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Antologia Contos Contemporâneos da Violência Urbana: 3x07 - Espelho

Conto de Anchieta Mendes
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Sinopse: Os tiros no irmão de Lúcia tiraram sua vida, quando da invasão da polícia no bairro e na casa dele. Na cama, com um celular nas mãos, recebeu os tiros: um no braço e outro no peito, mataram o rapaz de 13 anos, O policial não viu quando o celular resvalou e foi ficar por sob o travesseiro. Este simples detalhe foi o bastante para denunciar o agressor. Anos depois, a irmã do assassinado encontrou-se com o policial, com a necessidade de tornar-se prostituta para vingar-se.


3x07 - Espelho
de Anchieta Mendes

  

Vejo meu corpo diante do espelho, com ar de quem me acho bonita de verdade. Passo as mãos pelos meus cabelos negros e longos, e sinto as madeixas pelos dedos. Reparo bem os seios firmes. Apalpo-os com as duas mãos de baixo para cima a certificar-me da firmeza e do volume. Depois ponho as mãos na cintura e giro sobre os calcanhares de um lado e outro sem retirar os pés do chão. Vejo-me nua por completo, e depois de tanto tempo, e apesar das angústias e atrocidades, sinto-me bela, jovial e pronta para amar e ser amada. Agora olho pelo canto direito e na imagem invertida do espelho, enxergo o homem deitado na cama totalmente nu.

Volto para o homem e com sorriso de mulher alvissareira, convido-o com os olhos para um abraço. Ele sorri, mas não se mexe. Sem nenhuma culpa dispo-me de outros sentimentos e avanço cautelosa. Era o primeiro encontro com aquele homem. Tento demonstrar, nos gestos, a teatralidade por falta de costume a sair com outros. Sinto-me involuntariamente estranha. No curto espaço entre o espelho e a cama, a janela semiaberta. Tenho que passar por ela. Então vi, rapidamente, pela fresta deixada pelas duas bandas, noutro pavimento embaixo, a silhueta da mulher que mudaria a minha vida.

Atiro-me na cama. O homem agarra-me com os longos braços a enlaçar meu dorso. Olhamo-nos dentro dos olhos. Nossas bocas esperam ávidas pelo beijo. Nesse momento não nos falamos. Restringimos às carícias peculiares. Deixamos as línguas se encontrarem, as mãos traçarem os mapas de nossos corpos, montanhas, declives, desertos e cavernas misteriosas. No ápice da agonia, do embasbacar das bocas, das águas mornas que por elas os lábios são inundados, os nossos sexos se ajustam e não se aguentam. Mas eis que se ouve, lá embaixo, murmúrios de vozes. O homem para nas suas investidas. Ponho o dedo indicador nos lábios dele e sussurro a passear meus lábios nos dele e indo até o ouvido. 

– Calma, não há de ser nada.

Invisto nos carinhos e faço com que o homem esqueça dos murmúrios, dos ruídos vindos do térreo. Nos acalentamos e galopamos em terras firmes, apesar que na minha mente passam tantas imagens e situações. Entre o meio e o fim, não escuto mais murmúrios, e se calam lá embaixo, enquanto não se ouve também o ápice cá em cima. Tudo feito em calmaria, a se saber a porta apenas encostada, o vento a uivar lá fora, e a poeira vermelha dos cascos dos cavalos a invadir partes da casa. Naufragamos um no outro.

Sob os lençóis ficamos a olhar para as telhas e fumamos nossos cigarros, e em silêncio reparamos a fumaça desparecer tão logo.

Batem na porta, e antes de “entre”, a mulher entrou com o pisar de quem tem força e fumaça nas ventas. Ao abrir a porta, a claridade veio junto e escondeu de mim o desenho do rosto dela. Antes da voz sair de toda da sua boca, e quando a porta se fechou e a luz sumiu, meu coração acelerou tão logo. Não era possível. Distingui imediatamente todo o desenho, e agora o corpo por inteiro. A mulher era eu.

 

***

Ao subir as escadas e minutos antes de bater à porta, imaginei a mulher no espelho, com seus esmeros, beleza do corpo, seios fartos e mãos macias a se acariciarem. Ela se olha como nunca e se ver como única, e no quarto somente ela domina a situação. Imagina estar no auge da vida ou do tempo, e tem a certeza de que o amor existe, de que o prazer faz parte da vida e o momento é sublime. Vira-se nos calcanhares para se ver melhor, mas não se olha firme nos olhos. Faz de tudo para não se olhar nas retinas, talvez porque não quer ou não pode ou não deve.

Resolve olhar para aquele homem estendido na cama. Não se volta de vez, mas enxerga pelo canto do espelho e o ver totalmente nu como um bicho. Ele não é seu – é verdade – mas o momento sim. Se fosse bicho ou gente, era seu por aquele instante.

Ela resolve ir a se atirar na cama, mas antes passa pela janela aberta e... olha para mim. Para um pouco, mas não desiste do intuito. Atira-se na cama e nos braços do sujeito. Tomaria o corpo dele como ser do outro mundo, a sugar veias e sumos pelos poros, pela boca, pelo sexo, por todos os cantos. 

Antes que ele a agarre e que se olhem dentro dos olhos, e se babem, se lambem, se esfreguem, paro no batente e reflito antes de bater.

 

***

Antes de tudo isso, aquela mulher que nua se atira nos braços do homem, e que pensa em fazer amor, em arrancar beijos e abraços, e que se olha – instantes anteriores – no espelho e não se olha nos olhos, e porque não quer ou não consegue, não é a que faz tudo isso antes da batida na porta.

Ela está no ambiente – antes de tudo isso – lá embaixo e veio até ali porque foi convidada para estar no lugar. O lugar era uma pousada no posto de combustíveis, nos arredores distantes da cidade de São Miguel. Lugar conhecido pelos moradores como encontro dos amantes e de amores traídos, de gente a trair outras, de balas perdidas, de sangue nos olhos, de facas nos dentes. Lugar onde o casal – proprietários – cada um na sua estirpe – trata os clientes por assuntos: negócios e amores.

Os passos que serão dados – depois dos outros antes da chegada ao pequeno salão, embaixo do primeiro pavimento e da janela – foram medidos e traçados em suas peculiaridades ponto a ponto.

Subir as escadas, degrau a degrau, seria um ato de glória porque lá dentro do quarto cada detalhe já estaria previsto. Caso algo não desse certo, venceria a tentativa e o gozo deixaria para depois.

 

***

E ainda antes de bater na porta, pensei, mas logo bati e entrei sem necessidade de autorização. Já sabia quem lá estava à minha espera, conforme o combinado. Mas não sabia que o sujeito estivesse totalmente nu. Sorri cordialmente, sem transparecer ansiedade e nervosismo. Ele retribuiu o sorriso e de olho direto em mim, nada disse, como quem entrasse pela porta fosse uma velha conhecida. Não me importei com isso, e fui direto para o banheiro. Sentei-me no vaso, sem tirar a roupa. Eu vestia blusa e saia num conjunto novo – fiz questão de estrear um modelo para me dar sorte, como também sem vícios e conhecido de todos. Logo me bateu tristeza repentina e lágrimas me deixaram triste e nervosa. Não podia tremer nas bases porque o momento pedia força e determinação. Enxuguei as lágrimas, e aos poucos me despi, e na medida em que descobria meu corpo nu, arquitetava o plano. Passou um filme na minha mente, revi as situações anteriores, o que me fez vir parar neste lugar e submeter aos caprichos do filho de uma puta. Joguei os cabelos para trás, num gesto altaneiro de quem erguia a cabeça para a luta.

Sai do banheiro, e junto a porta, num cabide, deixei minha bolsa de mão, até ali com os pertences valiosos e salvadores. Precisava disfarçar o nervosismo, e diante do espelho, aos olhos do sujeito asqueroso, me vi em duplicidade. Não me olhei nos olhos mais profundo, porque sabia não poder me enxergar como uma mulher vingativa, mas um ser capaz de fazer justiça.

Depois de amar minha beleza, de pensar e repensar em tudo o que aconteceu, e avançar pelos momentos futuros, caminhei pelo curto espaço até a cama onde o sujeito bruto não aguentava mais de tanto me desejar.

No momento da parada, antes do ato final – beijos ávidos, penetrações, apalpadelas, carícias – quando se ouve os murmúrios lá embaixo, meus lábios no ouvido dele, e a batida na porta – que não era batida na porta, mas o vento que empurrou quando ela somente estava encostada, e que vulto nenhum entrou, mas imaginei que assim o fosse, e que minha mente massificou todas as imagens e situações e traços marcados até aquela situação, como também a imagem da mulher lá embaixo como duplicidade e minha mente antevendo a mim própria a subir as escadas – retomamos os galopes leves para depois rápidos, os suores, o ápice.

– Nunca te vi por essas bandas – ele falou com o som vindo da boca como se um monstro saísse da caverna, em estrondos aos meus ouvidos.

– Não sou daqui... venho de muito longe – não queria dialogar, porque sabia do outro lado meu em se deixar me aliviar com palavras, sensibilidades e os efeitos que elas fazem. O meu medo não estava nele, mas em mim por querer desistir dos meus intentos.

– Me conta sobre você.

– Não tenho tanto para contar. Sou uma qualquer vivente desse sertão árido.

– Não acredito... você é única... temos que nos encontrar mais – sorri a retribuir qualquer coisa das suas intenções, mas não me interessava o futuro.

Deitada ao lado do sujeito, eu olhava para a bolsa no cabide e imaginava – sim – que lá dentro estava o futuro.

O sujeito tagarelava, empolgado, mas não ouvia nada do que ele dizia. Meus olhos não saiam da bolsa, e meus pensamentos criavam barreiras entre eu e o canalha.

– Fuma? – perguntei.

– Estou tentando largar o vício. Por isso me policio sempre e evito trazer cigarros comigo.

– Não há nada melhor do que tragadas depois do sexo – alfinetei.

– Também acho... você tem?

– Não sou uma fumante viciosa, mas fumo em ocasiões especiais.

Ergui-me devagar, e desta vez me enrolei com o lençol. A minha nudez não mais me interessava, e não queria que ela fosse o chamariz para mais delongas. Enquanto ia de encontro à bolsa no cabide, revi outros dias.

 

***

Os tiros partiram da pistola cheia de veneno e encontrou meu irmão de treze anos, ao tentar se erguer da cama, com um celular nas mãos. Havia ganho da nossa avó o celular que o fez tão feliz. Isso aconteceu na noite anterior, quando ele comemorava o seu décimo terceiro aniversário. Eu não estava lá. Estava numa cidade a trezentos quilômetros.

A casa dos meus pais era no subúrbio, e meu irmão apenas estudava e não havia antecedentes criminais. A polícia invadiu a casa, e quando meu irmão se erguia da cama, com o celular nas mãos, não deu tempo de passar a última mensagem para mim. Tombou junto com o celular – tiros no braço e no peito – e o aparelho não acompanhou o trajeto, e foi parar sob o travesseiro. O policial não se deu conta desse detalhe, e, provavelmente nervoso, saiu rápido do lugar.

Isso tudo aconteceu há cinco anos, e no julgamento dos que se envolveram no massacre, todos foram absorvidos. Mas eu não perdoei. Eu sabia quem matara meu irmão, e estava lá, no celular, a cara do sujeito com a arma em punho. Minha mãe não quis andar com o processo por medo de represália.

Como passei vários anos fora daquele lugar terrível, ninguém me reconhecia, e acompanhei o processo, e o rosto do sujeito nunca saiu da minha mente. Descobri ser ele hipertenso e cardíaco.

Como então cheguei a esse dia do encontro de mil impressões digitais?

O casal dono do posto de combustíveis e do lugar dos encontros de casais, era meus tios. Durante todos esses anos arquitetamos planos e mais planos. Houve tempo de arrependimento, de “deixar para lá”, que Deus providenciaria o fim, de que a vida era a dona da verdade e os caminhos seguiriam os rumos naturais. Mas não houve dia e noite sequer, sem que minha alma não se aquietasse. E o dia chegou.

Na bolsa retirei o maço de cigarros, com o número pela metade acompanhado do isqueiro sofisticado. Rapidamente imaginei a situação e me controlei para não tremer as mãos. Voltei-me com o sorriso natural e de olho no sujeito. A minh’alma sentia-se pesada, enquanto meu corpo tentava se sustentar sem maiores atropelos.

Ofereci um cigarro para ele:

– Vamos fumar um só – disse ele de olhos lascivos,

– Desculpe-me pela minha chatice: nunca gostei de trocas de cigarros ou bebidas ou roupas., queira me desculpar esse meu jeito.

Ele sorriu simples e recebeu o cigarro naturalmente.

– Não tem nenhuma bebida para acompanhar a fumaça? – perguntei com o ar sorridente e descontraída.

– Ótima ideia – ele quis erguer-se, mas não deixei. Fui preparar os dois copos de uísque a cowboy.

Ainda na cama brindamos, bebericamos, tragamos os nossos cigarros, falamos, nos acariciamos, rimos. Um trago no uísque, um trago no cigarro, o rasgo pela garganta, a fumaça a invadir as narinas e pulmões, o veneno a enegrecer os sentidos, a palidez, o baticum descompassado do coração... o silêncio.

Calmamente me ergui, tomei uma ducha sem pressa, limpei todas as minhas impressões, inclusive no corpo nu e inútil do policial. Diante do espelho me olhei nos olhos, coloquei meus cabelos postiços, batom doutra cor nos lábios. Tomei minha bolsa, e antes de sair, parei diante daquele sujeito indecoroso, pensei em cuspi-lo, mas não o fiz.

Desci as escadas, sai pela porta dos fundos, passei na lateral do posto sem que ninguém me notasse. Na beira da estrada esperei a condução, e quando entrei não olhei para os lados e nem para trás. Apenas tirei o celular da bolsa, liguei e olhei na foto de abertura o rosto inocente e triste do meu irmão.         





Conto escrito por
Anchieta Mendes

Produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


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