Saci: Embaixador da Mata
de Ricardo Evangelista
Uma
estória de arrepiar.
Não
é do tal Halloween,
Mas
tem mágica no fim.
Não
é de um cowboy.
É
de saci: nosso herói!
E
foi meu pai
Quem
me contou
Que
ele me disse
Que
foi meu avô
Quem
disse quando
O
saci começou.
Era uma vez um menino pretinho que morava dentro do bambuzal,
no meio da mata. Nasceu preto como a boca da noite da mata mais escura. Mais preto e bonito que a semente do mamão e a casca da
jabuticaba mais doce. Seu nome era Romão.
No começo,
ele tinha duas pernas e vivia cheio de medo observando tudo de dentro do
bambuzal. Mas não colocava os pés fora de sua casa de bambu. Era um menino
calado, tímido, olhar tristonho, brincava pouco e sozinho. Morava no meio do
bambuzal, onde ficava protegido e disfarçado. Lá era seu mocambo, como dizia
seus pais, que o colocaram naquele lugar antes de serem escravizados por um
coronel violento, caçador que os retirou da mata. Por isso, vivia com medo. Quando vinha a ventania com um
assovio arrepiante anunciando a chegada do caçador, o Romãozinho se escondia no
meio do bambuzal e encolhia as pernas.
Daí
que certo dia, daqueles que a vida apronta para gente, uma surpresa, teve o
menino amedrontado. Naquela
mata, onde morava, por vezes muitos caçadores, lenhadores e madeireiros lá
apareciam. Sempre retirando coisas, cortando a mata. Com seus machados macabros
e afiados, com suas foices que cortavam o fio do pensamento, ceifando bambu e
galho, colocando fogo na mata, retirando ervas, penas e frutos, serrando
madeira para alimentar as caldeiras e fornos da cidade. O caçador não se
importava e cortava com seu machado do início da manhã até o fim da tarde.
Foi então que aconteceu o inesperado. O menino acordou cedo de
sobressalto, com o barulho do machado fazendo poc, poc, poc, perto do bambuzal,
se aproximando. Espiou pela fresta do seu
bambuzal-casa. A manhã estava com uma neblina fria, de arrepiar a espinha das
costas, não dava para ver a distância do caçador e seu rumo. De longe ouvia o
caçador cortando como fazia todo dia. Era um caçador grandalhão, com um machado
enorme e reluzente, prateado, que quase cortava a árvore num só golpe. O menino
pretinho sentiu que o barulho aproximava mais e mais. Poc! Poc! Poc! O barulho
do machado foi aumentando, ficando mais perto do bambuzal. Poc! Poc! Poc! Poc!
Poc! Poc! O barulho foi ficando tão perto, mas tão
perto que de repente: Poc! Ouviu-se um barulho estridente. O machado do
caçador cortara com um golpe um monte de bambus. Romão pretinho se viu sem
proteção. Saiu correndo rapidamente como nunca. Logo o menino que era tão
quieto, não era de briga e vivia em paz dentro do
bambuzal, não perambulava pela mata, nem ligava para os bichos, nem
mesmo se importava com o trabalho de caçada dos caçadores, nem da retirada da
madeira... saiu tão rápido que parecia que ele
tinha uma perna só. O caçador, assustado com
aquele menino de uma perna em forma de redemoinho, deu no pé. Deixando
para trás os galhos cortados, a caça que havia caçado dentro da mata. O menino
também se surpreendeu. Descobriu que tinha uma velocidade imensa, e sua perna transformou-se em uma só e veloz. Um
bem-te-vi que voava por ali e vira toda aquela cena, avisara a bicharada que se
reuniu em círculo em volta de menino, admirando seu redemoinho em forma de
perna.
Foi então que um papagaio o viu e disse para toda bicharada:
Ooolha! O saci acordou! O menino então agradecido pelo apelido de saci, jurou
para si e para os amigos bichos, defender toda a mata e todos os seus
habitantes: insetos, pássaros, plantas, rios, lagos e lagoas.
Desde então, o saci começou a proteger a mata sem dar descanso
ao caçador. Conversando com os bichos, aprendeu tudo sobre as ervas e raízes,
sobre os frutos, conheceu os segredos da mata, passou a sair de seu bambuzal e
conviver com todos os seres dali, com um riso alegre no rosto, saltitante,
brincalhão e veloz feito o pensamento. O saci passou a cegar o machado e a
foice do caçador, para não cortar mais as árvores, nem caçar os bichos, nem
arrancar as ervas sagradas, nem enjaular em gaiolas as aves, nem arrancar as
plumagens dos pássaros, e nem sujar os rios de lixo trazidos da cidade pelo
caçador. Mas o caçador teimoso, sempre voltava querendo madeira, pena, frutos, ervas e tudo que podia levar. Era o
que fazia a mando do coronel, dono das
terras próximas da mata. O saci, como um
guardião, não deixava sossegado o caçador. Aprendeu a dar um assovio tão alto
que assustava quem estivesse perto e girava sua perna de redemoinho. Com o
tempo, o saci ganhou de presente do beija-flor um gorro vermelho. Depois
apareceu o catitu, porquinho do mato, que lhe deu um cachimbo. Cachimbo que
pertencera a um velho e misterioso índio preto que já morrera há muitos anos e
sabia todos os segredos da sagrada natureza, das sagradas sabedorias de seu
povo antigo que fora dono das terras em tempos remotos. Dizia-se até que aquele
sábio fora um pajé respeitado, guardião daquela mata junto com seu povo. O
menino aprendeu o dom da mandinga. Estudou como um grande observador os
segredos das ervas, os mistérios das águas, compreendeu a força e fases da lua,
sabia distinguir perfumes, as formas, e tudo mais sobre plantas e flores.
Aprendeu os sabores e saberes das plantas sagradas e das raízes sem esquecer de
nenhuma.
Assim, de cachimbo na boca e gorro na cabeça e pernas de
redemoinho, saiu o saci pela mata, cuidando dos bichos, das árvores e dos rios
e serras. Toda bicharada ficou em festa, pois descobrira que não estavam só.
Apostava corrida com os bichos mais ligeiros e ganhava de todos. Começou a ver
e conversar com a iara, o curupira, a mãe d’água
e Oxum, rainha dos rios e das cachoeiras. O saci brincava com os bichos e
inventava advinhas como todo menino gosta de fazer. Desafiava os papagaios, os
macacos e outros bichos com quem aprendeu a se comunicar:
O
que é o que é que passa na água e não se molha?
E perguntava tanta pergunta divertida de responder. Era tanta a alegria na mata quando o saci saía correndo que até os pássaros paravam pra olhar. Com o passar do tempo, descobriu o saci que, ao soprar o seu assovio, espantava o mau olhado e amansava até o mais feroz dos bichos. Com o assovio, amansava cobra braba, amansava até os bichos gigantes. Descobriu que ganhara poderes mágicos da natureza. Descobriu assim que usar o seu assovio seria bom para espantar o caçador, que matava bicho e cortava a madeira da mata. Ao assoviar no ouvido do caçador, o sujeito desnorteava, errava o caminho, ficava perdido na mata e deixava tudo pra trás. Fugia desesperado e parava de cortar árvore e caçar bicho para pôr na gaiola. O saci, como ficou conhecido, sempre o espantava, vigiando o meio ambiente. Dali em diante, passou a ser o protetor da natureza. Dizem que até cantarolava quando o caçador não conseguia destruir a mata:
Pula saci
Pula
pra cá
Pula
você
Que
eu quero vê
Quem
vai correr
Igual
Pererê!
Pula
de lá
Pula
daqui
Que
eu já vi
Menino
pular
Igual
Saci!
Pula
pra cá
Pula
pra lá
Numa
perna só
Que
eu quero vê
Quem
corre melhor
Pula pra trás
Pula pra frente
Que eu quero vê
Quem pula diferente.
Pula pra cima
Pula pro lado
Que eu quero vê
Quem pula
Mais engraçado
Disse-me o senhor que me contou esta história que o saci tem a velocidade de sete gatos, tem a elasticidade de sete macacos, a força de sete cavalos e a coragem e esperteza de sete onças pintadas e jaguatiricas. O caçador tenta prendê-lo numa peneira, mas até hoje não conseguiu. O saci? Sempre que escapa da peneira correndo com seu redemoinho em forma de perna, cantarola uma cantiga alegre, vendo a mata preservada, a serra protegida, os pássaros cantando felizes, os sapos coaxando nos lagos, os rios e as cachoeiras rolando água fresca e o caçador longe da mata:
Embaixador
da mata
Na
selva eu salto
Nasci
por aqui
Menino
peralta
Me
chamo saci
Amigo
da mata
Eu
sou assim!
Amigo
de bicho
Não
faço capricho
Assovio
e esculacho
Só
não tolero
Quem
corta madeira
Quem
suja o riacho
Eu
solto os bichos
seja em quem for
Se
é lição de mandinga
Eu
sou embaixador
Na
selva eu salto
Nasci
por aqui
Menino
peralta
Me
chamo saci
Amigo
da mata
Eu
sou assim!
Soube de um velho sábio que aquele que contar esta estória sete vezes para sete pessoas, acaba vendo o
saci no bambuzal da mata e correndo com o redemoinho da estrada nas pernas. E
que os sábios que sabem do saci-redemoinho morrem aos 77 anos, perto de um bambuzal.
Dedico esta história a todos que cuidam da natureza e da vida, aos que cuidam da fantasia e da criatividade poética desse mundo que anda tão feio e sujo. Aos nossos velhos pretos e os sábios pajés, aos nossos ancestrais e protetores das matas. Uma singela homenagem ao nosso primeiro saciólogo ecologista: o saci, embaixador da mata. Cientista das artes sacizaicas imaginativas. Uma homenagem à criatividade, à invenção e ao conhecimento, que pensam no meio ambiente e na vida com sabedoria para as gerações de hoje e de amanhã.
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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