada de Boa Esperança. Ao se sentar na sarjeta, aos prantos, criticou a vida e tudo ao seu redor, chegando a amaldiçoar o nome da rua em que estava. E, quanto mais seus olhos enchiam de lágrimas, mais começava a trovejar. Já não eram mais trovoadas isoladas, eram trovoadas cadenciadas, que mais se assemelhavam a uma sinfonia, que serviam para completar o choro do pobre Dorminhoco.

Finalmente, começa a chover torrencialmente e a água que cai das nuvens começa a correr e correr, terminando sua trajetória bem na boca de lobo. Enquanto se molhava em via pública, o pobre Dorminhoco se dava conta de sua solidão e se sentiu incapaz perante a vida quando, de repente, ele olhou para um relógio público, o marcador indicava 16h50. Momento em que passa uma limusine preta, conduzida por um motorista bigodudo, aparentando ter em torno de cinquenta anos, de cabelos grisalhos e usando um quepe de cor preta. No banco traseiro se encontrava uma figura de terno cinza, gravata azul e colarinho branco (era um deputado estadual) quem deu a ordem para seu motorista acelerar a velocidade do veículo, a fim de que a poça de água atingisse, em cheio, o Dorminhoco que se queixava da vida. Era um desses típicos parlamentares que não possuíam o menor comprometimento com as causas de interesse público e, nas raras vezes em que atuava na Assembleia Legislativa, era para propor projetos de lei para nomear espaços públicos, como praças ou ruas. Enquanto via o Dorminhoco todo encharcado, soltou uma enorme gargalhada e, antes que o veiculo que conduzia o deputado desaparecesse na próxima esquina, ainda gritou:

- Eu odeio pobre! Desapareça!

Após isso, a tristeza do Dorminhoco se equiparava ao tamanho de sua fome, que era sua fiel companheira naquele momento desesperador. O relógio de rua marcava 17h00 e a chuva não cessava, mas, quando olhou para sua direita, percebeu que um vira-lata de médio porte, tão encharcado quanto o nosso protagonista, o estava observando. Era um cão raquítico, cor de caramelo, parecia que não comia há dias. Este simpático cãozinho aproximou-se ainda mais do desvalido Dorminhoco e, após cheirar sua perna direita, lambeu repetidas vezes este morador em situação de rua. Foi o único momento em que Dorminhoco recebeu carinho naquele dia. Este personagem quisera lembrar-se de outros momentos em que recebeu um sorriso afetuoso ou um cumprimento, mas, não conseguia fazê-lo.

Depois disso, a chuva torrencial começou a parar aos poucos (por volta das 17h30). As nuvens se abriram e, embora o sol não estivesse aparecendo, surgiu no horizonte, um belo arco-íris riscando o céu azul. Ao perceber a beleza do arco-íris, Dorminhoco se atentou de forma mais apurada ao que estava ao seu redor e, finalmente, se deu conta de que estava atrás de um colégio estadual, chamado Progresso. Dorminhoco se surpreendeu, pois nunca havia percebido aquele edifício imponente, de fachada amarelada e janelas cor de vinho. Realmente, era o único colégio que havia na região e estava com as portas abertas.

Momento de mudança

Tomado por uma curiosidade súbita, Dorminhoco, seguido pelo cachorro, entraram pela porta da frente daquela escola. Logo, se depararam com uma senhora de cabelos brancos, magra, de face corada, de vestido longo e azul, com estrelas brancas, usando sandálias esverdeadas. Esta senhora, que aparenta ter entre 50 e 60 anos é conhecida como dona Constituição ou Constituição para os íntimos. Esta simpática senhora foi e é diretora do colégio Progresso, desde sua fundação, em meados da década de 1980. Ao ver Dorminhoco e o cão perto da recepção, logo inquiriu:

- O que procura?

Dorminhoco, tomado pela surpresa, respondeu:

- Eu não sei o que procuro. Só quero comer algo.

Ao ouvir a resposta, dona Constituição fez uma pergunta retórica:

- Você deve estar com muita fome, não é?

Dorminhoco apenas assentiu com a cabeça, num leve movimento.

Depois disso, um pequeno silêncio pairou no ar, até que, dona Constituição abriu um sorriso luminoso e disse:

- Pois bem. Não é o horário da merenda, embora esteja próximo do início das aulas dos alunos do horário noturno, mas, podemos servir a você e ao seu amiguinho um pouco de sopa de legumes. Vocês aceitam?

Logo, Dorminhoco aceitou o convite e o cãozinho que o acompanhava abanou a calda, como se estivesse entendendo o diálogo e aprovando a oferta de alimento. Ao entrarem no refeitório, dona Constituição serviu os dois visitantes e, intrigada com a aparição deles, perguntou:

- Quais os seus nomes?

Dorminhoco revelou que não havia recebido um nome, em toda a sua existência, que não conheceu seus pais e que, viveu os primeiros anos de sua vida num abrigo público para crianças, porém, em decorrência de sucessivos maus tratos que ele sofria, preferiu ir para a rua e lá continuava até aquele momento. Dorminhoco também mencionou que só conheceu aquele cão naquele dia, contudo, foi o único amigo que ele encontrou em toda a vida, pois este animal só queria estar próximo e não pedia nada em troca do carinho doado.

Sensibilizada com a breve história de vida de Dorminhoco, dona Constituição pensou consigo mesma:

- Embora no Brasil existam, por força de lei, diretrizes que determinam que todas as pessoas sejam iguais e recebam o mesmo tratamento, podemos constatar que, a realidade é bem cruel e violenta.

Após este breve momento de reflexão, dona Constituição perguntou:

- Você gostaria de estudar nesta escola?

Dorminhoco assentiu, respondendo:

- Gostaria, mas não sei se consigo. Não tenho sequer um nome pra escrever no papel.

Ainda mais comovida com a situação daquele desconhecido, dona Constituição respondeu:

- Bem, para que você possa se matricular em nossa escola, realmente, é preciso que você tenha um nome de batismo. O que você acha de ser chamado de Brasílio?

- Braslílio? Gostei do nome. Aliás, meu companheiro também não tem nome. Seria muito feio chamá-lo de Duque?

Dona Constituição concordou, respondendo:

- É um belo nome! Lembra um pouco a palavra educação!

Dorminhoco perguntou:

- Para estudar numa escola, não precisa ter endereço fixo?

Dona Constituição respondeu:

- Você tem razão.

- Hum...Tenho uma solução. O seu José da Silva, antigo funcionário se aposentou. Ele trabalhava na limpeza deste colégio. Já que o quarto onde ele dormia está livre, por que você não trabalha aqui de manhã? Durante a noite você pode estudar junto com os demais alunos e receberá um salário.

- E o Duque? – Perguntou o Dorminhoco.

O cachorrinho pode viver junto com você, entretanto, será sua responsabilidade cuidar bem dele e o Duque pode interagir com os alunos do período da manhã, que são mais jovens. Se você quiser?

Dorminhoco ficou todo risonho, aceitando a ideia de dona Constituição.

Pelo tempo marcado no relógio do refeitório, já eram 19h. Dona Constituição pediu aos dois visitantes para que a seguissem. Foram até o quarto do antigo faxineiro e dentro deste cômodo, ela pegou uma caixa com roupas novas. Eram roupas do único filho de dona Constituição, que estavam naquele quarto para serem doadas para uma igreja próxima. Ao presentear o Dorminhoco com elas, a diretora disse:

- Essas roupas são para você. Pertenciam a alguém muito querido para mim. Infelizmente, ele não viveu para usá-las, pois foi alvo de uma bala perdida, em meio ao tiroteio entre policiais e assaltantes. Nesta caixa também há uma toalha. No banheiro dos funcionários tem um chuveiro, se quiser, sinta-se a vontade para usá-lo.

Ao ir para o banheiro, Dorminhoco encontrou um sabonete, com cheiro de jasmim e ao sentir a água quente do chuveiro escorrendo pelo seu corpo, teve a certeza de que foi o primeiro banho decente que ele tomou durante toda a sua vida. Ao sair do banheiro, encontrou dona Constituição esperando-o na porta junto com o Duque. Ao vê-lo, falou:

- Agora é hora de você ir dormir. Amanhã cedo eu te levarei ao cartório, a fim de que receba seu nome de batismo.

Reparação por danos morais

Na manhã seguinte, por volta das 9h, dona Constituição levou o Dorminhoco ao cartório local. Como era órfão de pai e mãe e não conhecia nenhum parente, o funcionário do cartório sugeriu que ele se chamasse Brasílio do Progresso (fazendo referencia ao local de trabalho, estudo e de moradia deste personagem). A partir daquele momento, não havia mais um pobre Dorminhoco, mais sim, um cidadão, tendo sua existência reconhecida por meio da certidão de nascimento.

Depois de saírem do cartório (por volta das 10h), Brasílio e dona Constituição passaram a andar paralelamente, quando, de repente, apareceram em sua frente dois policiais. Os mesmos policiais que agiram com estrema truculência contra o antigo Dorminhoco. Ao reconhecerem o antigo morador de rua, começaram a tripudiar:

- De quem é essa roupa que você roubou? – Disse um deles.

- Quer apanhar mais? – Provocou o outro.

Os dois policiais não se deram conta de que dona Constituição estava acompanhando o cidadão Brasílio. Após ver tamanha demonstração de abuso de poder, a idosa partiu em defesa do jovem, perguntando:

- Em qual Departamento de Polícia vocês atuam?

- Primeiro DP, por quê? Você sabe com quem está falando? – Respondeu um deles.

Dona Constituição respondeu:

- Sim. Estou falando com representantes de um Estado Ausente, que não se preocupa com as demandas sociais e que se vale da violência para oprimir membros da sociedade brasileira que ele devia proteger.

Dona Constituição também afirmou que ia denunciá-los por abuso de autoridade, com relação ao funcionário do colégio em que ela é diretora e assim o fez. A princípio, Brasilio ficou com medo pela atitude dela, mas a dona Constituição foi bem enfática dizendo:

- Se as pessoas boas se omitem, as más pessoas agem como querem.

Após dizer estas palavras, ambos foram ao departamento policial e registraram uma denúncia contra os dois representantes do Estado Ausente, por abuso de autoridade. Além disso, dona Constituição contratou um advogado, com a finalidade de processar o Estado Ausente, requerendo uma indenização por danos morais, em benefício de Brasilio.

Depois deste ocorrido, se passaram dezesseis anos. Dona Constituição já não é mais diretora do colégio Progresso, pois já havia se aposentado. Ao visualizar o interior daquela escola, é possível olhar as marcas do tempo, expressas nas paredes com rachaduras, carteiras deterioradas, portas de acesso às salas de aula sem maçanetas/fechaduras, janelas quebradas e pó de giz fixado no chão, marcas de um Estado Ausente, despreocupado com políticas voltadas para a educação. Todavia, podemos notar um aspecto positivo, pois aquela mesma escola havia ganhado um novo professor de História, chamado Brasilio, que não morava mais naquela instituição de ensino, pois com o dinheiro obtido por intermédio do processo judicial, iniciado por dona Constituição, Brasilio pode dar entrada na aquisição de uma casa própria. Brasilio resolveu se especializar na área de educação, por acreditar na força dela como mecanismo de transformação social. Este professor passou a utilizar a sala de aula, com o intuito de mostrar aos seus jovens alunos que todos possuem capacidade para aprender, mudar a si mesmo e o ambiente onde vive, superando os mecanismos de exclusão, impostos pelo Estado Ausente, usando como exemplo, o abuso de autoridade exercido pelos policiais militares, que resultou na abertura de um processo administrativo e na expulsão destes da corporação. Além disso, Brasilio costuma passar, ao menos uma vez por semana, no espaço onde foi retratado enquanto dormia, não só para não se esquecer da pessoa que foi um dia, mas também, para se lembrar de que, sua vida melhorou ao receber a sincera ajuda de dona Constituição. Por isso, mesmo com todos os problemas estruturais encontrados no colégio Progresso, nosso protagonista continua firme nas atividades de ensino.

Ademais, Brasilio tem se destacado como um líder comunitário (Duque, agora mais robusto e com fios brancos em seu focinho o acompanha em todas as reuniões), enfatizando junto à comunidade do bairro onde habita, sobre a importância da união coletiva, com o objetivo de requerer do Poder Público, melhorias para a coletividade nos âmbitos da saúde, segurança, cultura e educação, pois a união faz a força, como diz o ditado popular. 

 

Conto escrito por
Luciano Araujo

Produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


REALIZAÇÃO



Copyright 
© 2021 - WebTV
www.redewtv.com
Todos os direitos reservados
Proibida a cópia ou a reprodução





Compartilhe:

Cine Virtual

Contos Literários

Episódios do Cine Virtual

Livre

Comentários:

0 comentários: