Sentindo na Pele
de José Luis Rocha
–
Caramba! Janildo Beque de Roça! Não era assim que a galera te chamava? Há
quanto tempo, hein mano!
– Não
acredito, Otacílio Cara Preta! Esse cara é bom, hein!
– E
aí, doutor Janildo, por onde anda?
–
Doutor ainda não, mas vou ser. Tô morando no Méier agora.
– Andando
de terno, ou é advogado ou é pastor.
Os
dois caíram na risada. Logo Janildo interferiu, explicando:
– Você
sabe que eu ando de terno porque minha empresa obriga. Eu até que gosto. Mas eu
ainda quero fazer faculdade de direito assim que eu tiver oportunidade. Eu
ainda trabalho na companhia de seguros, desde aquela época.
– Que
legal! Mas você não tem medo de ficar andando por essas ruas com relógio,
cordão de ouro... é perigoso, mano. A cidade tá cheia de ladrões...
– É
ruim de levar, hein! Só se tiver armado. Na sugestão não leva não. Há uns cinco
anos que eu faço jiu-jitsu... e lá em Realengo, como estão as coisas?
Aqueles
dois amigos não se viam há cerca de dez anos, e se encontraram por acaso numa
praça. Após um forte e longo abraço, resolveram ir a um barzinho que havia na
rua ao lado, para botar os assuntos em dia.
Antes,
pararam na calçada e deixaram o ônibus passar, em seguida atravessaram a rua,
ainda abraçados. De dentro do ônibus, um jovem negro, com aspecto de menino de
rua, acompanhava com curiosidade os movimentos dos dois amigos.
– Eu,
hein! Dois marmanjos se abraçando... será que são frutinhas? Acho que não,
devem ser amigos mesmo. Minha mãe disse que homens podem se abraçar, que não
tem nada demais. Mas lá na favela não tem essa boiolagem, não.
Lá no
bar, entre uma cerveja e outra, os amigos conversavam sobre a infância feliz
que tiveram, futebol, samba, mulheres etc. até que Otacílio recebeu uma
mensagem no celular. Era uma postagem convocando para um ato público em memória
de uma vereadora e seu motorista, que foram assassinados a tiros.
Janildo
fez uma expressão de muxoxo, e disse que aquela era apenas mais uma morte numa
cidade violenta. Então o amigo retrucou, dizendo que respeitava todas as
pessoas que foram assassinadas no Rio, mas que no caso da vereadora, era uma
mensagem clara por ela estar enfrentando o sistema.
Otacílio
disse ao amigo que também entrara na luta, só que não era político. Fazia a sua
parte dando aulas para jovens na zona oeste, e que por coincidência, sua turma
tinha 28 alunos, sendo que apenas três eram brancos.
Já
estavam na quinta cerveja, quando Janildo retrucou o amigo, alegando que esse
negócio de preto e branco era invenção de pessoas preguiçosas. E que para quem
trabalha e estuda, as oportunidades aparecem.
Então,
Otacílio fez a seguinte pergunta:
– Ah,
você acha mesmo? Pra ser garçom precisa fazer faculdade? Fazer pós-graduação?
Não, né! Então me diga: quantos garçons negros você conhece? O preconceito é
perverso! Quando fingimos que não existe, aí é pior ainda, pois não temos como
combater um mal que ninguém reconhece...
– Para
de mimimi, Otacílio. Os próprios negros é que são cheios de preconceitos. Agora
você quer dizer que a vereadora morreu porque defende as minorias, os pretos,
os boiolas e tal... tá de sacanagem, todo dia morre um montão de policiais,
trabalhadores, e aí, cadê os direitos humanos?
– Janildo,
falando assim, nem parece que você também é negro, e que também nasceu na periferia.
– Eu
sei que sou um pouco negro, mas não tenho culpa se o outro é branco, e correu
atrás pra crescer na vida. E tem mais: nasci em Realengo mesmo, mas não preciso
ficar me orgulhando disso.
– Não
existe “um pouco negro”, Janildo, você não é branco. E já está fora de Realengo
há algum tempo, por isso é que não tem noção da covardia que estão fazendo por lá.
Os “homens” chegam e dão tiros pra tudo quanto é lado, não respeitam ninguém...
–
Ué... então sai de lá, cara! Infelizmente quem tá lá no meio corre esse risco.
O remédio é amargo, mas é para curar essa doença.
– Não
acredito que estou ouvindo isso. Só porque você conseguiu um emprego razoável e
mora no Méier, não quer dizer que agora virou branco e rico. Eles ainda te veem
como mão de oba a ser explorada, só isso.
–
Otacílio, entenda uma coisa: esse negócio de preconceito não leva ninguém a
nada. A maioria dos pretos fica em casa de braços cruzados, enchendo a cara de
cachaça com o dinheiro do bolsa-família.
–
Você é contra o bolsa-família, Janildo? E o auxílio moradia dos juízes, você é
contra também?
– Ah,
meu Deus, essa não!? Otacílio, os caras estudaram, ralaram pra cassete... Alguma
recompensa eles têm que ter. Eles são juízes, cara!
– Isso
é ridículo! Você é uma mula mesmo! Pobre de direita, bitolado pela mídia... parei
com você!
Otacílio
virou-se e foi ao balcão para pagar a despesa.
– Eu
tô achando é que você tem é inveja de mim...
Ao
ouvir esta frase, Otacílio ficou como que hipnotizado por alguns segundos. Em
seguida, disse que precisava ir embora, e se despediu do amigo.
Otacílio
saiu indignado, com o coração apertado, mas certo de que Janildo não era nem de
longe aquele amigo de infância. Foi andando e murmurando pra si mesmo:
– Estou
decepcionado. O cara é negro, viveu uma infância sofrendo discriminação em todo
canto, passou necessidade... só porque tem a pele um pouco mais clara e conseguiu
um trabalho um pouco melhor do que a maioria, acha que é branco e rico.
Janildo
pegou a mochila que estava sobre o balcão, e também saiu chateado. Não se
achava preconceituoso, mas pensava que se a polícia matou a pessoa, alguma
coisa ela fez. Então saiu murmurando:
– Os
moleques roubam, matam, estupram... depois, quando o bicho pega, eles dizem: “Não
põe a mão em mim, eu sou de menor...”, aí é foda!
Enquanto caminhava em direção à rua onde havia deixado o
carro, Janildo relembrava toda a conversa que acabara de ter. Pensou que
poderia ter dito a Otacílio que mesmo quando era criança, nunca se achou negro, mas
evitou falar para não magoar o amigo.
Logo
que virou à direita, avistou seu carro. O automóvel estava sozinho colado à
calçada. Todos os outros veículos que estavam antes já haviam saído. Janildo
então achou que poderia ter sido multado, então deu uma olhada panorâmica por
cima, para ver se havia alguma placa de “PROIBIDO ESTACIONAR”.
Enquanto
procurava, viu pelo reflexo do vidro do carro, que dois jovens se aproximavam. E
pela forma apressada como caminhavam, Janildo teve certeza de que eram
assaltantes. Então, procurou se esconder atrás do arbusto que dividia parte da
calçada. Mas foi em vão.
–
Perdeu, maluco!
Eram
dois jovens. Tinham no máximo dezesseis anos. Ambos estavam de bermuda, tênis e
camiseta. O negro veio pela frente, com a mão por baixo da blusa, fingindo que
estava armado, numa tentativa de intimidar. Já o branco, que era um pouco mais
forte, veio por trás e pegou Janildo pelo pescoço.
– Perdeu,
porra! Me dá o celular e o relógio, rápido!
Só que
Janildo sabia se defender. Embora estivesse com pouco reflexo, pelo efeito das
cervejas, conseguiu se desvencilhar do braço do assaltante que o segurava, travou
a mochila, e partiu para cima do que estava na frente. O moleque correu para o
outro lado da rua, mas o outro puxou uma faca da cintura e golpeou Janildo do
lado direito, abaixo das costelas.
A
lâmina entrou e saiu rapidamente, cortando músculos e vasos. O rapaz sentiu uma
forte ardência, seguida e uma queimação abaixo das costelas. Botou a mão e
sentiu algo quente. Ao ver o sangue, percebeu a gravidade do ferimento. Seu
corpo foi se dobrando lentamente, até cair de vez.
Ao
verem o homem caído, sangrando, os dois fugiram sem levar nada.
Caído,
mas ainda com o sangue quente, Janildo conseguiu ouvir os dois discutirem
enquanto corriam:
–
Caralho, Pirulito, você matou o cara!
– Eu,
não porra, nós dois! Cala a boca e corre, que vai sujar.
Com
uma das mãos tentando estancar o sangramento, Janildo continuava sentindo a
fisgada no abdome. Mas em sua mente só estava estampada a imagem do moleque à
sua frente, com a mão por baixo da camisa, o ameaçando. “Se eu pego aquele
neguinho filho da puta, eu mato! ”.
Suas
forças estavam acabando. Começou a ter medo de morrer. Lembrou de sua filha e
de sua mulher. Fez um enorme esforço com a mão esquerda, para pegar o celular
no bolso de trás da calça, mas não conseguiu sequer mover o braço. Então rezou
para que alguém passasse ali e o visse, mas a rua era muito erma. Vez por outra
passava um carro, mas ninguém olhava para o lado, além doa mais, seria quase
impossível o virem atrás do arbusto.
Passou
então um ônibus, tão devagar, que parecia estar com problemas no motor.
Enquanto o ônibus passava lentamente, Janildo acompanhava com o olhar, orando
para que alguém o visse. Mas o coletivo seguiu se arrastando, até parar no
sinal vermelho, há cerca de cem metros; e com ele passou também a crença de que
pudesse chegar algum socorro.
Silvino
Chagas dos Santos, 12 anos, conhecido na favela do Muquiço como Bibito, era
aquele tipo de jovem que, na sua área, todos gostavam, de graça, embora o
moleque estivesse sempre envolvido em traquinagens pelo bairro de Guadalupe.
Matava aula com frequência e ficava aprontando pelas ruas, apertava campainha
das casas e saía correndo, roubava goiaba, chutava bola nas vidraças, dava teco
de atiradeira nos passarinhos etc
Se lá
na favela do Muquiço, o menino era querido, quando ia para o Centro ou para a
zona sul, a situação modificava. Negro, favelado e malvestido, eram
características que assustavam as pessoas que não o conheciam. Contudo, mesmo
sabendo que era discriminado, Bibito encarava as situações de preconceito, com
ironia, talvez fosse sua forma de conviver com a indignação.
Se
acaso, num ônibus, percebesse que alguém estava com medo dele, esperava seu
olhar cruzar com o da pessoa e fazia “BUUU!”, depois caía na risada.
Estudava
pela manhã – quando ia à escola – e na parte da tarde vendia bala nos trens e
ônibus da cidade, mas quando a fiscalização apertava, guardava todo seu
material e saía pelas ruas em busca de ganhar qualquer coisa que o livrasse da
fome e da miséria.
Na
mais tenra idade, era responsável pela própria sobrevivência e de sua mãe,
Jurema.
O pai
estava preso por assalto à mão armada, fora reconhecido numa operação da PM
após um assalto à uma estação do Metrô, em Barros Filho. Não havia fotos, nem
qualquer prova, mas prevaleceu o a palavra do policial militar que o prendeu.
Jurema,
há tempos vive fora da realidade. Está sempre com um copo na mão. O álcool já
faz parte da sua rotina. Bibito não sabe quando sua mãe começou a beber, porque
desde que ele era criancinha que ela bebe. Às vezes ela para, quando vai para a
igreja, fica uns tempos sem beber. Depois, do nada, começa a beber de novo e
deixa de ir para a igreja.
No
começo, todo dinheiro que Bibito conseguia como ambulante, ele dava para a mãe
comprar comida; até que ele percebeu que na sacola do mercado vinha mais
cachaça do que alimento. Daí por diante, ele passou a fazer, ele mesmo, as
compras.
O
menino nunca conheceu o pai. Nem sabe se é vivo. Antigamente ele perguntava
pelo pai, mas a mãe fingia que não ouvia. Logo depois ela enchia a cara. Por
isso, ele parou de perguntar.
Outro
dia, conversando com dona Letícia, sua vizinha há muitos anos, ela lhe falou
seu pai queria que sua mãe o “tirasse”. Bibito ficou meio confuso, sem saber o
que é “tirar”, nem quis perguntar a mãe, para ela não beber. Dona Letícia disse
também, que sua mãe era doente, que precisa de tratamento.
“Dona
Letícia disse que minha mãe é doente, mas ela nem sente febre. Falou que meu
pai queria que minha mãe me “tirasse”. Acho que dona Letícia que é doida”
Apesar
da pouca idade, o moleque fixou uma ideia na cabeça. Afirmava para si mesmo que
sua vida iria mudar. Estava certo de que um dia iria “pegar a boa”, ou seja,
arrumar bastante dinheiro, para pagar um bom médico para sua mãe, depois,
compraria uma boa casa fora da favela, e os dois viverem juntos, felizes para
sempre.
Naquela semana estava impossível trabalhar no trem, os
seguranças não davam nenhuma chance. Havia uma ordem da Supervia, para que
aumentasse a fiscalização nos trens, pois havia muita reclamação. Caso alguém
fosse pego vendendo o que fosse, deveria ter a mercadoria apreendida e levada
para a Guarda Municipal.
Mesmo
assim, o moleque arriscou: entrou no vagão, esticando o pescoço, para ver se
tinha algum segurança. E tinha. Então o menino saiu de um vagão e entrou no
outro. Só que no outro vagão também tinha um segurança. Estavam passando da
estação de Bento Ribeiro, há poucos minutos de Oswaldo Cruz. Bibito observou
que o guarda não o tinha visto. Ficou por um tempo olhando para o segurança e
percebeu que no bolso de sua farda havia um nome bordado.
O moleque
soletrou “LU-CAS-O-MAIS”. Na verdade, estava escrito “LUCAS (O+) ”. Bibito
achou estranho aquele nome, mas logo se lembrou que na aula de ciências – que
era a que ele mais gostava –, a professora Neide tinha falado que essas letras,
com sinal de mais e de menos, dizia o tipo de sangue da pessoa. “O meu é be
menos, deve ser ruim” – falou baixinho.
O
moleque estava tão entretido com a questão do sangue, que se assustou quando
percebeu que o guarda o tinha visto e parecia vir em sua direção. Bibito se antecipou
e falou:
– Fala aí Lucas, sangue bom! Tá sumido, hein!
O segurança ficou meio sem jeito, pois não se lembrava de
conhecer aquele menino:
– Oi... Tudo bom?
Aproveitando-se do embaraço do homem, Bibito inventou uma
história:
– Não lembra de mim, não, Lucas? Somos quase vizinhos. Eu
moro lá também... eu sou filho da dona Lucinha, aquela que está na cadeira de
rodas... tô levando esses doces pra minha mãe vender lá na Central.
Ainda confuso, Lucas ficou se perguntando de onde o
conhecia. “Mas ele me conhece, e falou que eu conheço também a sua mãe, dona
Lucinha... dona Lucinha... dona Lucinha..., eu conheço um monte de Lucia”. Pelo
sim pelo não, Lucas permitiu que o menino transportasse os doces no trem.
– Mas não pode vender, hein!
– Valeu, Lucas, obrigado! Fala pra sua irmã que eu mandei
um abraço pra ela!
– Obrigado! Eu falo sim...
Alguns segundos depois, já próximo à estação de
Madureira, o vigilante Lucas se deu conta de que o moleque estava de armação,
pois ele não tinha irmã. Então olhou para o canto onde estava o menor, e o viu recebendo
dinheiro da mão de um homem de óculos, que acabara de comprar, escondido, um
pacote de jujubas.
– Ah,
moleque safado, eu te pego!
Lucas
partiu em direção ao menino, que aproveitou que a porta se abriu na estação, e
saltou no pinote, saindo ligeiro para fora da estação. Esbaforido, o menino
olhou para cima e agradeceu a Deus por não ter permitido que ele perdesse quase
setenta reais investidos em mercadorias.
Resolveu
que iria de ônibus, desceria na Central do Brasil e pegaria outro até a zona
sul. Afinal, não pagava passagem mesmo. Então, parou no ponto ainda em
Madureira, e deu um balanço no seu bolso: só tinha três reais, mas já era o bastante
para comer um pão na manteiga.
Quando
olhou para o lado, viu que uma senhora, de cerca de quarenta anos, estava se
escondendo atrás da pilastra do ponto de ônibus, com os olhos arregalados,
deixando a impressão que estava morrendo de medo dele.
Primeiro
ele ficou encarando a mulher, porque achou-a parecida com a dona Sirlene, uma
senhora que vivia andando pela favela igual a uma maluca, falando coisa com
coisa. Depois achou que não era a dona Sirlene, e ignorou a mulher.
Em
poucos minutos, um ônibus da linha 254 encostou para subir alguns passageiros
que estavam em uma pequena fila. Bibito caminhou até a pilastra onde a mulher
estava, fechou o semblante. Não é necessário dizer que a mulher gelou. O menino parou a sua frente, olhou bem para seus
olhos e falou:
– Dona
Sirlene!
A
mulher não entendeu, e deu dois passos para trás, assustada. Então, Bibito soltou
um pum bem alto, e saiu rindo. Depois, foi até a porta dianteira do ônibus, que
ainda estava parado, deu um sorriso para o motorista, e fez sinal de “positivo”
com o polegar.
Diante
da expressão angelical e verdadeira do rapaz, o motorista permitiu que ele entrasse
no coletivo para vender suas balas.
Bibito
deu um pacotinho de amendoim ao motorista e anunciou sua mercadoria para os
cerca de vinte passageiros que viajavam no veículo. Vendeu alguns sacos de
balas e jujubas, depois sentou no banco traseiro, e ficou olhando pela janela.
O
ônibus parou, e Bibito viu dois caras se abraçando na praça, e depois
atravessando a rua abraçados. Pensou um monte de bobagens, e em seguida lembrou
de sua mãe. Novamente vieram os pensamentos de um dia “pegar a boa”, para pagar
um bom médico. Depois, comprar uma boa casa... logo, cochilou.
Naquele
dia, as vendas nos ônibus da Zona Sul foram péssimas. Para piorar, houve um
arrastão em Botafogo, e Bibito teve que correr, largando para trás seu amarrado
de doces e balas.
Resignado,
pois já estava acostumado com esse tipo de perda, o menino pediu uma carona
para voltar. O método era o mesmo: um sorriso com cara de anjinho, o polegar
para cima, e o motorista quase sempre concedia.
– Valeu,
piloto!
Já
dentro do ônibus, Bibito procurou algum banco que tivesse sem ninguém, porque
sabia que se sentasse ao lado de alguém, seria discriminado. Até que constatou
que em todos os bancos havia ao menos uma pessoa. Então pensou: “Por
que todas as pessoas só querem sentar sozinhas? “ Logo lembrou que ele
também preferia sentar sozinho.
Sua dúvida
agora poderia sentar sem ser discriminado? Escolheu o banco alto, onde havia um
jovem, com roupa de escola. Não deu muito certo. Mal Bibito sentou, o rapaz
levantou e foi sentar lá na frente, ao lado de uma senhora gorda. Preferiu
ficar espremido.
O menino
riu e pensou: “Bem feito! Agora a janela
é minha”. Em seguida, voltou a pensar em “pegar a boa”, pagar um bom médico
para a mãe, comprar uma boa casa... logo, cochilou.
–
Vambora, motorista, esse ônibus parece que tá morrendo, pô!
– É
mesmo, piloto, eu tô com pressa!
O
alarido dos passageiros reclamando da morosidade do ônibus, acabou acordando
Bibito. O jovem olhou pela janela, para ver onde estavam, mas não conseguiu
identificar o local. Piscou os olhos com força, três vezes, para tornar a
imagem mais nítida. Enquanto o ônibus se arrastava, Bibito permanecia atento ao
cenário lá de fora.
Quando
pararam no sinal vermelho, o menino fixou a vista, dessa vez olhando através do
para-brisa traseiro. Alguma coisa diferente atrás de um arbusto. Parecia ser um
homem deitado. Devido a experiência de vida pelas ruas que o jovem tinha; a
cena lhe chamou atenção, principalmente pelo local onde estava e pela roupa que
a pessoa usava, não se tratava de um mendigo.
– Abre
a porta aí, por favor, piloto! – Era a voz de Bibito.
O
menino saltou e correu em direção ao homem. Quando chegou bem próximo, viu que
ele estava com os olhos abertos e ainda respirava. O menino falou baixinho:
–
Caralho, o cara tá morrendo! Acho que foi esse cara que eu vi hoje de tarde,
abraçado com outro cara. Será que foi o amigo dele que fez isso? Acho que foi algum
hemofóbio... não sei o nome direito não, é gente que não gosta de frutinha.
Caraca, o cara tá sangrando pra caramba... Será que o sangue dele é com sinal
de mais ou de menos?
Embora
Bibito estivesse falando bem baixinho, Janildo conseguia ouvir:
– Pô,
o cara tá cheio de peça... Esse cordão deve valer uma nota. E o relógio? Esse
cara deve ser rico. Homem rico quase sempre e gay. Minha mãe que falou isso.
Minha mãe sempre tem razão.
Deitado,
mas já totalmente sem forças, Janildo ouvia a ambição do menino. Notou que era
um negro, e estava malvestido. Ainda acompanhou com os olhos os movimentos do
moleque, que se abaixou, pegou em seu braço esquerdo, tateou seu pulso e
retirou o relógio. Depois, tirou o cordão e botou no bolso. Em seguida, virou
seu corpo para o lado, enfiou a mão no seu bolso da calça e retirou o telefone
celular. Pegou também a mochila que estava caída próximo ao corpo e por fim,
pegou a carteira no outro bolso e correu, na direção contrária do tráfego.
Janildo
aceitou passivamente todos os movimentos do moleque. Depois que o menino fugiu
com seus pertences, nem mais os olhos ele conseguia mover. Entretanto, xingou
apenas com a mente “Neguinho safado, ladrão, covarde! ”.
Quando
os sons exteriores começaram a desaparecer, Janildo apenas pensava: “Meu Deus, eu sei que vou morrer, mas
permita que minha alma nunca se cruze com a desses vermes, que são capazes de
roubar até uma pessoa à beira da morte”. Após essa espécie de oração, o
mundo se apagou para ele.
Após dois dias no limbo, uma luz brilhou em
seus olhos. Janildo não via nada, apenas sentia seu corpo flutuar. Entendeu que
a morte não era tão ruim assim como pensavam no plano anterior. A luz se apagou
por completo. Por um instante teve medo de conhecer o diabo. Depois ouviu sons.
– Pai!
Aquela
voz não era do além. Janildo abriu os olhos e pode ver o sorriso de Isabela. Ao
lado da filha estava Mônica, sua esposa, e um enfermeiro, que acabara de fazer
os curativos, afastou a haste de onde pendia a última das quatro bolsas de
sangue, que lhe entrava pela veia do braço esquerdo.
Mônica
se aproximou e falou:
– Como
está se sentindo?
Com
alguma dificuldade ele respondeu:
–
Estou bem... acho que estou bem – falou tentando se levantar, mas foi contido
pela esposa.
– Você
ainda não pode ficar se mexendo demais. Daqui a pouco doutor Rafael vai passar
aqui. Ele disse que acha que você não deve ficar muito tempo no hospital. Está
só esperando os resultados de alguns exames.
O
efeito da medicação provocou uma confusão na cabeça de Janildo, então ele
comentou com Mônica:
– Como
eu vim parar aqui? Eu só me lembro que fui assaltado. E meu carro, onde está? O
filho da puta me furou. Ah, aquele negro safado me roubou!
Enquanto
falava, Janildo teve um acesso de tosse, e novamente foi contido pela esposa.
– Fica
calmo, amor, fica calmo. Não fala assim, porque fica parecendo preconceito.
Aliás, quem salvou sua vida foi justamente uma pessoa negra.
No
momento em que Mônica falava, o médico se aproximou. No bolso do jaleco extremamente
branco estava bordado “Dr. Rafael”.
– A
cirurgia foi um sucesso! Como se sente, meu rapaz?
Meio
sem jeito ao perceber que o médico era negro, Janildo sentiu vergonha, e ficou
pensando se o doutor havia ouvido seu desabafo sobre o negro e o assalto. Fez
apenas fez um sinal de positivo com o polegar, afirmando que estava bem, e
fechou os olhos, constrangido.
–
Ótimo! – Afirmou o doutor – Você me parece muito forte, está reagindo muito
bem. Agora precisa descansar mais um pouco. Para não forçar muito o local do
ferimento.
Após
falar isso, o médico chamou Mônica ao canto e disse que pela análise do
ferimento, no dia seguinte seu marido estaria de alta, mas que naquele momento
era melhor que ela e a filha o mais um pouco deixasse sozinho.
Mônica
agradeceu e foi junto com a filha, contar ao marido sobre a alta e se despedir.
Janildo deu um leve sorriso, já quase dormindo. Depois dormiu mesmo.
Naquele
momento, Bibito fazia uma verdadeira festa na favela do Muquiço. Chegou na birosca
do seu Alfredo, com marra de rico:
– Seu
Alfredo, me dá cinco hambúrguer daqueles da promoção! Completos, hein!
Pagou
hambúrguer com refresco de caju para o Matheus, Felipinho, Degê e para o
Cabeça.
– Tá
rico, hein Bibito, dinheiro pra caramba!
– Para
de zói grande Matheus!
Assim
que deixou os amigos, passou na padaria e comprou um sorvete de caixinha, e
botou no bolso. Mais à frente, tocou a campainha da casa da Beatriz, uma
amenina com quem ele trocava olhares à distância, entregou a ela o sorvete e
saiu correndo, avexado.
Depois
de repor o estoque de balas para vender no sábado, pensou em dar dinheiro para
a mãe, mas preferiu ir direto ao mercado. Comprou queijo, goiabada, biscoito, e
mais alguns supérfluos que nunca havia comprado. Comprou também dois pares de
chinelos, um para ele mesmo e outro para a mãe.
Sobre
a origem do dinheiro, Bibito só contou para a mãe. Jurema brigou com ele,
dizendo que não educou ele dessa forma. Mas bem que Jurema aceitou o presente
que o filho lhe deu.
No dia
seguinte, Mônica e a filha Isabela chegaram à clínica por volta das treze
horas. A mulher empurrava uma cadeira de rodas. Janildo já estava sentado na
cama, ansioso.
Achou
meio estranho ter que sentar na cadeira de rodas, mas não ofereceu resistência.
– O
fisioterapeuta disse que é só por poucos dias, porque você está proibido de
fazer esforço. Mas logo você vai voltar a sua vida normal.
Com a
ajuda de um enfermeiro, Janildo trocou a maca pela cadeira. Despediu-se da
equipe de enfermagem e saiu com a família.
Ao
deixarem a Casa de Saúde Santa Bárbara, Isabela se propôs a carregar o pai na cadeira,
enquanto que Mônica ficou à espreita de um taxi. Nesse momento, Janildo girou a
cabeça para o lado e reconheceu, encostado na grade do hospital, o menino negro
que retirou seus pertences na noite de sua quase morte.
– Foi
ele! Foi ele!
Assustada, Mônica olhou para o lado que o marido estava
apontando. Para espanto de Janildo, ela foi até o menino e os dois conversaram.
Logo, ela deu um beijo carinhoso na testa dele e retornou. Ao notar a cara de
espanto do marido, Mônica falou:
– Foi ele sim! Foi ele quem pegou tua carteira, tua
mochila, teu celular, teu cordão... inclusive foi do teu celular que ele ligou
pra mim e pro SAMU. Se não fosse ele, você não estaria aqui. E tem mais: eu dei
duzentos reais pra ele por agradecimento, e ele nem queria aceitar. Só aceitou depois
de muita insistência, Saiu dizendo que a mãe iria ficar feliz.
– Então, agora veio pedir mais dinheiro?
– Não. Ele veio saber como você estava, mas o barraram na
entrada.
Passou então um ônibus, tão devagar, que parecia estar com problemas no motor. Enquanto o ônibus passava lentamente, Janildo acompanhava com o olhar, orando para que alguém o visse. Mas o coletivo seguiu se arrastando, até parar no sinal vermelho, há cerca de cem metros; e com ele passou também a crença de que pudesse chegar algum socorro.
Silvino
Chagas dos Santos, 12 anos, conhecido na favela do Muquiço como Bibito, era
aquele tipo de jovem que, na sua área, todos gostavam, de graça, embora o
moleque estivesse sempre envolvido em traquinagens pelo bairro de Guadalupe.
Matava aula com frequência e ficava aprontando pelas ruas, apertava campainha
das casas e saía correndo, roubava goiaba, chutava bola nas vidraças, dava teco
de atiradeira nos passarinhos etc
Se lá
na favela do Muquiço, o menino era querido, quando ia para o Centro ou para a
zona sul, a situação modificava. Negro, favelado e malvestido, eram
características que assustavam as pessoas que não o conheciam. Contudo, mesmo
sabendo que era discriminado, Bibito encarava as situações de preconceito, com
ironia, talvez fosse sua forma de conviver com a indignação.
Se
acaso, num ônibus, percebesse que alguém estava com medo dele, esperava seu
olhar cruzar com o da pessoa e fazia “BUUU!”, depois caía na risada.
Estudava
pela manhã – quando ia à escola – e na parte da tarde vendia bala nos trens e
ônibus da cidade, mas quando a fiscalização apertava, guardava todo seu
material e saía pelas ruas em busca de ganhar qualquer coisa que o livrasse da
fome e da miséria.
Na
mais tenra idade, era responsável pela própria sobrevivência e de sua mãe,
Jurema.
O pai
estava preso por assalto à mão armada, fora reconhecido numa operação da PM
após um assalto à uma estação do Metrô, em Barros Filho. Não havia fotos, nem
qualquer prova, mas prevaleceu o a palavra do policial militar que o prendeu.
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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