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Cine Virtual: Sentindo na Pele

Conto de José Luis Rocha
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Sinopse: Bibito, um jovem negro da periferia, salva a vida de um homem que está agonizando, vítima de uma facada durante um assalto que sofreu, mas acaba sendo confundido com um dos assaltantes. 



Sentindo na Pele
de José Luis Rocha

– Caramba! Janildo Beque de Roça! Não era assim que a galera te chamava? Há quanto tempo, hein mano!

– Não acredito, Otacílio Cara Preta! Esse cara é bom, hein!

– E aí, doutor Janildo, por onde anda?

– Doutor ainda não, mas vou ser. Tô morando no Méier agora.

– Andando de terno, ou é advogado ou é pastor.

Os dois caíram na risada. Logo Janildo interferiu, explicando:

– Você sabe que eu ando de terno porque minha empresa obriga. Eu até que gosto. Mas eu ainda quero fazer faculdade de direito assim que eu tiver oportunidade. Eu ainda trabalho na companhia de seguros, desde aquela época.

– Que legal! Mas você não tem medo de ficar andando por essas ruas com relógio, cordão de ouro... é perigoso, mano. A cidade tá cheia de ladrões...

– É ruim de levar, hein! Só se tiver armado. Na sugestão não leva não. Há uns cinco anos que eu faço jiu-jitsu... e lá em Realengo, como estão as coisas?

Aqueles dois amigos não se viam há cerca de dez anos, e se encontraram por acaso numa praça. Após um forte e longo abraço, resolveram ir a um barzinho que havia na rua ao lado, para botar os assuntos em dia.

Antes, pararam na calçada e deixaram o ônibus passar, em seguida atravessaram a rua, ainda abraçados. De dentro do ônibus, um jovem negro, com aspecto de menino de rua, acompanhava com curiosidade os movimentos dos dois amigos.

– Eu, hein! Dois marmanjos se abraçando... será que são frutinhas? Acho que não, devem ser amigos mesmo. Minha mãe disse que homens podem se abraçar, que não tem nada demais. Mas lá na favela não tem essa boiolagem, não.

Lá no bar, entre uma cerveja e outra, os amigos conversavam sobre a infância feliz que tiveram, futebol, samba, mulheres etc. até que Otacílio recebeu uma mensagem no celular. Era uma postagem convocando para um ato público em memória de uma vereadora e seu motorista, que foram assassinados a tiros.

Janildo fez uma expressão de muxoxo, e disse que aquela era apenas mais uma morte numa cidade violenta. Então o amigo retrucou, dizendo que respeitava todas as pessoas que foram assassinadas no Rio, mas que no caso da vereadora, era uma mensagem clara por ela estar enfrentando o sistema.

Otacílio disse ao amigo que também entrara na luta, só que não era político. Fazia a sua parte dando aulas para jovens na zona oeste, e que por coincidência, sua turma tinha 28 alunos, sendo que apenas três eram brancos.

Já estavam na quinta cerveja, quando Janildo retrucou o amigo, alegando que esse negócio de preto e branco era invenção de pessoas preguiçosas. E que para quem trabalha e estuda, as oportunidades aparecem.

Então, Otacílio fez a seguinte pergunta:

– Ah, você acha mesmo? Pra ser garçom precisa fazer faculdade? Fazer pós-graduação? Não, né! Então me diga: quantos garçons negros você conhece? O preconceito é perverso! Quando fingimos que não existe, aí é pior ainda, pois não temos como combater um mal que ninguém reconhece...

– Para de mimimi, Otacílio. Os próprios negros é que são cheios de preconceitos. Agora você quer dizer que a vereadora morreu porque defende as minorias, os pretos, os boiolas e tal... tá de sacanagem, todo dia morre um montão de policiais, trabalhadores, e aí, cadê os direitos humanos?

– Janildo, falando assim, nem parece que você também é negro, e que também nasceu na periferia.

– Eu sei que sou um pouco negro, mas não tenho culpa se o outro é branco, e correu atrás pra crescer na vida. E tem mais: nasci em Realengo mesmo, mas não preciso ficar me orgulhando disso.

– Não existe “um pouco negro”, Janildo, você não é branco. E já está fora de Realengo há algum tempo, por isso é que não tem noção da covardia que estão fazendo por lá. Os “homens” chegam e dão tiros pra tudo quanto é lado, não respeitam ninguém...

– Ué... então sai de lá, cara! Infelizmente quem tá lá no meio corre esse risco. O remédio é amargo, mas é para curar essa doença.

– Não acredito que estou ouvindo isso. Só porque você conseguiu um emprego razoável e mora no Méier, não quer dizer que agora virou branco e rico. Eles ainda te veem como mão de oba a ser explorada, só isso.

– Otacílio, entenda uma coisa: esse negócio de preconceito não leva ninguém a nada. A maioria dos pretos fica em casa de braços cruzados, enchendo a cara de cachaça com o dinheiro do bolsa-família.

­– Você é contra o bolsa-família, Janildo? E o auxílio moradia dos juízes, você é contra também?

– Ah, meu Deus, essa não!? Otacílio, os caras estudaram, ralaram pra cassete... Alguma recompensa eles têm que ter. Eles são juízes, cara!

– Isso é ridículo! Você é uma mula mesmo! Pobre de direita, bitolado pela mídia... parei com você!

Otacílio virou-se e foi ao balcão para pagar a despesa.

– Eu tô achando é que você tem é inveja de mim...

Ao ouvir esta frase, Otacílio ficou como que hipnotizado por alguns segundos. Em seguida, disse que precisava ir embora, e se despediu do amigo.

Otacílio saiu indignado, com o coração apertado, mas certo de que Janildo não era nem de longe aquele amigo de infância. Foi andando e murmurando pra si mesmo:

– Estou decepcionado. O cara é negro, viveu uma infância sofrendo discriminação em todo canto, passou necessidade... só porque tem a pele um pouco mais clara e conseguiu um trabalho um pouco melhor do que a maioria, acha que é branco e rico.

Janildo pegou a mochila que estava sobre o balcão, e também saiu chateado. Não se achava preconceituoso, mas pensava que se a polícia matou a pessoa, alguma coisa ela fez. Então saiu murmurando:

– Os moleques roubam, matam, estupram... depois, quando o bicho pega, eles dizem: “Não põe a mão em mim, eu sou de menor...”, aí é foda!

            Enquanto caminhava em direção à rua onde havia deixado o carro, Janildo relembrava toda a conversa que acabara de ter. Pensou que poderia ter dito a Otacílio que mesmo quando era criança, nunca se achou negro, mas evitou falar para não magoar o amigo.

Logo que virou à direita, avistou seu carro. O automóvel estava sozinho colado à calçada. Todos os outros veículos que estavam antes já haviam saído. Janildo então achou que poderia ter sido multado, então deu uma olhada panorâmica por cima, para ver se havia alguma placa de “PROIBIDO ESTACIONAR”.

Enquanto procurava, viu pelo reflexo do vidro do carro, que dois jovens se aproximavam. E pela forma apressada como caminhavam, Janildo teve certeza de que eram assaltantes. Então, procurou se esconder atrás do arbusto que dividia parte da calçada. Mas foi em vão.

– Perdeu, maluco!

Eram dois jovens. Tinham no máximo dezesseis anos. Ambos estavam de bermuda, tênis e camiseta. O negro veio pela frente, com a mão por baixo da blusa, fingindo que estava armado, numa tentativa de intimidar. Já o branco, que era um pouco mais forte, veio por trás e pegou Janildo pelo pescoço.

– Perdeu, porra! Me dá o celular e o relógio, rápido!

Só que Janildo sabia se defender. Embora estivesse com pouco reflexo, pelo efeito das cervejas, conseguiu se desvencilhar do braço do assaltante que o segurava, travou a mochila, e partiu para cima do que estava na frente. O moleque correu para o outro lado da rua, mas o outro puxou uma faca da cintura e golpeou Janildo do lado direito, abaixo das costelas.

A lâmina entrou e saiu rapidamente, cortando músculos e vasos. O rapaz sentiu uma forte ardência, seguida e uma queimação abaixo das costelas. Botou a mão e sentiu algo quente. Ao ver o sangue, percebeu a gravidade do ferimento. Seu corpo foi se dobrando lentamente, até cair de vez.

Ao verem o homem caído, sangrando, os dois fugiram sem levar nada.

Caído, mas ainda com o sangue quente, Janildo conseguiu ouvir os dois discutirem enquanto corriam:

– Caralho, Pirulito, você matou o cara!

– Eu, não porra, nós dois! Cala a boca e corre, que vai sujar.

Com uma das mãos tentando estancar o sangramento, Janildo continuava sentindo a fisgada no abdome. Mas em sua mente só estava estampada a imagem do moleque à sua frente, com a mão por baixo da camisa, o ameaçando. “Se eu pego aquele neguinho filho da puta, eu mato! ”.

Suas forças estavam acabando. Começou a ter medo de morrer. Lembrou de sua filha e de sua mulher. Fez um enorme esforço com a mão esquerda, para pegar o celular no bolso de trás da calça, mas não conseguiu sequer mover o braço. Então rezou para que alguém passasse ali e o visse, mas a rua era muito erma. Vez por outra passava um carro, mas ninguém olhava para o lado, além doa mais, seria quase impossível o virem atrás do arbusto.

Passou então um ônibus, tão devagar, que parecia estar com problemas no motor. Enquanto o ônibus passava lentamente, Janildo acompanhava com o olhar, orando para que alguém o visse. Mas o coletivo seguiu se arrastando, até parar no sinal vermelho, há cerca de cem metros; e com ele passou também a crença de que pudesse chegar algum socorro.

Silvino Chagas dos Santos, 12 anos, conhecido na favela do Muquiço como Bibito, era aquele tipo de jovem que, na sua área, todos gostavam, de graça, embora o moleque estivesse sempre envolvido em traquinagens pelo bairro de Guadalupe. Matava aula com frequência e ficava aprontando pelas ruas, apertava campainha das casas e saía correndo, roubava goiaba, chutava bola nas vidraças, dava teco de atiradeira nos passarinhos etc

Se lá na favela do Muquiço, o menino era querido, quando ia para o Centro ou para a zona sul, a situação modificava. Negro, favelado e malvestido, eram características que assustavam as pessoas que não o conheciam. Contudo, mesmo sabendo que era discriminado, Bibito encarava as situações de preconceito, com ironia, talvez fosse sua forma de conviver com a indignação.

Se acaso, num ônibus, percebesse que alguém estava com medo dele, esperava seu olhar cruzar com o da pessoa e fazia “BUUU!”, depois caía na risada.

Estudava pela manhã – quando ia à escola – e na parte da tarde vendia bala nos trens e ônibus da cidade, mas quando a fiscalização apertava, guardava todo seu material e saía pelas ruas em busca de ganhar qualquer coisa que o livrasse da fome e da miséria.

Na mais tenra idade, era responsável pela própria sobrevivência e de sua mãe, Jurema.

O pai estava preso por assalto à mão armada, fora reconhecido numa operação da PM após um assalto à uma estação do Metrô, em Barros Filho. Não havia fotos, nem qualquer prova, mas prevaleceu o a palavra do policial militar que o prendeu.

Jurema, há tempos vive fora da realidade. Está sempre com um copo na mão. O álcool já faz parte da sua rotina. Bibito não sabe quando sua mãe começou a beber, porque desde que ele era criancinha que ela bebe. Às vezes ela para, quando vai para a igreja, fica uns tempos sem beber. Depois, do nada, começa a beber de novo e deixa de ir para a igreja.

No começo, todo dinheiro que Bibito conseguia como ambulante, ele dava para a mãe comprar comida; até que ele percebeu que na sacola do mercado vinha mais cachaça do que alimento. Daí por diante, ele passou a fazer, ele mesmo, as compras.

O menino nunca conheceu o pai. Nem sabe se é vivo. Antigamente ele perguntava pelo pai, mas a mãe fingia que não ouvia. Logo depois ela enchia a cara. Por isso, ele parou de perguntar.

Outro dia, conversando com dona Letícia, sua vizinha há muitos anos, ela lhe falou seu pai queria que sua mãe o “tirasse”. Bibito ficou meio confuso, sem saber o que é “tirar”, nem quis perguntar a mãe, para ela não beber. Dona Letícia disse também, que sua mãe era doente, que precisa de tratamento.

“Dona Letícia disse que minha mãe é doente, mas ela nem sente febre. Falou que meu pai queria que minha mãe me “tirasse”. Acho que dona Letícia que é doida”

Apesar da pouca idade, o moleque fixou uma ideia na cabeça. Afirmava para si mesmo que sua vida iria mudar. Estava certo de que um dia iria “pegar a boa”, ou seja, arrumar bastante dinheiro, para pagar um bom médico para sua mãe, depois, compraria uma boa casa fora da favela, e os dois viverem juntos, felizes para sempre.

            Naquela semana estava impossível trabalhar no trem, os seguranças não davam nenhuma chance. Havia uma ordem da Supervia, para que aumentasse a fiscalização nos trens, pois havia muita reclamação. Caso alguém fosse pego vendendo o que fosse, deveria ter a mercadoria apreendida e levada para a Guarda Municipal.

Mesmo assim, o moleque arriscou: entrou no vagão, esticando o pescoço, para ver se tinha algum segurança. E tinha. Então o menino saiu de um vagão e entrou no outro. Só que no outro vagão também tinha um segurança. Estavam passando da estação de Bento Ribeiro, há poucos minutos de Oswaldo Cruz. Bibito observou que o guarda não o tinha visto. Ficou por um tempo olhando para o segurança e percebeu que no bolso de sua farda havia um nome bordado.

O moleque soletrou “LU-CAS-O-MAIS”. Na verdade, estava escrito “LUCAS (O+) ”. Bibito achou estranho aquele nome, mas logo se lembrou que na aula de ciências – que era a que ele mais gostava –, a professora Neide tinha falado que essas letras, com sinal de mais e de menos, dizia o tipo de sangue da pessoa. “O meu é be menos, deve ser ruim” – falou baixinho.

O moleque estava tão entretido com a questão do sangue, que se assustou quando percebeu que o guarda o tinha visto e parecia vir em sua direção. Bibito se antecipou e falou:

            – Fala aí Lucas, sangue bom! Tá sumido, hein!

            O segurança ficou meio sem jeito, pois não se lembrava de conhecer aquele menino:

            – Oi... Tudo bom?

            Aproveitando-se do embaraço do homem, Bibito inventou uma história:

            – Não lembra de mim, não, Lucas? Somos quase vizinhos. Eu moro lá também... eu sou filho da dona Lucinha, aquela que está na cadeira de rodas... tô levando esses doces pra minha mãe vender lá na Central.

            Ainda confuso, Lucas ficou se perguntando de onde o conhecia. “Mas ele me conhece, e falou que eu conheço também a sua mãe, dona Lucinha... dona Lucinha... dona Lucinha..., eu conheço um monte de Lucia”. Pelo sim pelo não, Lucas permitiu que o menino transportasse os doces no trem.

            – Mas não pode vender, hein!

­            – Valeu, Lucas, obrigado! Fala pra sua irmã que eu mandei um abraço pra ela!

            – Obrigado! Eu falo sim...

            Alguns segundos depois, já próximo à estação de Madureira, o vigilante Lucas se deu conta de que o moleque estava de armação, pois ele não tinha irmã. Então olhou para o canto onde estava o menor, e o viu recebendo dinheiro da mão de um homem de óculos, que acabara de comprar, escondido, um pacote de jujubas.

– Ah, moleque safado, eu te pego!

Lucas partiu em direção ao menino, que aproveitou que a porta se abriu na estação, e saltou no pinote, saindo ligeiro para fora da estação. Esbaforido, o menino olhou para cima e agradeceu a Deus por não ter permitido que ele perdesse quase setenta reais investidos em mercadorias.

Resolveu que iria de ônibus, desceria na Central do Brasil e pegaria outro até a zona sul. Afinal, não pagava passagem mesmo. Então, parou no ponto ainda em Madureira, e deu um balanço no seu bolso: só tinha três reais, mas já era o bastante para comer um pão na manteiga.

Quando olhou para o lado, viu que uma senhora, de cerca de quarenta anos, estava se escondendo atrás da pilastra do ponto de ônibus, com os olhos arregalados, deixando a impressão que estava morrendo de medo dele.

Primeiro ele ficou encarando a mulher, porque achou-a parecida com a dona Sirlene, uma senhora que vivia andando pela favela igual a uma maluca, falando coisa com coisa. Depois achou que não era a dona Sirlene, e ignorou a mulher.

Em poucos minutos, um ônibus da linha 254 encostou para subir alguns passageiros que estavam em uma pequena fila. Bibito caminhou até a pilastra onde a mulher estava, fechou o semblante. Não é necessário dizer que a mulher gelou.  O menino parou a sua frente, olhou bem para seus olhos e falou:

– Dona Sirlene!

A mulher não entendeu, e deu dois passos para trás, assustada. Então, Bibito soltou um pum bem alto, e saiu rindo. Depois, foi até a porta dianteira do ônibus, que ainda estava parado, deu um sorriso para o motorista, e fez sinal de “positivo” com o polegar.

Diante da expressão angelical e verdadeira do rapaz, o motorista permitiu que ele entrasse no coletivo para vender suas balas.

Bibito deu um pacotinho de amendoim ao motorista e anunciou sua mercadoria para os cerca de vinte passageiros que viajavam no veículo. Vendeu alguns sacos de balas e jujubas, depois sentou no banco traseiro, e ficou olhando pela janela.

O ônibus parou, e Bibito viu dois caras se abraçando na praça, e depois atravessando a rua abraçados. Pensou um monte de bobagens, e em seguida lembrou de sua mãe. Novamente vieram os pensamentos de um dia “pegar a boa”, para pagar um bom médico. Depois, comprar uma boa casa... logo, cochilou.

Naquele dia, as vendas nos ônibus da Zona Sul foram péssimas. Para piorar, houve um arrastão em Botafogo, e Bibito teve que correr, largando para trás seu amarrado de doces e balas.

Resignado, pois já estava acostumado com esse tipo de perda, o menino pediu uma carona para voltar. O método era o mesmo: um sorriso com cara de anjinho, o polegar para cima, e o motorista quase sempre concedia.

– Valeu, piloto!

Já dentro do ônibus, Bibito procurou algum banco que tivesse sem ninguém, porque sabia que se sentasse ao lado de alguém, seria discriminado. Até que constatou que em todos os bancos havia ao menos uma pessoa. Então pensou:  “Por que todas as pessoas só querem sentar sozinhas? “ Logo lembrou que ele também preferia sentar sozinho.

Sua dúvida agora poderia sentar sem ser discriminado? Escolheu o banco alto, onde havia um jovem, com roupa de escola. Não deu muito certo. Mal Bibito sentou, o rapaz levantou e foi sentar lá na frente, ao lado de uma senhora gorda. Preferiu ficar espremido.

O menino riu e pensou: “Bem feito! Agora a janela é minha”. Em seguida, voltou a pensar em “pegar a boa”, pagar um bom médico para a mãe, comprar uma boa casa... logo, cochilou.

– Vambora, motorista, esse ônibus parece que tá morrendo, pô!

– É mesmo, piloto, eu tô com pressa!

O alarido dos passageiros reclamando da morosidade do ônibus, acabou acordando Bibito. O jovem olhou pela janela, para ver onde estavam, mas não conseguiu identificar o local. Piscou os olhos com força, três vezes, para tornar a imagem mais nítida. Enquanto o ônibus se arrastava, Bibito permanecia atento ao cenário lá de fora.

Quando pararam no sinal vermelho, o menino fixou a vista, dessa vez olhando através do para-brisa traseiro. Alguma coisa diferente atrás de um arbusto. Parecia ser um homem deitado. Devido a experiência de vida pelas ruas que o jovem tinha; a cena lhe chamou atenção, principalmente pelo local onde estava e pela roupa que a pessoa usava, não se tratava de um mendigo.

– Abre a porta aí, por favor, piloto! – Era a voz de Bibito.

O menino saltou e correu em direção ao homem. Quando chegou bem próximo, viu que ele estava com os olhos abertos e ainda respirava. O menino falou baixinho:

– Caralho, o cara tá morrendo! Acho que foi esse cara que eu vi hoje de tarde, abraçado com outro cara. Será que foi o amigo dele que fez isso? Acho que foi algum hemofóbio... não sei o nome direito não, é gente que não gosta de frutinha. Caraca, o cara tá sangrando pra caramba... Será que o sangue dele é com sinal de mais ou de menos?

Embora Bibito estivesse falando bem baixinho, Janildo conseguia ouvir:

– Pô, o cara tá cheio de peça... Esse cordão deve valer uma nota. E o relógio? Esse cara deve ser rico. Homem rico quase sempre e gay. Minha mãe que falou isso. Minha mãe sempre tem razão.

Deitado, mas já totalmente sem forças, Janildo ouvia a ambição do menino. Notou que era um negro, e estava malvestido. Ainda acompanhou com os olhos os movimentos do moleque, que se abaixou, pegou em seu braço esquerdo, tateou seu pulso e retirou o relógio. Depois, tirou o cordão e botou no bolso. Em seguida, virou seu corpo para o lado, enfiou a mão no seu bolso da calça e retirou o telefone celular. Pegou também a mochila que estava caída próximo ao corpo e por fim, pegou a carteira no outro bolso e correu, na direção contrária do tráfego.

Janildo aceitou passivamente todos os movimentos do moleque. Depois que o menino fugiu com seus pertences, nem mais os olhos ele conseguia mover. Entretanto, xingou apenas com a mente “Neguinho safado, ladrão, covarde! ”.

Quando os sons exteriores começaram a desaparecer, Janildo apenas pensava: “Meu Deus, eu sei que vou morrer, mas permita que minha alma nunca se cruze com a desses vermes, que são capazes de roubar até uma pessoa à beira da morte”. Após essa espécie de oração, o mundo se apagou para ele.

 Após dois dias no limbo, uma luz brilhou em seus olhos. Janildo não via nada, apenas sentia seu corpo flutuar. Entendeu que a morte não era tão ruim assim como pensavam no plano anterior. A luz se apagou por completo. Por um instante teve medo de conhecer o diabo. Depois ouviu sons.

– Pai!

Aquela voz não era do além. Janildo abriu os olhos e pode ver o sorriso de Isabela. Ao lado da filha estava Mônica, sua esposa, e um enfermeiro, que acabara de fazer os curativos, afastou a haste de onde pendia a última das quatro bolsas de sangue, que lhe entrava pela veia do braço esquerdo.

Mônica se aproximou e falou:

– Como está se sentindo?

Com alguma dificuldade ele respondeu:

– Estou bem... acho que estou bem – falou tentando se levantar, mas foi contido pela esposa.

– Você ainda não pode ficar se mexendo demais. Daqui a pouco doutor Rafael vai passar aqui. Ele disse que acha que você não deve ficar muito tempo no hospital. Está só esperando os resultados de alguns exames.

O efeito da medicação provocou uma confusão na cabeça de Janildo, então ele comentou com Mônica:

– Como eu vim parar aqui? Eu só me lembro que fui assaltado. E meu carro, onde está? O filho da puta me furou. Ah, aquele negro safado me roubou!

Enquanto falava, Janildo teve um acesso de tosse, e novamente foi contido pela esposa.

– Fica calmo, amor, fica calmo. Não fala assim, porque fica parecendo preconceito. Aliás, quem salvou sua vida foi justamente uma pessoa negra.

No momento em que Mônica falava, o médico se aproximou. No bolso do jaleco extremamente branco estava bordado “Dr. Rafael”.

– A cirurgia foi um sucesso! Como se sente, meu rapaz?

Meio sem jeito ao perceber que o médico era negro, Janildo sentiu vergonha, e ficou pensando se o doutor havia ouvido seu desabafo sobre o negro e o assalto. Fez apenas fez um sinal de positivo com o polegar, afirmando que estava bem, e fechou os olhos, constrangido.

– Ótimo! – Afirmou o doutor – Você me parece muito forte, está reagindo muito bem. Agora precisa descansar mais um pouco. Para não forçar muito o local do ferimento.

Após falar isso, o médico chamou Mônica ao canto e disse que pela análise do ferimento, no dia seguinte seu marido estaria de alta, mas que naquele momento era melhor que ela e a filha o mais um pouco deixasse sozinho.

Mônica agradeceu e foi junto com a filha, contar ao marido sobre a alta e se despedir. Janildo deu um leve sorriso, já quase dormindo. Depois dormiu mesmo.

Naquele momento, Bibito fazia uma verdadeira festa na favela do Muquiço. Chegou na birosca do seu Alfredo, com marra de rico:

– Seu Alfredo, me dá cinco hambúrguer daqueles da promoção! Completos, hein!

Pagou hambúrguer com refresco de caju para o Matheus, Felipinho, Degê e para o Cabeça.

– Tá rico, hein Bibito, dinheiro pra caramba!

– Para de zói grande Matheus!

Assim que deixou os amigos, passou na padaria e comprou um sorvete de caixinha, e botou no bolso. Mais à frente, tocou a campainha da casa da Beatriz, uma amenina com quem ele trocava olhares à distância, entregou a ela o sorvete e saiu correndo, avexado.

Depois de repor o estoque de balas para vender no sábado, pensou em dar dinheiro para a mãe, mas preferiu ir direto ao mercado. Comprou queijo, goiabada, biscoito, e mais alguns supérfluos que nunca havia comprado. Comprou também dois pares de chinelos, um para ele mesmo e outro para a mãe.

Sobre a origem do dinheiro, Bibito só contou para a mãe. Jurema brigou com ele, dizendo que não educou ele dessa forma. Mas bem que Jurema aceitou o presente que o filho lhe deu.

No dia seguinte, Mônica e a filha Isabela chegaram à clínica por volta das treze horas. A mulher empurrava uma cadeira de rodas. Janildo já estava sentado na cama, ansioso.

Achou meio estranho ter que sentar na cadeira de rodas, mas não ofereceu resistência.

– O fisioterapeuta disse que é só por poucos dias, porque você está proibido de fazer esforço. Mas logo você vai voltar a sua vida normal.

Com a ajuda de um enfermeiro, Janildo trocou a maca pela cadeira. Despediu-se da equipe de enfermagem e saiu com a família.

Ao deixarem a Casa de Saúde Santa Bárbara, Isabela se propôs a carregar o pai na cadeira, enquanto que Mônica ficou à espreita de um taxi. Nesse momento, Janildo girou a cabeça para o lado e reconheceu, encostado na grade do hospital, o menino negro que retirou seus pertences na noite de sua quase morte.

– Foi ele! Foi ele!

            Assustada, Mônica olhou para o lado que o marido estava apontando. Para espanto de Janildo, ela foi até o menino e os dois conversaram. Logo, ela deu um beijo carinhoso na testa dele e retornou. Ao notar a cara de espanto do marido, Mônica falou:

            – Foi ele sim! Foi ele quem pegou tua carteira, tua mochila, teu celular, teu cordão... inclusive foi do teu celular que ele ligou pra mim e pro SAMU. Se não fosse ele, você não estaria aqui. E tem mais: eu dei duzentos reais pra ele por agradecimento, e ele nem queria aceitar. Só aceitou depois de muita insistência, Saiu dizendo que a mãe iria ficar feliz.

            – Então, agora veio pedir mais dinheiro?

            – Não. Ele veio saber como você estava, mas o barraram na entrada.

Conto escrito por
José Luis Rocha

Produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


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