Solo Infértil
de Selva
O
crioulo pode ser bom, há de ser bom amamentado, educado, regenerado pela
liberdade. O escravo é necessariamente mau e inimigo de seu senhor. (Manoel de
Macedo)
O negro tem qualquer coisa de mistura. Quando
não na comida, aparece na religião. Faz do sincretismo, mal entendido, uma
espécie de bússola da vida. No costumeiro Morro das Pedras, Dinah – esta que será mais um experimento fracassado dos
negreiros – importou para si o diploma das crendices dos antigos. Todo tipo de
charlatanismo e misticismo que o homem pode encontrar, ou na melhor das
hipóteses, desenhar. O triste é que para essa pobre, alimentada pelos chicotes
e tapas, creu nos bem dizeres e nos santos aquilo que não os imputava: curar o
mal do homem. Bem se sabe que entre o animal e o homem estão as linhas retas
dos jesuítas. Não houvesse isso, restaria à barbárie. Esta se faz presente no
Morro dos Pedras.
Os
cães não trariam tanta repulsa aos judeus quanto os residentes do Morro. Há nas
ruas o traço da desapropriação. Vê-se nos rostos gestos dos que não desdenham o
vômito dos cães. O céu coberto por urubus dá um tom de destaque. O cheiro do
lixo tomava o ar. A lama disputava com o massará a firmeza dos pés daquela
gente. Os porcos fuçavam os tambores de lixo. A calçada parecia ser o mais
firme traço de civilidade. Mas não demorava muito. Essa estava comprometida. A
merda vazava pela tampa da foça. Os meninos pisavam. A mãe gritara – Tira os pé
da merda, satanás! – Ali, na imundícia da bosta, os pés do menino sumiam em
meio à merda. Para qualquer um, o local seria nauseabundo. O menino com os pés
em meio à merda, com o nariz sujo e a barriga alta seria o alerta para
distância.
Mas
cabe falar de Dinah, a crioula. Não possuía cabelo crespo. Não tinha os santos
das macumbas, mas os visitava. Não rodava a baiana. Ora rodava. A negra era
desequilibrada do juízo. Os alelos não foram favoráveis. Marx também não. Muito
menos Rousseau. O homem é mau,
independente do meio. Dinah trocara a boneca pela panela. Os olhos carregam
aquela criança mal vivida. Trocou os pés pelas mãos. O vestido de jardineira
que carregara no corpo mostrava o poucos
momentos de vaidade. O batom desenhava a boca. Fizera o homem tal estrago.
Açoitaram a negra. Não com chicotes de mula, mas com os chicotes do tempo.
Esquartejaram-na. A menina não vivera. A jovem, que sonhara com o namorado,
fora enterrada com sete sacas de mandioca e uma panela cheia d’água. A fome
interrompera. A farinha cobria o prato. A casa de pau a pique não sustentava as
redes. A poeira do chão levantava. A
caranguejeira subia. Escondera-se nas palhas. Essas passagens surgiam na crioula.
Vultos. Assombros. Despertara ali, em meio à porta. Escutara o caminhão. Este
interrompera seus devaneios. Estacionado. O portão que ficara na garagem estava
a dez passos da porta que dava entrada para a sala. O suor descia pelo rosto. Empalidecia. Fizera
força com o corpo! Trancara os ferrolhos. Aguentava os socos na porta. Gritava
por socorro. Nem os porcos se mexiam. Os vizinhos, agarrados ao muro, viam o
velho Francisco chutando a porta. Socara. Mais socos surgiam. O ferrolho
rompera. Com a mão erguida, a negra à sua frente era o repouso da mão.
Atordoada. Gritos. Choro. Soluços. Os homens agarrados ao muro pulavam.
Sustentaram o velho. Dinah corria! Entrara pela cozinha. Fugia pelo quintal.
Subia no muro. Chica, a vizinha, estendera o braço para agarrá-la. Sustentara o
peso com o ombro. O rosto de Dinah tinha o relevo dos dedos. A assinatura da
barbárie.
Barbárie. Essa fiel companheira do dia a dia do
homem. Das noites e sonhos; do banho; do casamento; do sogro. Fosse o
charlatanismo o mal e o peso sobre o negro... Não... O crioulo. Esse adesivo: a
pele. Nela tem qualquer coisa de mistura. Nela repousa o chicote. A história. O
lamento. A compra e a venda. A caça e o caçador. Um pouco do Sexta-feira; Porto dos navios; dos negreiros, das Senzalas.
A pele carrega qualquer mistura. Não basta ser negra. Tem que ser preto. Preto Velho. Preto safado. Preto ladrão. Preto
vadio. A pele se tornou um solo. O repouso. O preconceito. Não apenas a
natureza, a bruta melanina viva que faz o negro brilhar. O jambo. Tem que haver
a barbárie. A pele carrega o Brasil dos coronéis. O Brasil república. Isabel
procurou seu exílio com uma pena áurea.
Fosse o charlatanismo o mal sobre o negro...
Não era.
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Bruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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