3x03 - O Vigário
de Math Soraji
Sou Padre Francisco e hoje visto
um uniforme que não escolhi. Foi-me imposto pela condição atual. O corte me cai
bem. A cor chamativa, porém - laranja - se contrapõe ao antigo preto, e não tem
a mesmo significado do traje que eu costumava vestir para atrair as mulheres
que me rodeavam, ansiosas para confessar seus pecados e serem redimidas pelos
conselhos e penitências por mim sugeridos. Iam e voltavam como se culpa não
houvesse pela culpa de pecar. Eu fui o instrumento de transição na vida
daquelas criaturas. Não me importou a idade, o nível social ou a cor. Todas
foram tratadas da mesma forma - indistintamente.
Preso na penitenciária de
Unaí, na região noroeste de Minas Gerais, sinto-me impotente para realizar o
mais recente objetivo de vida - morrer! Suicídio está fora de cogitação. Passar
tempo no umbral não me apetece - quero ser morto! Considero incoerente a
legislação que não penaliza assassinos confessos com a pena de morte. Houvesse
essa possibilidade eu aguardaria. Conformaria-me com a esperança de receber a
visita da morte com data marcada - a critério de um juiz. Morte justa e
tranquila.
Fui sentenciado a quarenta e
cinco anos, três meses e dois dias de prisão em regime fechado. Os dois dias me
intrigaram! Ouvi do juiz - fazer o que. Entendi, nas várias audiências, que não
há legislação específica para punir criminosos em série. Julgam atirando no escuro
- defesa e acusação - baseado em crimes cometidos em outros países. Acham que
assassinos em série se igualam e agem - branco, negro, amarelo, pobre, nem
sempre pobre, no hemisfério sul ou no hemisfério norte - com as mesmas
motivações. Todos igualmente classificados como psicopatas.
Preciso encontrar uma forma
de ser morto - assassinado! Tenho me esforçado para provocar os colegas mais
agressivos - sem sucesso. Não consigo despertar raiva - me ignoram!
Sei que as tentativas para
redução da pena serão aplicadas por força da lei - quer eu concorde ou não. Não
quero viver, muito menos sair em liberdade. Como fui considerado um psicopata
com Transtorno Antissocial, me mantém isolado e quase sem contato com as outras
centenas de presos que aqui cumprem pena. Situação que reduz minhas chances de
atingir o objetivo.
Os livros sobre crimes
praticados por assassinos em série foram se somando - continuadamente - à minha
coleção. Garimpados em livrarias e sebos das cidades onde morei. Eu os lia e
relia. Avaliava, com muito critério, os perfis e os descuidos no modus operandi
dos presos e condenados. Percebi que o descuido é que permite à polícia
desvendar, encontrar e prender.
Criei um modo próprio de
operar. Construí minha cartilha. Considerei inúmeros padrões forenses de
investigação, cenários de crimes, vestígios comprometedores e até ocultação de
cadáver. Imaginei ter cercado todas as possíveis variáveis para me tornar
invisível à lei. Tudo baseado nas narrativas de casos efetivos que encontrei
nas crônicas policiais.
Era um final de tarde, e o
sol se recolhia no horizonte formatado pelas montanhas logo após a margem
oposta do largo rio. Prenuncio de uma noite de tranquilidade e paz como as
tantas outras que eu tinha visto naquele verão. Cumpridas minhas
responsabilidades como vigário da Igreja Católica Central eu caminhava pela rua
em direção à casa paroquial - meu endereço oficial - nas proximidades do cais
no rio São Francisco - o Velho Chico.
De repente fui atingido por
uma chicotada - um pé de vento - que me jogou contra a árvore plantada na
calçada. Atordoado, agarrei-me ao tronco evitando ser arrastado para uma
cratera que se formou ao meu lado. Cessado o tremor abri os olhos, e ainda
atordoado pela pancada, me deparei com um cenário típico dos filmes de suspense
e de terror. Casas e prédios desmoronados. Crateras enormes no chão - valetas
profundas. Água jorrando dos canos arrebentados. Algumas árvores, que não
conseguiram se manter em pé, dificultavam a passagem dos veículos que ainda
tinham alguma condição de dirigibilidade. O poste do semáforo estava no chão -
a ferragem retorcida - e eu não conseguia saber se estava aberto ou fechado,
sou daltônico, mas conheço a ordem das cores. Os fios elétricos faiscavam no
chão molhado. Precisava ter cuidado ou seria eletrocutado.
Senti arrepio e secura na boca ao lembrar que na cartilha eu não
havia previsto este cenário, que acredito ser menos provável de ocorrer do que
acertar na mega sena, com uma única aposta de seis números. Um tremor de terra
de 4,9 graus na escala Richter - um terremoto - nos cafundós de uma cidade
mineira.
Tenho de chegar em casa com
urgência, antes que alguém por lá apareça e faça descobertas inapropriadas -
pensei.
E chegaram! Alguns minutos
após eu ter a visão; dos escombros do que antes fora minha casa, dos móveis e
utensílios destruídos e de quatro estranhos objetos, embalados com plástico
preto e amarrados com arame de construção, que pendiam do telhado inclinado,
que se mantinha apoiado na única parede que resistiu ao abalo. Eram de tamanho
considerável e todos muito semelhantes!
Ambulâncias, carros dos
bombeiros e da polícia corriam pela cidade prestando os primeiros socorros.
A casa isolada na rua - sem
vizinhos - chamou a atenção de curiosos e dos policiais que patrulhavam para
evitar saques nas propriedades mais vulneráveis. Não era a situação da minha
casa, mas os volumosos objetos pretos foram chamariz para os treinados olhos
dos policiais.
Simultaneamente à abertura do
primeiro embrulho recebi um par de algemas e a famosa frase que eu só tinha
ouvido nos filmes americanos - Você tem o direito de ficar calado. Tudo o
que disser ......
Aos sete anos de idade perdi
meu pai. Pedro morreu de infecção generalizada após complicações causadas por
algum tipo de “vírus ou bactéria” - não esclarecido - decorrente de “alimentação
inapropriada”, ou seja, laudo feito nas coxas! Não chorei - não fiquei triste -
todos ficam. Menos eu! Minha mãe Marta se livrou - libertou. Sei que ela o amou
- no passado.
Por mais que eu tente, minha
memória não consegue ir além das lembranças vividas a partir dos cinco anos.
Minha mãe era uma linda mulher, com rosto e corpo desenhados por pinceladas de
retratista. Elegante e educada. Seria musa inspiradora para qualquer artista
motivado a compor um poema, uma pintura, uma escultura ou fotografia artística
- uma obra de arte.
Às quintas, sextas e sábados
à noite, saíamos os três para um passeio - justificava meu pai - e deixávamos
minha mãe na cidade. Sempre no mesmo lugar - uma casa com letreiro luminoso que
eu não conseguia identificar - não sabia ler - perguntava para meu pai, mas ele
desconversava com uma resposta qualquer. Voltávamos para casa - meu pai e eu -
assistíamos televisão - jogos de futebol, filmes, desenhos. Saíamos novamente -
sempre depois de ele receber um telefonema - como um código - e trazíamos minha
mãe para casa.
Minha mãe saía com roupas
brilhantes, justas e curtas, perfume de cheiro agradável e sapatos de salto
alto. Chiquérrima! Na volta o cheiro era outro - de perfume diferente misturado
com cigarro e bebida. Chegando em casa eu ia para meu quarto - fingia dormir -
e esperava que eles se recolhessem. Quando ouvia o barulho da porta fechada eu
ia, na ponta dos pés, e espiava pelo buraco da fechadura - não tinha chave -
que me permitia ter ampla visão do quarto e da cama. Meu pai sentava em uma
pequena poltrona no canto, e enquanto fumava não tirava os olhos de minha mãe,
tirando a roupa - peça por peça - movimentando o corpo vagarosamente, dançando
em câmera lenta, até ficar nua. Eu analisava o corpo da minha mãe - era diferente
do meu e do meu pai! Ela tinha peitos grandes - redondos - diferentes dos
nossos e não tinha pinto como nós! Meu pai tirava a roupa e os dois deitavam na
cama. Ela abria as pernas e ele deitava por cima, puxava os cabelos, dava uns
tapas no rosto dela e mexia o corpo para cima e para baixo. Ele pedia para ela trepar como trepava com os
homens da boate - até gozarem. Ajeitavam se para dormir, e eu via, iluminada
pela luz tênue do abajur, que chorava - silenciosamente. Uma noite me descuidei
e fui surpreendido pelo meu pai. Corto teu pinto se encontrar xeretando
novamente - disse ele raivoso.
Boate! Casa-boate. A casa com
o letreiro luminoso chamava boate!
Passado o luto, e enquanto eu
crescia, minha mãe procurava uma nova companhia. Ela saía vez ou outra - à
noite - de taxi. Não sei se ia para o mesmo lugar - a casa-boate - nunca
descobri. Nessas noites minha avó dormia em casa.
Demorou algum tempo e casou -
não casou - ajuntou! Ela tinha um marido ou namorado e eu pai - padrasto - sei
lá. Que seja; marido e pai.
Ela não mais saiu à noite.
Ele saía, as quintas, sextas e sábados! Aonde ia ou o que fazia, eu não sabia -
nem desconfiava. Discutiam muito. Eu imaginava que ela não concordava com as
saídas. Minha avó nunca mais dormiu em casa.
Passei a ficar atento aos
movimentos da casa. Ele tinha uma maleta - como as usadas pelos executivos -
que carregava nas saídas noturnas. Em casa escondia em cima do armário, no
quarto do casal. Era uma maleta tipo 007 forrada com couro preto lustroso - com
segredo. Eu era alucinado pelo enigma da maleta, escondia dinheiro -
imaginava. Eu tentava abrir alinhando os
números aleatoriamente - sem sucesso. Finalmente consegui, ou melhor, ele
esqueceu de girar os números. Com curiosidade abri, mas fui surpreendido. A
surra foi tamanha que fui parar no Pronto Socorro. Enquanto recebia remédios e
curativos, minha mãe conseguiu - com tato e experiência - responder as
perguntas do atendente, que procurava por indícios de agressão doméstica.
Prometi ao atendente me comportar, não subir em árvores e usar capacete e
joelheiras quando fosse andar de bicicleta.
A visão daquele revólver na
maleta não saia da minha cabeça. Sonhava com ele - dormindo e acordado! Para
que servia! Com certeza para cometer assaltos - levava à noite. Ou para se
defender. De quem - por que! Tinha inimigos - vendia droga! Na maleta só tinha
o revólver!
Um dia, com alguma coragem,
perguntei a minha mãe qual era o trabalho dele. Como não queria dar muita
explicação respondeu; ele é Segurança em uma boate. Dúvida esclarecida -
Segurança carrega revolver. Segurança na mesma casa-boate onde meu pai levava
minha mãe - onde ela trepava com outros homens e depois com meu pai - em casa! O
Segurança - da casa-boate - já trepava com minha mãe na casa-boate - e agora em
casa! Eu não tinha idade para entender tudo aquilo.
Completados quatorze anos, e
acompanhado por dois colegas da escola, eu passei a frequentar as palestras da
Opus Dei. Fiz retiros espirituais e recolhimentos mensais. O convívio e as
conversas com os sacerdotes me motivaram a cursar filosofia e teologia e me
tornar padre.
Terminei o ensino médio e, a
contragosto de minha mãe, ingressei no Seminário. Após o período Propedêutico,
fui avaliado e confirmado como vocacionalmente apto para prosseguir os estudos.
Os tempos das férias eram
absorvidos por estudos paralelos que, entendia eu, seriam úteis para
complementar o currículo formal.
Numa das férias fui visitar
minha mãe. Encontrei uma mulher triste - sem vida - com a aura escura e rosto
marcado por rugas profundas. Sentamo-nos para tomar o café, que ela havia
acabado de coar, e subitamente, como se estivesse num confessionário,
relatou-me o quanto sofria nas mãos do marido que além das agressões físicas, a
vendia para encontros amorosos - em casa - com homens dos bares que
frequentava.
Enquanto eu tentava assimilar
aquele relato escabroso, ela disse que precisava me contar um segredo que
guardava para si, mas que a penalizava e contribuía para o sofrimento e a
tristeza.
Eu matei meu primeiro marido
- seu pai! Disse ela.
Como! Meu pai morreu devido a
infecção generalizada! Sim - disse - foi a causa da morte colocada no laudo,
mas as complicações e a infecção foram provocadas pela alimentação envenenada
que eu lhe dei por algum tempo. Eu não aguentava mais tê-lo como cafetão me
prostituindo na boate. Lembra dos passeios das quintas, sextas e sábados à
noite.
Não estava nos planos dele me
encontrar em casa. Desconfiado de que algo pudesse ter sido revelado por minha
mãe, visivelmente amedrontada e com olhos inchados pelo choro, saiu sem dizer
uma palavra sequer - não me cumprimentou.
Refleti muito sobre tudo que
havia se passado com minha mãe, desde meu nascimento até a revelação de agora e
- friamente - contrariando os princípios religiosos, já enraizados na minha
formação de caráter, decidi que, além de encobrir o crime e guardar o segredo,
eu tomaria as providências para assegurar que seu sofrimento tivesse um fim.
Antes de voltar para o Seminário eu só precisava do seu aval e da receita
utilizada.
Os quatro objetos foram
desembalados e revelaram a última etapa do que seria o crime perfeito praticado
por um serial killer - a ocultação do cadáver. Sem cadáver não há prova do
crime. No meu caso, quase perfeito - denunciado por um terremoto.
Além do Transtorno
Antissocial - conclusão do psiquiatra que traçou meu perfil - tenho a mania de
ser meticuloso em tudo que faço. Cada objeto continha uma ficha com os dados
pessoais, a biografia sintetizada e a descrição roteirizada dos encontros e o
ato que culminou com o desfecho. O último ato corroborado com fotos. Essa mania
facilitou sobremaneira e acelerou o trabalho pericial. O material foi juntado -
como prova - ao processo e exposto ao júri popular que, por unanimidade, me
condenou.
Madame X, Belle de Jour, Morticia
e Butterfly foram os codinomes que dei a quatro entre tantas outras mulheres
que me procuravam para confissão. Assim eu as personifiquei após ter ouvido
seus dramas - no confessionário. Todas casadas, idades entre trinta e quarenta
e cinco anos, infelizes, infiéis ou não, mas invariavelmente vítimas de
violência doméstica - psicológica, sexual ou física.
Madame X - era estuprada
continuadamente e explorada pelo marido que a obrigava a ter encontros sexuais
com homens aliciados por ele. Como vingança tinha um jovem estudante como
amante regular que elevava sua estima e a satisfazia sexualmente. O marido foi
considerado desaparecido num acidente de barco no rio São Francisco - seu corpo
nunca foi encontrado.
Belle de Jour - foi
violentada pelo pai dos doze aos quinze anos.
O marido, por força do trabalho viajava constantemente, e tinha várias
comprovadas amantes. Ele reclamava do desempenho sexual de Belle de Jour - dizia
que era frígida. Para se vingar, ela passou a frequentar - as quartas-feiras à
tarde - uma casa de massagem de alto padrão numa cidade próxima - onde se
encontrava com o amante fixo. O marido foi considerado desaparecido após viajar
a trabalho e nunca mais voltar - imaginava ter fugido com uma de suas amantes.
Morticia - foi gótica na
juventude. Andava com um grupo que usava roupas pretas, maquiagem assustadora,
piercings, acessórios com correntes pesadas - estilo punk. Casou com um amigo
do grupo. Após casarem, iniciaram-se no universo do sadomasoquismo frequentando
bares e boates BDSM. Uma mudança radical do marido a transformou em sua
“escrava exclusiva”. Os fetiches iam desde mantê-la acorrentada dentro de uma
casinha de cachorro, comendo em potes de ração, até fazer sexo com os pés e
mãos atados e suspensa por cordas presa no teto do quarto. Era viciado em heroína. Ela ia à igreja nas
tardes de sexta-feira - onde relatava seu drama. Morticia não teve filhos nem
amante. O marido foi considerado desaparecido após dois anos - juntou-se a um
grupo de drogados que viajava sem destino.
Butterfly - teve experiências
hetero e homoafetivas antes do casamento. Casou com o executivo da empresa onde
trabalhava e a quem era subordinada. Anos após o casamento e com dois filhos, o
marido - antes amoroso e gentil - tornou-se extremamente agressivo. Proibiu que
a família tivesse contato com outros familiares. Nos repentes de raiva as
agressões físicas eram inevitáveis, e as ameaças a impediam de denunciá-lo. Nos
seus relatos dizia suspeitar de que a súbita mudança do marido encobria um
relacionamento homoafetivo - conseguiu comprovar - ele tinha um amante. Ela
encontrou consolo nos braços de uma antiga amiga - que fora sua namorada. O
marido foi considerado desaparecido, após demitir-se por carta endereçada ao
presidente da empresa, alegando que ia “tirar um tempo sabático”
Ao ser perguntado pelo juiz
onde havia conseguido o revólver usado para cometer os crimes - respondi; na
maleta Meritíssimo!
Os corpos considerados
desaparecidos foram finalmente encontrados e sepultados.
O complexo de castração
adquirido na infância me manteve celibato - razão natural para me tornar padre
católico.
Uma terapia, no momento adequado, poderia ter dado outro rumo ao meu destino - um machista - como os que matei - talvez!
Bruno Olsen
Cristina Ravela
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