Operação Dom Quixote
de Celso Lopes
“Há o amor, é claro. Mas há a vida, sua
inimiga.”
Jean Anovith (dramaturgo e cineasta
francês).
A armadilha do
Miranda já estava preparada. Fora somente o tempo de rodopiar a chave no
cadeado da porta de enrolar que, com a
devida precaução não deveria ser tão pesada para se levantar quanto se
mostrava, embora tal sintoma justificasse a qualidade do material, o que
evitava perfurações ou eventuais arrombamentos. Pois pareceu tudo com essa
exatidão, quando os policiais à paisana surgiram fechando o cerco. Enquanto
os agentes o algemavam em alvoroço festivo de comemoração, Miranda, num
silêncio constrangedor, mantinha-se acocorado no estreito cômodo, com um olhar
cabisbaixo e desolado diante daquela vasculhação, acompanhando os chutes fortes
e certeiros que derrubavam seus cavaletes, latas de tintas, pincéis, tecidos, a
mesinha, uma banqueta e diversos outros apetrechos, além de notas e papeis do
seu local de trabalho. Aos gritos e pontapés, os agentes intimavam o pintor de
faixas:
- Vamos, seu merda,
me dá um nome!...Vamos, me dá um nome!...
Lá fora, quase uma
dezena de carros policiais, que mais pareciam infernizar o trânsito àquela hora
da manhã, com suas sirenes ligadas, aguardavam a saída do pintor, ainda bem
assustado e bem temeroso dos novos e futuros acontecimentos. Era visível que se
fosse um Dom Quixote nessa hora, Miranda, o ex-tipógrafo da Gráfica Moderna,
transformaria seus pincéis em lanças pontiagudas e espadas implacáveis; dos
seus lápis inocentes, que antes se acomodavam no porta-trecos sobre
a mesinha, Miranda faria as zarabatanas com setas envenenadas pelo curare,
ou transformava-as em atiradeiras de miras precisas... Quem sabe ainda, dali,
do seu ‘ateliê de pintura’, um cubículo com paredes descascadas, e com a
estreiteza de dois metros por quatro e pouco, onde mal cabiam as suas faixas
estendidas, quem sabe dali, do seu minúsculo cômodo sublocado nas imediações do
centro da cidade, Miranda, com seus pincéis ágeis, criaria os vestígios de um
campo de relvas, feito uma clareira aberta em meio à floresta, para que
pudesse, como o Cavaleiro Andante, combater o bom combate e escorraçar de vez e
para sempre os seus carrancudos opressores; então, enfrentaria os agentes, seus
algozes, em campo aberto, mas antes, claro, anunciaria a façanha ao som de
trombetas e clarins, como uma aventura necessária à sua vida tão carente de
novas dimensões até aquele maldito dia... Miranda, por certo, usaria para si,
da mesma descrição que o “Manco de Lepanto” dirigira a si mesmo: “este
que aqui vês, de rosto pontiagudo, de cabelo castanho, testa lisa e
desembaraçada, de olhos alegres e nariz curvo (...) os bigodes grandes, a boca
pequena, os dentes nem miúdos nem grandes, porque não tem senão seis, e estes
mal acondicionados e pior postos, porque não têm correspondência uns com os
outros...”
Aprisionado entre as
paredes daquele estreito corredor, em meio a seus objetos de trabalho, a essa
hora, jogados e espalhados pelo chão, Miranda, depois de atirado ao solo várias
vezes pelos Agentes, e já cansado da pancadaria vinda das mãos fortes daquele
grupo de afronta, agora, prestava-se a ouvir os apelos insistentes para que
ele, Miranda, abrisse o bico, para que ele, Miranda, desovasse tudo; Os Agentes
insistiam para que ele, Miranda, desse com a língua nos dentes; para que ele,
Miranda, entregasse a eles, os Agentes, alguém de cima: o seu Chefe, o seu
Líder, o Mandante, o Mandão, o Déspota!... Os Agentes pressionavam para que
ele, Miranda, caguetasse um nome; se preciso, agisse sem pena, sem piedade e
sem dó nenhum... Ali, como um bicho enjaulado, Miranda, quase em transe, quase
em comoção, completaria para si mesmo de uma maneira ‘nada exemplar’: “ Este
que aqui está, digo, este que aqui vês, trôpego, arruinado, exposto hoje ao
vexame público, desenganado, um miserável traste em mãos alheias, um cachorro
morto que continua a ser chutado, sem que qualquer culpa tenha nesta vida...
este, este sou eu, Miranda Martins, cujo primeiro emprego foi o de ‘Estafeta’
na Gráfica Moderna de São Paulo. E depois quase uma vida como impressor
gráfico, como tipógrafo. Eu, o Miranda, a quem sempre, todos diziam: Anda,
Miranda, anda!...”
Miranda lembrou-se,
ainda, que ao compor os seus textos na bancada da Gráfica Moderna, na maioria
das vezes sozinho, sentia um medo danado da morte, pois temia que um dia
morresse ali, solitário e esquecido, sob o som alto e continuado, no ato
contínua de uma impressora tipográfica Minerva trabalhando a todo vapor.
Entretanto, nada disso acontecera, mas o receio da morte rondava-o novamente,
agora, diante daqueles carrascos à sua frente. Então, como
quem quisesse ganhar tempo, sabedor que “o sapo não pula por boniteza, mas por
precisão”, Miranda, sabe-se lá como, esclarecia aos Agentes que na Moderna
aprendera, por exemplo, que Ottmar Mergenthaler, o Otto,
dizia o Miranda, fora o inventor da ‘Linotipo’, nome aportuguesado de uma
máquina de composição, que fundia em chumbo, linhas inteiras de ‘tipos’ em um
único bloco. Na verdade, sabe-se lá como, Miranda avisava que havia quem a
chamasse de “A oitava maravilha do mundo!”... Diante da insistência de
um Agente mais brando, Miranda explicou-lhe que ‘tipo’ se referia às letras do
alfabeto, aos sinais gráficos e a todos os outros caracteres usados para criar
e formar as palavras, sentenças, blocos de texto, etcetera e tal. Afirmou
também para os Agentes, que a sua função, antes da Linotipo, era organizar as
letras para o bloco de impressão nas maquinas tipográficas, por isso, fora
antes, um tipógrafo. E assim que as antigas impressoras perderam lugar para as
modernas offsets, ele, Miranda, perdera também, o emprego na
Gráfica Moderna de São Paulo... Miranda reiterava para os homens da lei, que
hoje era apenas um pintor de faixas, quer dizer, fazia também
alguns banners, algumas placas, além de cartazes e painéis... E,
ali, na frente de todos eles, sabe-se lá como, ainda jurava por Deus nosso
Senhor e pela Santíssima Nossa Senhora Aparecida que no dia de ontem fizera,
sim, fizera aquela faixa inocente a que eles se referiam. Uma faixa com uma
mensagem de amor. Miranda esclareceu que fez o serviço a pedido de um
Motoqueiro, que nem mesmo o capacete havia tirado da cabeça, por isso, ele,
Miranda, não vira sequer o rosto do homem, que nem era muito baixo nem era
muito alto. A moto, aquela sim, ficara ali parada, ali onde agora estão as
viaturas; uma moto verde oliva, ali mesmo junto ao meio-fio da rua. Mas os
Agentes, de imediato, retrucaram que tudo bem, Seo Miranda,
entretanto, a mensagem, saiba o senhor, era um “SALVE GERAL” para
uma contra-ofensiva comandada pelos presos diante da proibição de visitas
íntimas no presídio. Havia quem dissesse também, Seo Miranda, que
era uma represália à linha dura do governo e do Comando da Segurança, que
impediram a saída livre do Dia das Mães para os
detentos do semiaberto. Portanto, afirmaram os Agentes, que ele, Miranda
Martins, a pessoa jurídica, fora entregue aos policiais como o local onde se
produziu o “SALVE”, quer dizer, a faixa solicitada pelo homem da moto. Agora,
ele, “Miranda Martins, a pessoa física, dava pinta de
não querer facilitar as coisas. Na verdade, enrolava e dificultava, até.
Custasse o que custasse, mas tinha de ter um nome. Assim, disseram os Agentes,
tudo ficaria muito mais simples, não é mesmo, Seo Miranda?... Afinal, algo não
estava se encaixando bem, disseram os Agentes. Faltavam peças neste
quebra-cabeças. Faltavam letras nesse texto. A frase completa não fazia
sentido, diziam. Estava sem coerência. Toda oração merecia sujeito e predicado,
Seo Miranda de merda!... Algo está em falta nesse seu discurso, seja uma crase,
um acento grave, ou uma linha a mais que realce os contornos dessa
historiazinha mal contada, Seo Miranda imprestável!... Por isso, Mano,
abre o bico!... Caguete, alguém, vamos!... Vomite uma oração com início, meio e
fim, seu bosta!... Aponte o caminho útil dessa narrativa; Diz aí, Seo Miranda,
quem é o protagonista, o herói, o mocinho?... o Chefe do crime; onde anda o
sujeito, Seo Miranda?... Não faça nós, os Agentes, perdermos a nossa compostura
e leveza. Vamos, seu merda, sopre um nome, me dá um nome, um nome!...Anda, Seo
Miranda, anda!... O verso livre, Seo Miranda, incisivo, direto... A nota de
rodapé que tudo esclarece; o parágrafo inteiro, completo, vamos, Seo Miranda,
não temos aqui uma vida inteira ao seu dispor!... E outra coisa, Seo
Miranda – prosseguiram os Agentes - Sabemos que o senhor começou a trabalhar
como Estafeta, uma espécie de office-boy, já que Estafeta era
o nome que se dava pros meninos lá em Portugal, para aqueles que trabalhavam em
escritórios ou empresas fazendo serviços, assim, digamos, sem muito valor, de
pouca importância e complexidade... serviços sem prestígio, coisa assim como ir
a agência bancária fazer um pagamento de contas, ou quem sabe, andar para fazer
entrega de documentos, essas coisas, essas coisas burocráticas. Era uma tarefa
de jovens que ainda não tinham lá seus estudos completados e precisavam de uns
trocados, dinheiro, dinheiro, para ele mesmo ou pra ajudar a família; havia
quem passasse uma vida inteira nesses empregos... Os office-boys,
que hoje os tempos se encarregaram de modificar, são os atuais Motoqueiros e
Motoboys, que agora já não são mais garotos, mas ao contrário, são quase homens
formados ou jovens com idade mais avançada, acima dos dezoito, e às vezes
ultrapassando os vinte e tantos; nas grandes cidades, eles formam, hoje, um
exército motorizado a ziguezaguear pelas ruas ...
Enquanto ouvia,
Miranda era empurrado para dentro do camburão, sentindo-se reduzido a um
homenzinho infeliz e desastrado. Miranda contemplava pela porta
semiaberta, os sinais da destruição no seu estreito corredor de dois por quase
cinco; sentia-se triste, vendo espalhados pelo chão, atirados a esmo pelos
estabanados Agentes, o seu armário, a sua mesinha, os cavaletes, os pincéis, os
lápis, as latas de tinta e de querosene, os tecidos, a sua banquetinha quadrada,
com as laterais mais altas pra facilitar-lhe o apoio dos apetrechos... Miranda
lembrou-se de que ficara lá, também, em algum canto do chão, o peso de papel,
um pedaço de madeira com uma chapa de metal fixada, em que se via o desenho
invertido de uma Águia... Um ‘clichê’ que Miranda guardara desde os
tempos da Moderna. Bastava que algum cliente apenas olhasse pro objeto, e ele,
Miranda, discorria contente, sem titubear “Ah. isso é um clichê. Uma chapa
para impressão em relevo, usada nas antigas tipografias. Olha só, aqui a tinta
não entra. Aqui entra. Quando a chapa pressiona o papel, pronto, a Águia surge
soberana, resplandecente no claro-escuro, a cortar os céus!...
As veraneios dos
agentes, agora, já davam sinais de manobra, e Miranda revia o filme daquela
manhã terrível de setembro, quando chegara ao terminal de ônibus e ali, como
todos, dera-se conta do tamanho do estrago. A cidade ficara, inteira, de
joelhos diante do crime organizado. Ainda nem raiara o dia e o saldo já estava
contabilizado: incêndios em garagens públicas, carros metralhados,
coqueteis molotov explodindo em delegacias, bombas caseiras
estourando vidros, ataques relâmpagos nas bases móveis da polícia, carros em
chamas jogados contra agências bancárias, caixas eletrônicos carbonizados,
ônibus incendiados nos terminais; e mais: gritos, correrias, tiros e bombas na
madrugada inteira... Sob um som cortante de sirenes, indo e vindo, ambulâncias
e carros policiais cruzavam as longas avenidas ou até mesmo subindo em
canteiros e calçadas dos pedestres; ninguém poderia deixar de ver os estragos
consideráveis que exalavam da temperatura quente daquela madrugada. Diante da
paralisação geral do transporte público na região, todos seguiam andando
avenida acima em direção ao centro da cidade. Vez ou outra, nos bares e
botecos, já se ouvia os plantões de TV e rádios com os primeiros informes e
comentários: agentes policiais mortos, ônibus queimados, gente ferida e em
estado grave, prédios públicos metralhados, vidros estilhaçados pelo chão...A
ação comandada pelos internos aprisionados, fora mesmo uma represália contra o
sistema carcerário, garantiam! As escutas telefônicas, grampeadas pela polícia,
apontavam para um “SALVE GERAL”. A referência, comentada pela jornalista
da tevê, fez com que Miranda desviasse os olhos para o bar.
- Uma frase de
amor!... – insistia a repórter.
Miranda, de forma
automática, repetiu o texto completo para si mesmo. E eufórico com a notícia,
se pudesse olhar com mais atenção, teria percebido que a frase que espocara na
TV, acentuava-lhe uma fortíssima sonoridade carregada de culpa. Pelo menos era
assim que seus batimentos cardíacos se manifestaram. Os sinais de impaciência
tornavam-se, agora, bem mais visíveis. Sem conseguir explicar para si mesmo, o
como e o porquê, Miranda sentia-se cúmplice absoluto do que enxergava e ouvia.
O seu olhar, ao longo do caminho, parecia denunciá-lo às centenas de
trabalhadores que ali caminhavam juntos. Talvez por essa razão, seus passos
ganharam outro ritmo, moto-contínuo, acelerados, uma corrida contra o tempo; e
o que lhe vinha à cabeça naquele momento, era somente o texto escrito no
papel-rascunho que havia deixado sobre a sua bancada, protegido pelo peso do
clichê tipográfico... Entretanto, sem que soubesse como, os Agentes anteciparam
à sua chegada e lhe prepararam o flagrante. Fora apenas o tempo de rodopiar a
chave na porta de enrolar, e lá estavam eles; surgiram sabe-se lá de onde!...
Agora, no Camburão, moído, quebrado e alquebrado, com hematomas visíveis pelo
corpo, surrado e torturado física e psicologicamente, Miranda, longe de saber
para onde o levariam naquele passeio sem fim, viu surgir-lhe na mente as
páginas de uma antiga brochura que imprimira na gráfica Moderna: Dom Quixote!
Lembrou-se melhor: Dom Quixote de La Mancha, o romance famoso de Miguel de
Cervantes!... Miranda recordou-se de uma prova de página que
lera para revisão. Lembrava-se ainda da fonte utilizada: maiúsculas e
minúsculas em garamond, corpo 12, romano. E sem que se
desse conta saiu-lhe da boca um sussurro alto em brados: Dom
Quixote!... Voltou a repetir forte: - Dom Quixote de La
Mancha!...
Enquanto Miranda
regurgitava o nome do imortal cavaleiro da
triste figura, acompanhado do seu fiel escudeiro Sancho Pança, avançando por
montes e vales, e lutando contra moinhos de vento e cavaleiros imaginários em
nome da justiça, os Agentes policiais, atônitos e boquiabertos, em
uníssono, cumpriram ordens de se reunirem em confraria, numa espécie de AAU,
quer seja, uma Assembleia de Avaliação Urgente; algo como uma banca examinadora
que fixasse pontuação ao texto diante da adequação ao tema, coerência, coesão,
encadeamento das ideias, ortografia e dificuldades gramaticais... E assim, os
Agentes chegaram imediatamente a um veredicto: foram unânimes em afirmar que
avançaram. E como avançaram. Sim, sabiam que o caminho era esse. Miranda não
era mesmo um reles pintorzinho de faixas como antes alguns
previram; nem sequer um inocentezinho pra inglês ver...
Não!... Hoje, Miranda estava ali entregando o ouro sobre a
mais recente e perigosa facção criminosa surgida no interior do sistema prisional: Dom
Quixote! Sim, diziam os Agentes, agora estavam prontos para uma nova
investida. Agora, agora tinham um nome. Agora, agora era escancarar as portas
para a imprensa. Afinal, não basta só botar o ovo. É preciso cacarejar: Dom
Quixote! ...Operação Dom Quixote!!! – diziam sorridentes e aos
brados, sob o som das sirenes e buzinas, comemorando a descoberta da
facção que, ou já existia ou estava sendo plantada nos corredores do sistema
prisional. Sim, estava claro, o ataque fora encomendado por uma nova e recente
força: Dom Quixote!... Operação D. Quixote. Algo como uma luta
dos amotinados contra os gigantes controladores do cárcere;
Algo como uma proposta de implosão do sistema de Segurança Pública; ou ainda,
quem sabe, um combate sem tréguas para ridicularizar os promotores e os agentes
da lei. E tudo isso, regado a muita ironia e blasfêmia. Sim, concluíram os
Agentes: naquele 12 de setembro havia surgido um novo modelo
de célula, inclusive com uso de amigos, parentes, pilotos e
celulares... Operação Dom Quixote!... Operação Dom Quixote!...
Tivesse olhos pra
todas as coisas, Miranda veria que os Agentes, naquele momento, sequer lhe
davam atenção, quando, insistentemente, repetia as palavras que ouvira do
Motoqueiro: “ quero as letras bem grandes, Seo Pintor...Assinar não é
preciso, não! O Anjo me conhece, Seo Pintor. Deixo o pagamento adiantado e
retiro à tardinha... E motoboy tem folga, Seo Pintor? Folga nenhuma. O dia
inteiro no vai e vem dessa cidade. Entrega e busca. Leva e traz!...”
Desse mais atenção ao
entusiasmo que causara aos Agentes, que riam e riam em sinal do V de vitória.
sob os sons desconcertantes das sirenes, Miranda perceberia que a conversa que
ouvira do falso motoboy pouco lhes interessava naquele
momento, entretanto, Miranda continuava acentuando o que o “ avião” lhe
dissera: “Porcelana fina, Seo pintor!... Uma Diana, essa mulher!... Deusa
Grega, essa Vênus platinada... Pois quero fazer-lhe uma surpresa, Seo Pintor.
Quero ver a faixa estendida bem lá na esquina, bem ali no cruzamento da avenida
por onde ela passa todo dia”. Miranda registrara as lembranças com
nitidez e precisão. E por essa razão empolgava-se com sua memória. A ele,
Miranda, parecia-lhe que cada palavra, cada frase que dizia, transformava-se em
testemunha ocular para a sua própria liberdade. Sua memória, portanto, poderia
servir-lhe de álibi infalível pra escapar dessa bruta enrascada em que se
metera naquele dia. Grosso modo, era como se ele, Miranda, tivesse se
transformado no próprio Motoqueiro em pessoa, tal a empolgação dirigida aos
Agentes: “ Essa mulher é como uma princesa, Seo Pintor. Preciosa como
um objeto raro que se guarda na Cristaleira. Fosse de vidro, Seo Pintor, seria
um ‘Murano’, translúcido e colorido, com traços feito à mão, coisa de artesão
que se consagra soprando belezas raras com a cana de vidreiro. Fosse uma
paisagem, Seo Pintor, habitaria os campos resplandecentes de um amanhecer
esplendoroso... Cuido que nunca se quebre esse vaso Chinês, Seo Pintor.
Nunca!.. Essa mulher, eu carrego aqui no meu coração...Pois escreve aí, Seo
Pintor, escreve aí nessa faixa com as letras grandes, Seo Pintor, bem grandes,
assim ó: BIBELÔ, EU TE AMO!”.
Ainda que os Agentes
não lhe dessem a mínima, Miranda esclarecia a eles que até rira de si mesmo
diante do trabalho que fizera, e confessou a si mesmo que, “ para
um tipógrafo-minervista até que se saíra muito bem como
um pintor de faixas!”. Miranda explicou ainda, que desenhara as letras
sobre o tecido branco. A mensagem, esta destacara em vermelho-vivo, cor quente,
a cor da do amor e da paixão. As letras ganharam assim um jeitão bold,
pesadas, com um ligeiro filete em preto, que era pra saltar aos olhos da musa do
Motoqueiro. Pois não fora assim, o pedido?... Então, o Motoqueiro não lhe
implorara o máximo empenho pra lhe atender a um desejo do coração?
Alheios e indiferentes, os Agentes todos, como articulassem um pacto, um sinal de aviso, uma combinação prévia, uma estratégia armada para dar inicio à “Operação Dom Quixote”, cruzavam com seus veículos em marcha moderada, depois de muitas idas e vindas rodando com as possantes viaturas. Agora, agora chegavam a um destino em silêncio gradual e profundo. Uma a uma, simultaneamente, as portas escancaram-se para a saída dos Agentes que, calados todos, diante daquele cenário de relvas, num campo aberto tal qual uma clareira à espera de acontecimentos, a um só tempo, e juntos, pareciam remoer aquela maldita frase reiterativa: Dom Quixote!...Operação Dom Quixote!... Todos, ali, pareciam sentir na própria carne, aquele golpe fulminante que sofreram diante da frase estampada numa faixa de rua: BIBELÔ, EU TE AMO!... Por isso, o revide. Por isso, a vingança. Por isso, o troco cruel a quem ameaçara colocar a cidade em pé-de-guerra naquela fatídica manhã de 12 de setembro; dali pra frente, era, pois, o inevitável. O fato exigia dos Agentes um olhar para o avesso do avesso do avesso. Por isso, de olhos vendados pelos seus algozes, e desatento às urdiduras todas do demorado passeio daquela manhã, Miranda descera do Camburão amaldiçoando o seu dia, sentindo um suor frio percorrer-lhe algumas vértebras da espinha, ao compreender que ali, bem próximo dele, pelo som que se impunha, os grupos se dividiram: de um lado, alguns Agentes marcando um ritmo cadenciado na palma das mãos, chamando-o aos gritos, de forma alternada e incessante: anda, Miranda, anda!... anda, Miranda, anda!...e de outro... todo os demais ensaiavam uma sequência ruidosa de sons metálicos, tal qual gatilhos em preparativos, que pipocariam sobre seu corpo, martelando os seus ouvidos e ferindo seus tímpanos continuadamente...
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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