3x06 - Canivete de Bolso
de Cupertino Freitas
Duas vezes por mês eu ia ao Doce
Vida, bar onde bebiam os ricos da cidade. Era só receber o dinheiro da quinzena
e eu ia lá, fingir que era um deles. Depois de duas horas de conversa fiada e
seis ou sete doses de uísque, eu voltava para a minha vidinha de merda com uma
mulher que eu desprezava e dois filhos que eu nunca quis ter. Eu tinha chegado
ao meu limite, estava resolvido a largar tudo e ir embora, faltava só a
oportunidade de arrumar um dinheiro que me permitisse dar essa guinada. Naquela
noite a chance veio.
Tony, o filho do prefeito, de vez em
quando aparecia no Doce Vida para tomar uns tragos. Entre goles de puro malte
dezoito anos, escutei sua conversa exaltada com um amigo sobre um artigo no
Correio da Serra que dizia ser o pai dele, candidato à reeleição, um corrupto
incorrigível. Já meio alto, intrometi-me no papo e disse que eu era primo do
articulista, Nazareno Gouveia. E que o detestava.
Eu sempre tive inveja de Nazareno.
Desde a infância. Éramos colegas de escola. Tudo o que ele tinha de sobra me
faltava: desenvoltura, inteligência, dedicação. Enquanto ele passava as tardes
estudando, eu ficava grudado na tevê, vendo enlatados americanos. Quando
recebíamos as notas das provas, e eu o via tirando notas altas, minha vontade
era de avançar em sua jugular. Eu torcia com todas as minhas forças para que
ele se desse mal de alguma forma. Isso nunca acontecia.
Quando concluímos o ensino médio,
Nazareno foi para o Rio de Janeiro cursar Direito. Voltou oito anos depois,
abriu um escritório num dos melhores prédios da cidade e comprou uma chácara.
Logo foi chamado para escrever uma coluna no Correio da Serra e convidado a dar
aulas na faculdade. Estava solteiro, tinha cabelos na cabeça e nenhuma barriga.
Já eu, era um vendedor de sapataria, preso num casamento sem amor, estava
careca e tinha o estômago dilatado de tanto beber cerveja.
Nazareno engajou-se na luta para
evitar a reeleição do prefeito e tornou-se um dos pilares da campanha do
principal candidato de oposição. Acompanhei sua escalada nas redes sociais e vi
seu número de seguidores ir para a estratosfera, enquanto eu era ignorado em
muitas de minhas solicitações de amizade. Quis visitá-lo no escritório, mas ele
estava ocupado e disse que me ligaria ou passaria uma mensagem para marcarmos
um happy hour. Fiquei esperando, ele
não fez nem uma coisa nem outra. Eu o vi muitas vezes em mesa de bar,
conversando e rindo com professores, jornalistas e membros do partido a que se
filiou. Sempre me cumprimentou, mas nunca me convidou para juntar-me a ele e
seus amigos.
Quando me intrometi na conversa de
Tony, estava no auge do meu ressentimento, tanto pelo desprezo de Nazareno por
mim, quanto pelo prestígio que ele adquiriu em tão pouco tempo. Não entrei em
detalhes, disse apenas que realmente odiava meu primo. O filho do prefeito me
chamou para fumar um cigarro lá fora e me perguntou de supetão o quanto eu
queria para matar Nazareno. Não pensei duas vezes e lhe dei meu preço: um tanto
que deixaria com minha mulher —
o suficiente para as despesas de um ano — e uma bolada para mim. Ele não
regateou. Pagou de imediato quarenta por cento do que pedi. Os outros sessenta
por cento eu receberia quando o serviço fosse executado.
Dois dias após o encontro, já de
posse da primeira parte do pagamento, fui à casa de meu primo, depois do
jantar. A chácara, recentemente reformada, era emoldurada por um jardim com
grama verdinha de dar gosto, onde descansava, em todo seu esplendor, uma caminhonete
de luxo branca —
meu sonho de consumo. Antes de entrar na casa, peguei meu canivete de bolso,
arranhei a lataria cintilante e fiz rasgos num dos pneus dianteiros. Nem
precisava fazer isso, já que ia varrer o dono do veículo da face da Terra em questão
de minutos. Fiz por pura maldade, só por ter espírito de porco mesmo.
Nazareno ficou surpreso com a visita
inesperada, mas me recebeu com entusiasmo. Eu disse que não ia tomar seu
precioso tempo, sabia que ele era um homem ocupado, queria apenas pedir-lhe uma
gravata emprestada para ir a uma festa de formatura no dia seguinte. O que eu
tinha em mente era: quando ele me entregasse a gravata, eu lhe diria que não
sabia dar nó, então ele iria preparar o nó no próprio pescoço e eu o
estrangularia. Era um plano simples, mas, caso desse errado, eu cortaria sua
jugular com meu canivete de bolso. Nazareno disse que teria o maior prazer em
me emprestar uma gravata; tinha muitas, cada uma mais bonita que a outra. Foi
ao seu quarto e eu fiquei sozinho na sala de jantar.
Em meio a objetos de arte e móveis
suntuosos, percebi a distância intransponível que havia se estabelecido entre
nós. Meus pensamentos foram interrompidos pela voz de meu primo, vinda do
quarto, dizendo que gostaria de reencontrar Neidinha, a colega por quem fomos
apaixonados na adolescência. Ele deu uma risada e me lembrou de que ela nunca
nos deu bola. Sorri, num momento de quase ternura, e comecei a me questionar se
teria mesmo coragem de matá-lo a sangue frio. Entrei em pânico, fiquei tonto e
sentei-me. Foi quando vi, sobre a mesa, a denúncia de corrupção.
Instintivamente, saquei do bolso meu celular de segunda categoria e tirei fotos
das sete laudas. Li o começo da primeira página, onde ele afirmava haver provas
contundentes de que o prefeito desviava recursos da saúde para comprar carros
blindados e usava dinheiro da merenda escolar para jogar nos cassinos de Las
Vegas. Eram muitos os seus crimes. E ali estava eu, prestes a cometer o meu
primeiro.
Nazareno retornou com duas gravatas
elegantes e disse que eu podia levá-las, não como empréstimo, mas como
presente, um pedido de desculpas. Sabia que estava em falta comigo, não me
ligou para sairmos porque estava sempre às voltas com alguma coisa. No momento,
estava atarefadíssimo, tinha que revisar uma denúncia contra o prefeito que
iria entregar no Ministério Público Estadual do Rio de Janeiro no dia seguinte — isso
podia resultar na impugnação da sua
candidatura à reeleição. E prometeu que, em breve, iria me ligar para tomarmos
uma cervejinha e relembrarmos os bons e velhos tempos. Recebi as gravatas,
gaguejei um agradecimento e saí quase correndo de sua casa. Estava
sufocado.
Dirigi sem rumo noite adentro, até
que peguei a rodovia que saía da cidade. Tinha que pensar numa estratégia,
arranjar coragem de matar Nazareno. Afinal de contas, tinha recebido uma boa
parte do dinheiro, não podia deixar de fazer o serviço. Se não o fizesse, teria
que prestar contas a quem me pagou para matar. Não, eu não queria matar. Mas
também não ia devolver o dinheiro que recebi, era meu passaporte para a
liberdade. E da minha liberdade eu não abriria mão. Quando mais eu dirigia,
mais confuso ficava. A descida da serra se aproximava e eu estava, além de
confuso, cansado e com muito sono, era mais prudente voltar para casa. De manhã
eu faria a mala, deixaria um dinheiro em cima da mesa de cabeceira — para as despesas de dois meses, no
máximo três — e,
ao invés de ir para a sapataria, fugiria para o Rio sem cumprir minha parte do
trato. Eu era um cafajeste, podia enganar, trair, ser um escroto, mas não a
ponto de tirar a vida de alguém.
De manhã bem cedo, minha mulher saiu
para deixar os meninos na escola, eu fiz as malas rapidamente e saí da cidade
dirigindo feito um louco. Na descida da serra, vi marcas de pneu e, a seguir,
um grupo de pessoas olhando para o fundo da ribanceira. Uma caminhonete branca
tinha despencado há instantes e incendiado. O corpo de Nazareno estava preso
nas ferragens. O pneu, foi o pneu que eu rasguei com o canivete, deve ter
esvaziado e ele perdeu o controle do carro no declive, pensei. Tirei uma foto,
engoli em seco, voltei para o carro e, tomado por uma sensação de angústia,
liguei para o filho do prefeito para avisar que o serviço estava feito. Meia
hora depois, chequei o saldo da minha conta no celular. Tony havia depositado o
restante do pagamento.
Como eu era tolo, senti angústia de
verdade por ter provocado um acidente! E o valor que cobrei? Onde eu estava com
a cabeça por querer tão pouco? Eu era um amador!
Soube depois que correram rumores de
que Nazareno estava preparando uma denúncia, um dossiê ou algo assim contra o
prefeito, mas não encontraram nada em sua chácara ou em seu escritório que
confirmasse isso.
Guardei o velho celular comigo, pois
havia algo nele que podia mudar o destino da minha cidade. A eleição de um
homem honesto iria aliviar a situação de saúde e educação do nosso município,
talvez isso fosse conveniente para a mulher e os filhos que deixei para trás.
Quando estava longe o suficiente, cheguei a me questionar se não deveria
encaminhar as fotos da denúncia escrita por meu primo para os membros do seu
partido, os jornalistas do Correio da Serra, os professores da faculdade e
todos os seus amigos nas redes sociais. Seria um gesto de grandeza. O único da
minha vida. Mas não fazia muito sentido um homem ruim como eu ter gestos de
grandeza. Nada fiz e o prefeito foi reeleito.
* * *
Na varanda desse hotel cinco
estrelas, olhando a piscina lá embaixo apinhada de corpos sarados, tomo uma
dose de gin tônica e afio a lâmina do meu canivete enquanto espero uma
massagista. Eu me sinto livre e tenho um gosto pela vida que nunca tive antes.
Aqui em Las Vegas, sou um advogado que deixou o Brasil porque descobriu um
esquema de corrupção e foi ameaçado de morte. Ninguém imagina que eu mato por
dinheiro.
Acho que sou o único assassino de
aluguel que começou a carreira sendo pago por um serviço sem tê-lo executado.
Não posso afirmar que matei Nazareno. Alguns rasgos de canivete não causariam
tanto estrago num pneu, não nos daquela caminhonete chique, projetados para
rodarem ainda que estivessem furados. Mas enfim, isso ficou no passado.
O que ganhei com a morte de meu
primo gastei em jogo e farra. Depois da vidinha jeca que fui obrigado a levar,
fiz tudo o que o dinheiro podia me proporcionar, sem me importar em guardar
algum para o futuro. Não cheguei a ficar sem grana, porque antes da fonte
secar, recebi uma mensagem de Tony. Queria me contratar para matar um cantor.
Fiz jogo duro e cobrei o dobro do que havia pedido no primeiro serviço. Ele
reclamou, mas não barganhou; eu era eficiente, sabia fazer a coisa sem deixar
rastros. Balancei a cabeça afirmativamente e abri um simulacro de sorriso que
havia aprendido revendo um filme ruim em que o personagem principal era um
matador de aluguel.
Eu não conheço absolutamente nada de
monomotores e não tenho a menor ideia de como consegui avariar o motor do
aviãozinho que levaria João Otávio, um astro do sertanejo universitário em
ascensão, para sua casa em Uberaba. João Otário, como Tony o chamava, estava
saindo com a ex-namorada dele. Explodiu nas alturas, junto com a fuselagem.
Enquanto o noticiário na tevê e as redes sociais lamentavam a morte prematura
do jovem talentoso em mais um acidente aéreo com monomotores, eu abria uma
garrafa de Veuve Clicquot e embarcava de volta para Las Vegas, num
jatinho fretado.
Mais tarde desço para o lobby. Vou
almoçar com Tony, ele aterrissa daqui a pouco e vem direto para cá. Tem planos
para o futuro, para si e para o pai, e um novo serviço para mim, alguma coisa
ligada a um deputado estadual de Minas que está no caminho da família. Outro
assassinato por encomenda, na certa. Tony me tem em alta conta, nunca passou
por sua cabeça que eu sou um embusteiro. Que continue a me achar competente e a
recomendar meus serviços para seus amigos.
Vivo assim, indo e voltando ao
Brasil para executar pessoas. Sou um tipo feioso, um cara que ninguém nota,
entro e saio incógnito de oficinas, garagens, lava-jatos, aeródromos e marinas,
deixando um rastro de sangue e dor atrás de mim, sem despertar suspeitas. Mato
gente em pretensos acidentes. Nunca precisei usar arma de fogo. Assim como o
personagem de uma antiga série de tevê, eu me viro apenas com um canivete de
bolso.
Bruno Olsen
Cristina Ravela
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