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Cine Virtual: Um Pequeno Milagre de Natal

Conto de David Ehrlich
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Sinopse: Henrique sempre quis ver neve, e por isso muda-se para a Alemanha. Logo se arrepende e quer voltar ao Brasil, armando um plano mirabolante para isso. Uma série de eventos e coincidências quase absurdas, porém, o farão sentir-se mais próximo de sua terra de uma forma que ele jamais imaginaria.



Um Pequeno Milagre de Natal
de David Ehrlich

            Sendo brasileiro, Henrique durante muitos anos pôde apenas sonhar com aqueles Natais de filmes, com os pés afundando na neve. Assim, embora dissesse aos outros algum motivo econômico qualquer, esse acabou sendo o principal motivo pelo qual viajou à Alemanha para ser funcionário em uma fábrica. E uma fábrica de brinquedos ainda, havia algo mais natalino que isso?

            A fábrica ficava em uma cidade que crescera devido à indústria, atraindo vários imigrantes, porém continuava distante de tudo na região dos Alpes, tornando quase certa a presença de neve em dezembro. O entusiasmo de Henrique, porém, durou apenas até o termômetro registrar 10 graus negativos. A partir daí, ele decidiu que usaria quaisquer meios necessários para ascender na fábrica e ganhar dinheiro o suficiente para voltar ao verão brasileiro.

            Sendo também cinéfilo, Henrique logo se lembrou de um filme antigo que ele assistira e resolveu usar o mesmo método para ser promovido: deixar que os executivos da fábrica usassem seu apartamento para encontros amorosos. E para sua surpresa, o plano deu muito certo... Por apenas alguns meses. Afinal, no filme que assistira não havia Fräulein Müller. Henrique entendia que o que fazia estava longe dos padrões morais adequados, mas Fräulein Müller era provavelmente a mulher mais “caxias” que ele já vira. Justificar que ele só estava fazendo isso para poder voltar para casa com ela era inútil, e ela prontamente tentou denunciar tal conduta às autoridades dentro da empresa... Mas quais? Todos os executivos estavam se aproveitando do apartamento de Henrique... Com exceção de um: o presidente da fábrica, Herr Schmidt. Falar qualquer coisa a Herr Schmidt, porém, era impossível, pois embora seu rosto fosse visto por todos em um retrato na porta da fábrica, ninguém o via pessoalmente há anos, o homem tendo se tornado um estranho ermitão. Os poucos que conseguiam falar com ele, mesmo sem vê-lo, diziam que ele era tão rabugento que era difícil imaginá-lo como o senhor sorridente do retrato e de antigos comerciais em que ele falava sobre trazer alegria a crianças. Ainda assim, Fräulein Müller enviou-lhe uma carta sobre o que acontecia na fábrica, esperando que ele ao menos lesse.

            Na prática, pelo resto do ano nada mudou no ambiente de trabalho. Mas a relação entre Henrique e Fräulein Müller certamente era tensa, e ambos não escondiam que mal se suportavam. Cada dia em que Henrique via a cara daquela mulher era um dia em que sua vontade de ir embora da Alemanha aumentava. Começou então a interagir na internet em um site voltado para brasileiros no país, que lá podiam relatar anonimamente suas experiências.

            Uma brasileira em especial contava experiências com as quais Henrique se comovia: crescera falando alemão em casa, por isso viera à Alemanha com um senso de superioridade, recusando-se a falar português e inclusive negando veementemente que era brasileira. Convencia-se que brasileiros eram malandros e irresponsáveis, e, portanto, tentara ser tão “alemã” quanto possível. Após alguns anos assim, porém, percebia agora que tal atitude não a integrara à comunidade alemã; na verdade, só a tornara mais solitária. Havia malandragem e irresponsabilidade em todo lugar, e os poucos brasileiros da sua cidade que conhecia por obrigação devido ao trabalho a odiavam. Sentia falta de calor humano, de alguém com quem pudesse contar piadas e entende-las – especialmente nessa época do ano, às vésperas do Natal.

            Obviamente, Henrique não foi o único brasileiro no site a convidá-la para um encontro. Não foi sequer o único de sua cidade. Mas foi o que soube fazer o convite mais engraçado. Marcaram então de ir ao cinema, assistir mais uma de tantas adaptações de “Um Conto de Natal” de Charles Dickens.

            Quem era afinal a moça com a qual Henrique marcou de se encontrar, creio que não lhes preciso dizer por ser um clichê já tão comum na ficção (e só um pouco menos comum na vida real). O que talvez lhes surpreenda, porém, é a forma como ambos vieram a descobrir a real identidade um do outro.

            Começou com Henrique se atrasando para o encontro. Não por ser desorganizado, pois seu atraso foi inteiramente proposital: se ela queria reatar seus laços com o Brasil e ter uma experiência com um brasileiro, Henrique lhe entregaria o pacote completo – incluindo um “educado” atraso de dez minutos.

            Se ele não tivesse se atrasado, porém, o destino dos dois teria talvez sido diferente. Ou talvez não. Pois ao se aproximar do cinema, notou que não havia pessoas esperando para entrar, e o lugar estava silencioso demais. Henrique resolveu entrar, mas com cautela. As portas das salas de exibição estavam todas fechadas, embora não trancadas. Em uma, porém, ouvia-se um pouco de barulho. Era justamente a sala onde seria exibido “Um Conto de Natal”. Discretamente, Henrique abriu uma fresta para ver o que acontecia.

            Um homem estava armado, com espectadores e funcionários sentados de cabeça abaixada. De pé embaixo da telona, o homem apontava sua arma de um lado para outro. Era já razoavelmente velho, e sua barba o fazia parecer mais velho ainda. Mas mesmo de longe Henrique reconheceu aquele nariz e aqueles olhos, pois os via todo dia na fábrica: se não era o Herr Schmidt!

            O sensato seria Henrique ter fechado a porta e chamado a polícia. Mas em uma situação dessas, nem sempre fazemos a coisa sensata. Afinal, não é todo dia que em pleno Natal se vê um grupo de pessoas sendo feitas de refém por um velhinho armado que é tão conhecido e, ao mesmo tempo, desconhecido por todos em sua cidade, quase como se fosse o próprio Papai Noel. Assim, Henrique pôde apenas ficar parado, em choque, até Herr Schmidt notar a porta entreaberta e apontar-lhe a arma.

            - Você! – Herr Schmidt gritou – Quem é você?!

            - Eu... Eu... – Henrique estava tão confuso que respondia em português.

            - Entra aqui! Não grite, e nem tente pegar o celular. Não há ninguém ferido, e se todos se comportarem continuará não havendo. Então feche a porta, arrume um lugar para sentar, e vamos aproveitar juntos este Natal!

            Henrique o obedeceu, mas ainda não acreditava direito na situação em que se encontrava, portanto arriscou:

            - O senhor é Herr Schmidt, estou correto? – Perguntou em alemão que, embora correto, falava com forte sotaque.

            - Apenas faça o que eu disse!

            - Mas estou fazendo! Fechei a porta, não gritei, não peguei o celular e estou me dirigindo a uma poltrona. Estou fazendo o que você disse para fazer.

            Herr Schmidt ficou atônito por alguns segundos, e então estourou em uma gargalhada, que, apesar da aparência, não parecia a de um bom velhinho.

            - Gostei da sua lógica, rapaz! Seu sotaque não é daqui, quem é você?

            - Meu nome é Henrique. Venho do Brasil.

            - Você! – Herr Schmidt mudou para um tom mais agressivo – Então você que é o tal Henrique brasileiro!

            E dizendo isso, tirou do bolso um papel dobrado e começou a lê-lo em voz alta. Henrique imediatamente a reconheceu: era a carta de reclamação de Fräulein Müller! Será que era por isso que Herr Schmidt reaparecera?

            - Não é possível... – Henrique disse em voz baixa.

            - Não é possível... – Ouviu alguém dizendo perto dele. Virou a cabeça e, para sua surpresa, eis que Fräulein Müller também estava no cinema!

            - O que você está fazendo aqui?! – Henrique perguntou. Não pôde deixar de sentir raiva e achar que aquela situação toda era culpa dela.

            Herr Schmidt parou de ler a carta ao notar a tensão que se formava.

            - Vocês se conhecem? – Ele perguntou, mas o olhar de Henrique logo respondeu-lhe a pergunta – Não me diga que esta é Fräulein Müller! – Nova gargalhada – Este sem dúvida é um Natal como nunca vi!

            Sem qualquer aviso, avançou em direção a Fräulein Müller e apontou a arma contra ela, a queima-roupa.

            - Se quiser, posso matá-la aqui mesmo. Quer?

            - Não! – Henrique gritou, e forma tão espontânea que a até a própria Fräulein Müller surpreendeu-se.

            - Não? Quer nem mesmo que eu a fira? – Apontou então para o pé dela.

            - Não! Não quero saber dela, mas não quero que ela se machuque! E não quero derramamento de sangue hoje, deveria estar num encontro...

            - É mesmo? Vocês jovens... Ela está aqui?

            - Não sei, não a vi em pessoa. Conhecemo-nos anonimamente em um...

            - Site de internet... – Fräulein Müller completou, pronunciando devagar cada sílaba. O queixo de ambos caiu em compreensão.

            - Você... – Henrique não sabia nem o que queria falar.

            - Meu primeiro nome é Margarete. – Ela respondeu em português.

            - Como é que não suspeitei?!

            - Você não queria saber de mim. – Margarete encolheu os ombros.

            Herr Schmidt gargalhou. Gargalhou muito. E então começou a chorar. Largou a arma no chão. Todos nos cinema estavam confusos demais para pegar ou a arma ou imobilizar o velho.

            - Era esse o tipo de milagre natalino que eu queria ver. – Soluçou – Desculpe a todos. Não sei direito porque fiz isso tudo. Anos atrás minha esposa me traiu com o diretor do Departamento de Pessoal da minha fábrica. Não só me traiu, mas me trocou por ele, bem no Natal. Sempre disputamos entre nós, então acho que fazia sentido ele me roubar a esposa. Se ao menos não me tivesse roubado também a vontade de viver. Não fiz nenhum escândalo a respeito, mas também não consegui mais sair de casa nem para trabalhar, deixava tudo a cargo dos meus executivos. Estava tão desesperado e tão frustrado que comecei a desejar nunca ter nascido. E aí recebo esta carta, e percebo que todo esse sofrimento... Foi por nada. Porque ao final meu rival estava traindo minha esposa com outra. E usando o seu apartamento para isso, Henrique. Então acho que simplesmente quis estragar o Natal de alguém, como o meu foi estragado... Mas não adianta. Essa é mesmo uma época de coisas imprevisíveis – Apontou para Henrique e Margarete.

            Ninguém acabou chamando a polícia. Herr Schmidt acabou inclusive assistindo “Um Conto de Natal” com seus ex-reféns. E ao final do filme, apesar do constrangimento e de até um dia antes sequer conseguirem olhar um para a cara do outro, Henrique e Margarete estavam de mãos dadas.

Conto escrito por
David Ehrlich

Produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


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