O Amigo da Onça
de Roseli Biage
A chave não deslizava na porta da frente da casa. Elisa tentava em vão abrir a fechadura. Ao retornar ao carro, distante três casas, notou que era observada. Atrapalhada, depois de um dia intenso de trabalho, bateu a porta do carro sem pegar sua bolsa, apenas com o molho de chaves na mão, esquecendo-se também da chave do carro na ignição.
Sem conseguir abrir a porta da frente, retorna para pegar a bolsa. O carro não abria, há dias que a trave elétrica travava a porta a qualquer sopro. Ela insistia, mas o carro havia travado por dentro com sua bolsa e a chave na ignição. Bateu na porta, depois chutou o carro e levou a mão à cabeça. Gritou a cada chute e depois se deu por vencida.
Nada podia ser pior...
Desistindo do carro, volta para a entrada da casa com o molho de chaves e insiste com a fechadura.
Respira... Vê sua gata, que se assusta e segue para o corredor de trás da casa. Tão bêbada para dar dois passos, pragueja por ter colocado o nome da gata de Mata Hari. Ao notar o jardim, acha a flor murcha em comparação à daquela manhã, devia ser pelo adiantado da hora e a brisa noturna. Retornou para a rua e - sem se dar conta -, tromba com um vizinho e o franzino cãozinho. Ela sempre o via pela janela, parecia mais gordo. Sorriu para ele, elogiou o cachorro raquítico.
O homem sem falar uma palavra indicou a fechadura e ela aparentando cordialidade, embora estivesse contrariada pela abordagem, retribuiu o gesto e balançou a cabeça confirmando. Se ele entendeu, não sabia, mas na troca de gestos, o homem continuou o passeio com o cão e ela, ainda muito alta pela bebida, arrancava os dois saltos plantados na terra do jardim disfarçando a total embriagues.
Então ela se lembrou do carro e resolveu contornar até a parte de trás da casa para tentar abrir a porta da cozinha e resgatar a chave reserva do carro. Por um momento, se não fosse a sua gata fujona, não notaria que a porta estava precisando de uma boa demão de tinta. Buscou ali no seu monte a chave. De primeira conseguiu, esse tipo de porta era igual ao de sua casa de infância, qualquer chave com um solavanco e ‘voilá’!
A chave do carro parecia diferente, mas estava ali. Abriu a porta da frente por dentro e logo depois chutou o alarme, blasfemando porque só disparava quando não tinha necessidade.
Já do lado de fora, lembrou-se do celular no bolso vibrando. Teve a ideia de chamar a seguradora. Ligou num diálogo quase gutural com a atendente, enquanto o alarme continuava soando, agora um pouco mais baixo, e retornou para dentro da casa. A todo o momento, ao abrir a janela da sala, sentia a presença de olhares da vizinhança e de mulheres... Foi até a cozinha e dali da janela apostava ter visto o vulto de outra vizinha com uma risadinha suspeita nos lábios. O banheiro estava trancado, mas subiu sem se perguntar o porquê disso, reconheceu que realmente não estava em condições... E correu para o banheiro do piso superior.
O homem do seguro enfim chegou, abriu a porta do carro e lhe entregou prontamente uma cópia reserva feita ali mesmo. Antes de partir, o homem se voltou para ela para que assinasse o documento. Ela estranhou os dados, mas seu nome estava correto e firmou o papel, colocando em seguida a cópia em seu bolso. Estranhava também o repentino incômodo da vizinha que insistia em observá-la.
Estacionou o carro no espaço ao lado do jardim e pensou que não tardaria a arrumar o jardim, dar uma demão de tinta na porta e consertar o vidro por onde o gato havia fugido.
Que dia! Cheio de enganos. Recapitulou o famigerado expediente, após sorver um bom gole no vinho que nem sabia que existia em casa, espalhada no sofá que, pela primeira vez, não fedia a gato e continuou a repetir:..
Que dia! O local do evento havia inundado, o cliente se equivocado de festa, seu chefe confundiu os produtos com o da concorrência e até mesmo os sinais de trânsito estavam oscilantes, tendo em vista o temporal da noite anterior. O que valeu foi o happy hour depois do expediente.
- Ulalá!
Numa piscada com sono já chegando achou ter visto o semblante da vizinha numa foto onde estava a sua vó... Estava meio alta... Então lembrou-se de dias atrás ouvir a tal vizinha que se parecia com o retrato da sua vó na parede do corredor. Jurava que a foto era preto e branca.
O que era mesmo? Ah, a vizinha apressada para uma viagem gritava para o marido que tivesse juízo, numa louca manobra de marcha-ré com malas e filhos no carro, enquanto Eliza se desvencilhava das investidas do vizinho na calçada, em seu fitness matinal.
Absorta em pensamentos, não viu, acidentalmente, a bebida escorrer ao depositar a taça na mesa... Tenta conter o líquido enquanto corre para a área de serviço. Notou o vidro intacto e gritou aleluia! Até que enfim o vidraceiro apareceu por lá e consertou o vidro pelo lado externo da casa.
Novamente reclamou da porta do lavabo trancada, teria que procurar a chave. Correu da área com o pano para secar o protocolo da seguradora e já ia depositando o papel na mesa quando lê assustada novamente o endereço. Corre para a porta de saída, abre e dá de cara com um estranho empunhando a chave na porta. Ela se assusta. Ele se assusta. Ela fecha a porta. O homem esmurra a porta e trava-se um silêncio. Depois, ela nada viu.
Horas depois na delegacia, como nada mais é como era, Elisa já consciente deu a seguinte declaração:
“Parei meu carro em frente a casa, porque esperava um guincho. Como vi o jardim destruído por pegadas, imaginei que havia bandidos em seu interior. Sabia que a dona da casa havia viajado e seu marido estava trabalhando, como bem me avisou o vizinho do cão bonachudo, minutos antes... Vocês poderão confirmar pelas câmeras de segurança.
Bom, contornei a casa para resgatar minha gata que apareceu abruptamente no local e não me contive ao ver a porta da cozinha arrombada. Notei a preocupação das vizinhas da frente e a outra que se precipitou até a janela da cozinha. Então, entrei. O alarme disparado suspeitamente tinha um fio da caixa que vinha do cômodo trancado. Ao retornar do banheiro do andar de cima com algo para arrombar a porta fechada e silenciar o som, notei o vulto de um homem forçando a porta da frente. Sem saber o que fazer ... E imaginando ser o bandido, bati a portar para acionar a polícia, mas algo me golpeou por trás.
O vizinho muito constrangido se desculpou, pois não havia reconhecido a vizinha e a golpeou por trás. Agradeceu a sua heroína e por ter tido a coragem de entrar na casa.
Assegurou que o ladrão não voltaria. Levando todos a gargalhadas, ele afirmou que o ladrão não passava de um pé de chinelo, porque com uma safra tão boa de vinhos importados de sua coleção, ele abriu justamente um vinho desses fajutos que a esposa havia ganhado dias antes em um supermercado. O pobre não levou um sequer da safra francesa e italiana que custavam os tubos, além dos raros... Estes, então, uma fortuna inestimável. Ela só conseguiu responder, “que bom, não é!”
Tudo resolvido e aparentando total sobriedade sobre as informações e os diversos equívocos do dia, Elisa foi resgatada pelo mesmo amigo e parceiro de porre da noite anterior, na porta da delegacia. Estava feliz por sua astúcia narrativa e aliviada por sair ilesa da situação...
Na saída, porém, e na frente de todos da delegacia, o amigo da noitada anterior ainda muito animado se volta para ela e reitera que daquela vez anotaria o endereço certo antes de ‘caírem na esbornia’ para não deixá-la - equivocadamente - quatro casas a frente.
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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