Cine Virtual: O Presente pela Metade - WebTV - Compartilhar leitura está em nosso DNA

O que Procura?

HOT 3!

Cine Virtual: O Presente pela Metade

Conto de Ney Doyle
Compartilhe:








Sinopse: Miguel ficou órfão cedo. Já tinha idade para o trabalho. Foi o que o salvou da solidão de perder os pais, sem ao menos achar os corpos. A partir do sumiço, uma série de coincidências foi levando Miguel para uma vida estável, embora solitária. Até chegar o Natal, quando já tinha mais de 18 anos. Recebeu a metade do presente.



O Presente pela Metade
de Ney Doyle

De repente, um grito abafado de socorro. A voz vinha de longe, mas era perfeitamente audível, a três quarteirões dali, quando Miguel estacou. SO-COR-RO.  Deixou sua pasta cair ao chão. Era tarde da noite. Tinha um projeto de trabalho em mente. Não era hora de salvar ninguém, muito menos de arriscar sua vida tentando ser um herói.

Miguel nasceu de família pobre. Seu pai não conseguia trabalho por causa da bebedeira constante. Sua mãe era a provedora da casa. Trabalhava lavando e passando roupas de vizinhos. Saia às sete da manhã, deixando o café da manhã e o almoço prontos.

O pai não dava bom dia quando acordava, nem olhava para o filho. Lavava o rosto de forma barulhenta, usava a latrina de portas abertas, como se não houvesse mais ninguém naquela casa de quarto e sala. Pegava uns trocados que a esposa deixava para emergências e ia direto para o bar do Argemiro. Ali passava o dia.

Miguel queria fugir de casa tão logo sua mãe saísse para o trabalho. Não aguentava ver os tropeços e xingamentos do pai, a bagunça que ele fazia na cozinha. Seguia para a escola pública o mais rápido possível, furtivamente, para não ser notado pelo pai. Como se o pai, naquela ressaca toda, pudesse notar alguém ao seu lado.

Conseguiu concluir as primeiras séries, aprendeu a ler e a escrever com louvor. Aproveitava a merenda oferecida pela escola e ficava ali, no meio do pátio, estudando as lições para o dia seguinte. Na verdade, Miguel adiava seu retorno para a casa. Na maioria das vezes, encontrava a mãe chorando, com alguns machucados roxos no rosto. O pai dormia, roncava estrondosamente. Às vezes nem tirava o sapato para deitar-se. Miguel ia para o sofá esperar sua sopa rala bem quente. E sorrir para a mãe. Contava histórias do colégio, inventava amigos novos, ricos e poderosos, que iriam ajudá-los a sair dessa vida.

 A dedicação aos estudos, porém, teve que dar lugar ao trabalho. Aos 14 anos já era entregador de sanduíches do melhor restaurante da praça, Restaurante do Argemiro. Tinha uma bicicleta, oferecida pelo dono do estabelecimento, como forma de agilizar suas entregas. Começava às 3 da tarde. Terminava por volta de duas da manhã, sempre trazendo uns trocados para a mãe, que por sua vez o repassava ao pai.

Um dia, depois do trabalho, voltou para a casa com um sentimento estranho. Não havia nenhuma luz acesa no corredor, ato que a mãe praticava todos os dias para que Miguel entrasse e guardasse sua bicicleta emprestada. O silêncio reinava na casa e em todo o quarteirão.

Miguel entrou, acendeu a luz da sala, foi até o quarto e não viu ninguém. Procurou algum bilhete, e nada. A cozinha estava do jeito que ele deixara quando saíra para o trabalho. Nada fora do lugar, nada faltando. Já eram quase três da manhã e não sabia o que tinha acontecido. Voltou para fora, procurou alguém que lhe desse alguma explicação. Nada. Sentou-se ao meio-fio esperando clarear e que algum vizinho acordasse. Não dormiu aquela noite.

Aos poucos, com os vizinhos acordando, perguntava sobre a noite anterior, sobre sua mãe Dona Eulásia, e sobre o pai Rodrigo. Ninguém sabia de nada, ninguém escutara um barulho sequer, a não ser o da bicicleta de Miguel quando chegou.

O sol esquentou e as primeiras notícias não foram animadoras. Foi até o bar do Argemiro. Com certeza ele sabia de alguma coisa e não lhe contara na véspera. Frustrante.

Seu Argemiro mesmo chamou a polícia, foram todos à casa de Miguel, vasculharam tudo. As roupas estavam ali, ou amassadas ou jogadas num canto para serem lavadas. A pia entulhada de pratos e panelas sujas.

Sem explicações plausíveis, Argemiro combinou com os policiais que tomaria conta da criança até que os pais reaparecessem. Era o que ele podia fazer para não levarem Miguel para um abrigo de crianças abandonadas.

Juntos, arrumaram a cozinha, a sala, estenderam a roupa de cama e colocaram as roupas sujas num balde. O sentimento de Miguel era de abandono, mas Argemiro insistiu na continuidade do trabalho.

- Seus pais devem ter saído às pressas para um trabalho urgente. Breve voltarão, animava Argemiro. – Vamos ao trabalho!

No primeiro dia, a angústia tomou conta de Miguel. Nada de notícias. No segundo dia, a mesma coisa. Ao final da semana, se propôs a trabalhar dobrado. Não queria ficar só em casa, sem a sopa da mãe.

Aos poucos, os estudos foram deixados de lado. O importante era o dinheiro no final do mês. Era com ele que comprava suas roupas básicas e pagava as poucas contas: água, luz. A casa era herança da mãe.

O tempo foi passando, e o alarme da polícia não surtiu nenhum efeito. Dois meses, três, um ano, dois anos...até Miguel completar seus 18 anos e ir para o Exército. A mudança para a caserna foi um alívio. Dedicava-se ao extremo nos exercícios e nos trabalhos designados para o soldado. Em pouco tempo, conquistou a simpatia dos chefes imediatos.  Tornou-se o motorista dos oficiais, o homem de confiança. Até festas familiares ele passou a ser convidado, não apenas como amigo, mas também como segurança das crianças.

Como já havia trabalhado em restaurante, fora transferido, nos últimos meses, para a cozinha dos oficiais. Tinha autonomia total para preparar a comida. E um carro à sua disposição, que ele mesmo dirigia, para as compras emergenciais. O abandono dos pais fora substituído pelo excesso de trabalho. Não deixava de pedir a Deus, todas as noites, que olhasse por Dona Eulásia e por Rodrigo. Quando ia chegando o Natal, Miguel pedia de presente para Deus o retorno dos dois. Chorava na beira de sua beliche. Chorava em silêncio para não acordar os outros. Era o que podia fazer.

Faltando uma semana para ser dispensado, Miguel passou de carro pela pra principal do seu bairro. Viu Seu Argemiro sair do bar estouvado, mandando que parasse o veículo. Ofegante, a conversa se deu no meio da rua. Os carros atrás que esperassem. Afinal de contas, quem mandava no país eram as forças armadas.

- Preciso de sua ajuda para tocar meus negócios – disse, ofegante. - Os filhos não querem nada com a dureza e tenho investimentos altos a fazer no restaurante, para acompanhar o desenvolvimento da cidade. 

- Mas eu estou trabalhando no Exército – balbuciou Miguel, mostrando ao empresário a falta de compatibilidade de horários para exercer as duas funções.

- Você não vai precisar mais do Exército, meu filho, estou te oferecendo a sociedade nos negócios, argumentou. – Há muito venho pensando em um nome competente para me ajudar e me substituir; e o primeiro nome que me veio a cabeça foi o seu, explicou.

- Tenho mais uma semana ainda pra cumprir, respondeu. Depois, estou livre para os negócios. Preciso mesmo trabalhar. Já estou ajeitando a casinha da minha mãe para poder dormir confortavelmente. Acho que vou me mudar para o quarto dos meus pais, deixar a sala só pra almoços e televisão, completou

- Não faça isto. O quarto ainda pode lhe ser útil. Arrume a casa e , quando for dispensado do Exército, passe aqui imediatamente. Temos que assinar os papéis da sociedade.

Miguel ficou eufórico com a notícia do novo trabalho. Não iria mais entregar lanches. Iria ser o dono, o proprietário, iria mandar em todos os empregados, iria fazer o negócio prosperar. Passou numa papelaria, comprou uma pasta e um caderno de espiral, assim como lápis e caneta coloridas. Estava feliz, cansado. Queria chamar atenção e aproveitar a época de Natal. Foi caminhando até o quartel, tirara o dia de folga para dar uma arrumadela na casa dos pais. No meio do caminho ouviu o grito: So-Cor-Ro!!!

Correu o máximo que pode. A voz era de uma criança. Em questão de segundo alcançou a cena do crime: um velho tentava enforcar uma criança, segurando-a por trás. Um soco saiu de chofre bem no meio do nariz do velhote. Caíram a criança e o bandido. Miguel ainda deu mais dois socos no meliante. Só aí lembrou da garota. Correu até ela. Pressionou seu rosto. Estava roxo.  Fez massagens nos pulmões. Gritou por ajuda. Tentou respiração boca-a-boca. Nada.

Alguns vizinhos apareceram nas janelas dos prédios. Com certeza a polícia havia sido chamada. Miguel gritou alto:

- Chamem uma ambulância, a menina está desacordada.

No dia seguinte, o sargento chamou-o ao gabinete. Era sobre a menina. Ela havia morrido. Seu nome era Eulásia, e estudava ali próximo.

A coincidência do nome mexeu no coração de Miguel. Eulásia não era um nome comum. Meio zonzo, pediu dispensa da tropa e foi trocar de roupa. Era véspera de Natal. Caminhou até o restaurante do Argemiro. Suas ideias confusas. Eulásia morta. Não era de acreditar em coincidências. Parou na porta do estabelecimento, subiu as escadas e foi direto ao escritório. O restaurante estava cheio. Confraternização, com certeza.

Bateu na porta e ouviu um “entre”. A cadeira giratória estava voltada para a janela, de costas para Miguel.

- Seu Argemiro, aconteceu uma tragédia ontem à noite. Uma menina de nome Eulásia, o mesmo de minha mãe, foi morta por um assaltante e estuprador. A polícia o prendeu, mas a criança não resistiu.

- Eu sei da história toda, disse uma voz trêmula, que não parecia ser de Argemiro.

A cadeira foi girando vagarosamente e Miguel pode ver um homem de barba longa, toda branca, cabelos brancos e longos. Reconheceu logo. Era o pai, sumido há vários anos. Os dois se olharam. Miguel não entendia.

- Fugi com sua mãe para a Bahia. Ela estava doente e precisava ser operada. Passamos por Valença, onde nos recolhemos a um abrigo de moradores de rua. Uma semana depois, esperando ser operada em Salvador, ela não resistiu e morreu. Não queríamos que você soubesse da gravidade da doença de Eulásia.

Já em pé, começaram os dois a chorarem. Um abraçando o outro. O pai continuou:

- Vaguei anos nas ruas da Bahia, bebendo e pedindo comida. Tinha medo de voltar e contar a verdade. Mas a família de sua mãe me encontrou em Salvador. Trabalhei para eles por um bom tempo. Parei com a bebida, criei coragem, comprei o bar do Argemiro e voltei. Este é seu presente de Natal. Veio pela metade, eu sei. Quem sabe ano que vem?


Conto escrito por
Ney Doyle

Produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


REALIZAÇÃO



Copyright 
© 2021 - WebTV
www.redewtv.com
Todos os direitos reservados
Proibida a cópia ou a reprodução





Compartilhe:

Cine Virtual

Contos Literários

Episódios do Cine Virtual

Livre

Comentários:

0 comentários: