3x07 - Espelho
de Anchieta Mendes
Vejo meu corpo diante do espelho, com ar de quem me acho bonita de verdade. Passo
as mãos pelos meus cabelos negros e longos, e sinto as madeixas pelos dedos.
Reparo bem os seios firmes. Apalpo-os com as duas mãos de baixo para cima a
certificar-me da firmeza e do volume. Depois ponho as mãos na cintura e giro
sobre os calcanhares de um lado e outro sem retirar os pés do chão. Vejo-me nua
por completo, e depois de tanto tempo, e apesar das angústias e atrocidades,
sinto-me bela, jovial e pronta para amar e ser amada. Agora olho pelo canto
direito e na imagem invertida do espelho, enxergo o homem deitado na cama
totalmente nu.
Volto para
o homem e com sorriso de mulher alvissareira, convido-o com os olhos para um
abraço. Ele sorri, mas não se mexe. Sem nenhuma culpa dispo-me de outros
sentimentos e avanço cautelosa. Era o primeiro encontro com aquele homem. Tento
demonstrar, nos gestos, a teatralidade por falta de costume a sair com outros.
Sinto-me involuntariamente estranha. No curto espaço entre o espelho e a cama,
a janela semiaberta. Tenho que passar por ela. Então vi, rapidamente, pela
fresta deixada pelas duas bandas, noutro pavimento embaixo, a silhueta da
mulher que mudaria a minha vida.
Atiro-me na
cama. O homem agarra-me com os longos braços a enlaçar meu dorso. Olhamo-nos
dentro dos olhos. Nossas bocas esperam ávidas pelo beijo. Nesse momento não nos
falamos. Restringimos às carícias peculiares. Deixamos as línguas se
encontrarem, as mãos traçarem os mapas de nossos corpos, montanhas, declives,
desertos e cavernas misteriosas. No ápice da agonia, do embasbacar das bocas,
das águas mornas que por elas os lábios são inundados, os nossos sexos se
ajustam e não se aguentam. Mas eis que se ouve, lá embaixo, murmúrios de vozes.
O homem para nas suas investidas. Ponho o dedo indicador nos lábios dele e
sussurro a passear meus lábios nos dele e indo até o ouvido.
– Calma,
não há de ser nada.
Invisto nos
carinhos e faço com que o homem esqueça dos murmúrios, dos ruídos vindos do
térreo. Nos acalentamos e galopamos em terras firmes, apesar que na minha mente
passam tantas imagens e situações. Entre o meio e o fim, não escuto mais
murmúrios, e se calam lá embaixo, enquanto não se ouve também o ápice cá em
cima. Tudo feito em calmaria, a se saber a porta apenas encostada, o vento a
uivar lá fora, e a poeira vermelha dos cascos dos cavalos a invadir partes da
casa. Naufragamos um no outro.
Sob os
lençóis ficamos a olhar para as telhas e fumamos nossos cigarros, e em silêncio
reparamos a fumaça desparecer tão logo.
Batem na
porta, e antes de “entre”, a mulher entrou com o pisar de quem tem força e
fumaça nas ventas. Ao abrir a porta, a claridade veio junto e escondeu de mim o
desenho do rosto dela. Antes da voz sair de toda da sua boca, e quando a porta
se fechou e a luz sumiu, meu coração acelerou tão logo. Não era possível.
Distingui imediatamente todo o desenho, e agora o corpo por inteiro. A mulher
era eu.
***
Ao
subir as escadas e minutos antes de bater à porta, imaginei a mulher no
espelho, com seus esmeros, beleza do corpo, seios fartos e mãos macias a se
acariciarem. Ela se olha como nunca e se ver como única, e no quarto somente
ela domina a situação. Imagina estar no auge da vida ou do tempo, e tem a
certeza de que o amor existe, de que o prazer faz parte da vida e o momento é
sublime. Vira-se nos calcanhares para se ver melhor, mas não se olha firme nos
olhos. Faz de tudo para não se olhar nas retinas, talvez porque não quer ou não
pode ou não deve.
Resolve
olhar para aquele homem estendido na cama. Não se volta de vez, mas enxerga
pelo canto do espelho e o ver totalmente nu como um bicho. Ele não é seu – é
verdade – mas o momento sim. Se fosse bicho ou gente, era seu por aquele
instante.
Ela
resolve ir a se atirar na cama, mas antes passa pela janela aberta e... olha para
mim. Para um pouco, mas não desiste do intuito. Atira-se na cama e nos braços
do sujeito. Tomaria o corpo dele como ser do outro mundo, a sugar veias e sumos
pelos poros, pela boca, pelo sexo, por todos os cantos.
Antes
que ele a agarre e que se olhem dentro dos olhos, e se babem, se lambem, se
esfreguem, paro no batente e reflito antes de bater.
***
Antes
de tudo isso, aquela mulher que nua se atira nos braços do homem, e que pensa
em fazer amor, em arrancar beijos e abraços, e que se olha – instantes
anteriores – no espelho e não se olha nos olhos, e porque não quer ou não
consegue, não é a que faz tudo isso antes da batida na porta.
Ela
está no ambiente – antes de tudo isso – lá embaixo e veio até ali porque foi
convidada para estar no lugar. O lugar era uma pousada no posto de
combustíveis, nos arredores distantes da cidade de São Miguel. Lugar conhecido
pelos moradores como encontro dos amantes e de amores traídos, de gente a trair
outras, de balas perdidas, de sangue nos olhos, de facas nos dentes. Lugar onde
o casal – proprietários – cada um na sua estirpe – trata os clientes por
assuntos: negócios e amores.
Os
passos que serão dados – depois dos outros antes da chegada ao pequeno salão,
embaixo do primeiro pavimento e da janela – foram medidos e traçados em suas
peculiaridades ponto a ponto.
Subir
as escadas, degrau a degrau, seria um ato de glória porque lá dentro do quarto
cada detalhe já estaria previsto. Caso algo não desse certo, venceria a
tentativa e o gozo deixaria para depois.
***
E
ainda antes de bater na porta, pensei, mas logo bati e entrei sem necessidade
de autorização. Já sabia quem lá estava à minha espera, conforme o combinado.
Mas não sabia que o sujeito estivesse totalmente nu. Sorri cordialmente, sem
transparecer ansiedade e nervosismo. Ele retribuiu o sorriso e de olho direto
em mim, nada disse, como quem entrasse pela porta fosse uma velha conhecida.
Não me importei com isso, e fui direto para o banheiro. Sentei-me no vaso, sem
tirar a roupa. Eu vestia blusa e saia num conjunto novo – fiz questão de
estrear um modelo para me dar sorte, como também sem vícios e conhecido de todos.
Logo me bateu tristeza repentina e lágrimas me deixaram triste e nervosa. Não
podia tremer nas bases porque o momento pedia força e determinação. Enxuguei as
lágrimas, e aos poucos me despi, e na medida em que descobria meu corpo nu,
arquitetava o plano. Passou um filme na minha mente, revi as situações
anteriores, o que me fez vir parar neste lugar e submeter aos caprichos do
filho de uma puta. Joguei os cabelos para trás, num gesto altaneiro de quem
erguia a cabeça para a luta.
Sai
do banheiro, e junto a porta, num cabide, deixei minha bolsa de mão, até ali
com os pertences valiosos e salvadores. Precisava disfarçar o nervosismo, e
diante do espelho, aos olhos do sujeito asqueroso, me vi em duplicidade. Não me
olhei nos olhos mais profundo, porque sabia não poder me enxergar como uma
mulher vingativa, mas um ser capaz de fazer justiça.
Depois
de amar minha beleza, de pensar e repensar em tudo o que aconteceu, e avançar
pelos momentos futuros, caminhei pelo curto espaço até a cama onde o sujeito
bruto não aguentava mais de tanto me desejar.
No
momento da parada, antes do ato final – beijos ávidos, penetrações,
apalpadelas, carícias – quando se ouve os murmúrios lá embaixo, meus lábios no
ouvido dele, e a batida na porta – que não era batida na porta, mas o vento que
empurrou quando ela somente estava encostada, e que vulto nenhum entrou, mas
imaginei que assim o fosse, e que minha mente massificou todas as imagens e
situações e traços marcados até aquela situação, como também a imagem da mulher
lá embaixo como duplicidade e minha mente antevendo a mim própria a subir as
escadas – retomamos os galopes leves para depois rápidos, os suores, o ápice.
–
Nunca te vi por essas bandas – ele falou com o som vindo da boca como se um
monstro saísse da caverna, em estrondos aos meus ouvidos.
– Não
sou daqui... venho de muito longe – não queria dialogar, porque sabia do outro
lado meu em se deixar me aliviar com palavras, sensibilidades e os efeitos que
elas fazem. O meu medo não estava nele, mas em mim por querer desistir dos meus
intentos.
– Me
conta sobre você.
– Não
tenho tanto para contar. Sou uma qualquer vivente desse sertão árido.
– Não
acredito... você é única... temos que nos encontrar mais – sorri a retribuir
qualquer coisa das suas intenções, mas não me interessava o futuro.
Deitada
ao lado do sujeito, eu olhava para a bolsa no cabide e imaginava – sim – que lá
dentro estava o futuro.
O
sujeito tagarelava, empolgado, mas não ouvia nada do que ele dizia. Meus olhos
não saiam da bolsa, e meus pensamentos criavam barreiras entre eu e o canalha.
–
Fuma? – perguntei.
–
Estou tentando largar o vício. Por isso me policio sempre e evito trazer
cigarros comigo.
– Não
há nada melhor do que tragadas depois do sexo – alfinetei.
–
Também acho... você tem?
– Não
sou uma fumante viciosa, mas fumo em ocasiões especiais.
Ergui-me
devagar, e desta vez me enrolei com o lençol. A minha nudez não mais me
interessava, e não queria que ela fosse o chamariz para mais delongas. Enquanto
ia de encontro à bolsa no cabide, revi outros dias.
***
Os
tiros partiram da pistola cheia de veneno e encontrou meu irmão de treze anos,
ao tentar se erguer da cama, com um celular nas mãos. Havia ganho da nossa avó
o celular que o fez tão feliz. Isso aconteceu na noite anterior, quando ele
comemorava o seu décimo terceiro aniversário. Eu não estava lá. Estava numa
cidade a trezentos quilômetros.
A
casa dos meus pais era no subúrbio, e meu irmão apenas estudava e não havia
antecedentes criminais. A polícia invadiu a casa, e quando meu irmão se erguia
da cama, com o celular nas mãos, não deu tempo de passar a última mensagem para
mim. Tombou junto com o celular – tiros no braço e no peito – e o aparelho não
acompanhou o trajeto, e foi parar sob o travesseiro. O policial não se deu
conta desse detalhe, e, provavelmente nervoso, saiu rápido do lugar.
Isso
tudo aconteceu há cinco anos, e no julgamento dos que se envolveram no
massacre, todos foram absorvidos. Mas eu não perdoei. Eu sabia quem matara meu
irmão, e estava lá, no celular, a cara do sujeito com a arma em punho. Minha
mãe não quis andar com o processo por medo de represália.
Como
passei vários anos fora daquele lugar terrível, ninguém me reconhecia, e
acompanhei o processo, e o rosto do sujeito nunca saiu da minha mente. Descobri
ser ele hipertenso e cardíaco.
Como
então cheguei a esse dia do encontro de mil impressões digitais?
O
casal dono do posto de combustíveis e do lugar dos encontros de casais, era
meus tios. Durante todos esses anos arquitetamos planos e mais planos. Houve
tempo de arrependimento, de “deixar para lá”, que Deus providenciaria o fim, de
que a vida era a dona da verdade e os caminhos seguiriam os rumos naturais. Mas
não houve dia e noite sequer, sem que minha alma não se aquietasse. E o dia
chegou.
Na
bolsa retirei o maço de cigarros, com o número pela metade acompanhado do
isqueiro sofisticado. Rapidamente imaginei a situação e me controlei para não
tremer as mãos. Voltei-me com o sorriso natural e de olho no sujeito. A
minh’alma sentia-se pesada, enquanto meu corpo tentava se sustentar sem maiores
atropelos.
Ofereci
um cigarro para ele:
–
Vamos fumar um só – disse ele de olhos lascivos,
–
Desculpe-me pela minha chatice: nunca gostei de trocas de cigarros ou bebidas
ou roupas., queira me desculpar esse meu jeito.
Ele
sorriu simples e recebeu o cigarro naturalmente.
– Não
tem nenhuma bebida para acompanhar a fumaça? – perguntei com o ar sorridente e
descontraída.
–
Ótima ideia – ele quis erguer-se, mas não deixei. Fui preparar os dois copos de
uísque a cowboy.
Ainda
na cama brindamos, bebericamos, tragamos os nossos cigarros, falamos, nos
acariciamos, rimos. Um trago no uísque, um trago no cigarro, o rasgo pela
garganta, a fumaça a invadir as narinas e pulmões, o veneno a enegrecer os
sentidos, a palidez, o baticum descompassado do coração... o silêncio.
Calmamente
me ergui, tomei uma ducha sem pressa, limpei todas as minhas impressões,
inclusive no corpo nu e inútil do policial. Diante do espelho me olhei nos
olhos, coloquei meus cabelos postiços, batom doutra cor nos lábios. Tomei minha
bolsa, e antes de sair, parei diante daquele sujeito indecoroso, pensei em
cuspi-lo, mas não o fiz.
Desci
as escadas, sai pela porta dos fundos, passei na lateral do posto sem que
ninguém me notasse. Na beira da estrada esperei a condução, e quando entrei não
olhei para os lados e nem para trás. Apenas tirei o celular da bolsa, liguei e
olhei na foto de abertura o rosto inocente e triste do meu irmão.
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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