3x08 - Um Ritual Urbano
de Anderson Furtado
Há
algum tempo a minha família passou por uma complicada crise financeira e isso obrigou
a nos mudar de nosso amado pedaço de chão para algum pouco espaço da cidade
grande. Nós sempre residimos e trabalhamos em nosso cantinho de terra e tínhamos
pouquíssimo contato com as pessoas longe de nosso ambiente, mas agora isso rapidamente
viria a mudar. Entretanto, o que é importante de se saber aqui é sobre aquilo o
que vim a presenciar próximo de nosso novo lar e acreditem, eu estou assustado
até agora com o que os meus olhos vieram a ver! Acabei testemunhando o que possivelmente
foram atos de violência e até mesmo causaram a morte de muita gente. Obviamente
sei que eu deveria ligar para a polícia, e até estou perto do telefone, porém,
temo estar cometendo um grave erro e as consequências disso seja as eu a vir em
me tornar mais uma vítima desses criminosos.
Antes de tudo preciso dizer o quanto
estranhamos as pessoas da cidade, bem como o seu modo exótico de agir e de
conviver com os outros. A maioria, além de nunca olharem em nossos olhos e de
não fazerem qualquer cumprimento, parecem estar hipnotizadas por um curioso
objeto a lembrar um televisor de brinquedo a caber na palma de uma mão. Alguém
nos contou sobre aquilo ser um celular e que através deles todos no mundo estariam
conectados por uma rede invisível. Isso teoricamente permitiria a comunicação
entre qualquer um, e por consequência, nunca ninguém estaria sozinho. Confesso
o quanto este conceito não me parece fazer sentido algum, até porque essa gente
sempre parece estar preocupadas, mal-humoradas e muito solitárias. É confuso
pensar sobre isso, pois há tantos num único espaço, e ao mesmo tempo, é como se
não houvesse ninguém por perto.
A segunda situação que desejo mencionar é sobre como o medo
parece ser uma constante presença na vida de toda essa gente, uma vez que todos
estão constantemente a temerem algum tipo de ataque surpresa. Isso não deveria
ser algo comum, mas parece fazer parte do cotidiano de toda essa gente onde pessoas
mal-intencionadas querem levar o que não lhes pertencem. Engraçado também é ver
como quanto mais nos deslocamos para o centro da cidade, mais luxo e riqueza de
uns poucos se apresentam aos nossos olhos ao mesmo tempo em que a tristeza, a
fome e a pobreza de milhares parecem ser apenas algum tipo de decoração dessa
sociedade. Ninguém parece se importar com isso. São tantas situações esquisitas
acontecendo que rapidamente ficamos a pensar se tinha sido mesmo uma escolha
acertada em deixar nossa terrinha para buscar algo melhor na cidade grande. E
essa dúvida seria ainda mais reforçada depois deste terrível fato ocorrido
nesta noite e ao qual vou relatar a vocês. Diante de tantas evidencias só pude
chegar a uma única conclusão. Aquilo a acontecer só poderia se tratar de um
terrível ritual macabro.
Já eram altas horas da noite e a maioria das pessoas deveriam
estar dormindo, foi então que ouvi um estranho barulho e também muito agitado. Olhando
pela fresta da janela pude ver um aglomerado de pessoas se reunindo. Porém,
estranhamente elas pareciam estar se arrastando enquanto outras estavam sendo
carregadas por terceiros. Temi esses serem algum tipo de mortos-vivos ou coisas
do além, entretanto, sei que não devia acreditar em coisas como essas. Ao longe
se escutava um terrível som, parecido com algum tipo primitivo de música, e
estava vindo de um lugar próximo de onde esses desconhecidos estavam se
dirigindo. Mesmo distante também consegui ver como estava saindo muita fumaça
de algum lugar, parecendo ser um incêndio a estar a acontecer, mas o qual eu
não tinha noção alguma de onde vinha. Tudo aquilo me levava a crer em se tratar
de alguma espécie de ritual... Um ritual do mal!
Já muito assustado resolvi ser melhor
ir me deitar e esquecer tudo aquilo. Tentei dormir, mas foi bem difícil de
pregar os olhos imaginando as coisas a acontecer em tal local. Porém, o medo
seguia como companhia a mim, uma vez que daquele lugar continuava a vir muito
barulho junto de uma gritaria a causar arrepios. As pessoas pareciam estar
sofrendo naquele local e aquela batucada constante não parava nem por um minuto
mesmo diante da existência de berros e mais berros que só poderiam ser de dor. Aquele
som era muito esquisito, barulhento e repleto de batidas ritmadas. Era algo do
qual nunca antes tinha ouvido, havendo pouco canto durante a melodia, mas
quando o faziam, eram desafinados e falavam coisas sem sentido ou pareciam
dizer coisas em outras línguas. Com o passar dos minutos tais gritos vieram a
diminuir até toda aquela barulheira vir a ser trocada por múrmuros bem
baixinhos. Estranhamente uma a uma daquela gente começou a caírem desfalecidas.
Sim, aquilo era algum ritual urbano!
Ainda muito apavorado com tudo aquilo resolvi ficar em
silêncio, mas como ainda era possível ouvir algumas gargalhadas vindas daquele
lugar onde os outros jovens ainda se encontravam, mesmo diante do medo, isso de
alguma forma acabou por despertar ainda mais a minha curiosidade. Perguntas e
hipóteses surgiam aos montes em minha mente, mas sem me levar a qualquer
conclusão plausível. Passados alguns minutos lá estava eu de olhos bem abertos ainda
pensando sobre aquele local macabro.
Apesar de estar muito temoroso
resolvi ir até aquele lugar e averiguar mais de perto o que estava a ocorrer. Quando
lá cheguei fiquei atrás de umas moitas e consegui observar algumas coisas. Por
algum motivo as pessoas as quais pareciam cansadas começavam a se revigorar.
Logo um amontoado de gente se levantou e prosseguiram a ouvir aquele barulho
insuportável, alto e ritmado, e esses claramente só poderiam estar
hipnotizados. Eram como verdadeiros mortos-vivos a caminhar de um lado para o
outro. Tudo era acompanhado por gritos enquanto outros riam de coisas sem
sentido. Será que estariam rindo do sofrimento das outras pessoas? Eu já não
mais me enganava... Aquilo tudo fazia sim parte de algum ritual urbano e muito
do macabro!
Vi como alguns gritavam e se movimentavam em volta de uma
espécie de fogueira, mas essa não era como as que eu conhecia. Aquela coisa
parecia planar no céu e aquilo só poderia ser obra de alguma bruxaria.
Possivelmente deve causar alguma hipnose em todos, pois os que ali estavam não
conseguiam tirar os olhos da mesma enquanto seguiam a adorar aquelas chamas. Percebi
também como saia muita fumaça do chão e aquilo era muito intrigante, afinal de
contas, ou era um incêndio ou então eu não sabia de onde aquilo estaria saindo.
Eu me questionava se aquilo seria algo estando a escapar do inferno?
De uma caixa mágica retiravam aquelas poções que devem
conter algum encantamento, pois aqueles a engolirem tal líquido rapidamente
ficavam loucos ou possuídos. Alguns homens colocavam alguns curiosos grãos
nesses copos e então, enquanto uns pareciam cansados e vinham a desmaiar, outros
vieram a revigorar suas energias e assim, voltavam a pular e a gritar coisas
sem sentido. Tais sementes só poderiam estar envenenadas, imaginei comigo mesmo.
Num outro canto havia alguém cortando pedaços de carne e colocando-as em uma segunda
fogueira. Naquela altura dos acontecimentos eu só pude imaginar aquilo como
sendo partes de gente morta, já que tinha um monte de gente caída próximas
daquele sujeito a portar em suas mãos uma faca banhada em sangue. Sim, aquilo
só poderia fazer parte de um ritual macabro!
De repente outra cena veio a me chamar a
atenção. Algumas mulheres desmaiaram e alguns homens as levavam para dentro de algum
lugar. Instantes depois se ouviu as garotas gritarem o seguinte: Pare, pare, não me mate. Mesmo diante
dos berros ninguém ia socorrê-las e passados alguns minutos essas cessaram seus
pedidos por ajuda. Pude perceber um dos caras comentando o seguinte: Ele deve ter acabado com ela... Como
assim acabado com a garota? Possivelmente o rapaz matou a moça e ninguém fez
nada para defendê-la? Para minha surpresa aqueles jovens seguiam rindo como se
tudo aquilo fosse algo normal. Só podem estar possuídos...
Alguns instantes depois um daqueles homens saiu do tal
local restrito e estava a fumar algo, mas nenhuma garota estava junto do mesmo.
Um dos jovens perguntou pela moça, porém esse veio a responder o seguinte: É... Eu acabei com ela! Após ouvir tais
palavras só pude chegar a uma única conclusão. Ele havia matado aquela mulher e
tudo aquilo era culpa daquele maldito ritual!
Não demorou muito e novamente quase todos
haviam caído no chão. Os mais fortes tratavam de arrastar os desmaiados para próximo
do rapaz claramente incumbido de cortar e preparar a carne daqueles que estavam
mortos. Para tornar aquilo ainda mais pavoroso eu tive de aceitar que aquelas
pessoas estariam se alimentando de seus próprios semelhantes e pensar sobre isso
era algo pavoroso.
Nesse instante, depois de ver tanta
coisa assustadora, decidi voltar para a minha casa e o fiz a passos largos e
correndo o máximo que eu podia. Em momento algum olhei para trás, afinal,
faltava coragem para isso. Assim que fechei a porta de meu lar, a tranquei e
com alguma dificuldade em puxar o ar, tentei me acalmar um pouco, pois agora acreditava
estar seguro.
Alguns segundos depois eu escutei uns
passos acompanhados de muita gargalhada e ao olhar por trás da cortina, vi que algumas
daquelas pessoas presentes naquele lugar estavam a passar bem em frente a nossa
casa. Eu apenas gostaria de saber como elas estavam depois de participarem do sinistro
ritual. Entretanto, a cena a ser vista me deixaria ainda mais assustado. Dois
homens arrastavam uma terceira pessoa apoiada em seus ombros, mas o pior foi
quando vi haver alguma coisa vermelha na camisa daquele a ser carregado. Na
minha mente aquilo só poderia ser sangue e como a mancha estava logo abaixo da
boca deste, bem no meio de seu peito, tudo me levou a crer que o sujeito ou
estava muito ferido ou só poderia estar morto. Mesmo receoso fiquei
acompanhando a cena para ver o que iriam fazer com o corpo daquele estranho. Observei
também como os dois rapazes riam muito enquanto tomavam daquela estranha bebida.
Aquilo só poderia ser uma espécie de poção, pois quanto mais tomavam, mais davam
risadas de coisas alheias e sem sentido. Sim, deveriam estar enfeitiçados.
Ao acompanhar tal cena eu já estava
certo sobre esses caras estarem ali para jogar aquele corpo no local abandonado.
Porém, antes de o fazerem, foi quando um dos rapazes olhou em direção a minha
janela e meu coração gelou imediatamente. De tanto medo que fiquei até me escondi
atrás da cortina. Para o meu alivio escutei o barulho de portas sendo fechadas
e então pude ver os jovens jogarem o possível sujeito falecido sobre a caçamba
de algum veículo e se deslocarem para longe. Ali ao menos eu estava a salvo.
Apavorado, corri até próximo do
telefone, afinal de contas, crimes estavam acontecendo e eu não poderia mais me
omitir quanto a isso. Obviamente que eu pensei em ligar para polícia, mas temi
que aqueles caras pudessem voltar e assim eu pudesse vir a ser a próxima
vítima. Mas e aquele rapaz, será que realmente estaria morto? Se sim, então o
que fizeram com o corpo? E aquelas garotas e todos os outros também teriam encontrado
o mesmo fim? Cansado de pensar em tudo aquilo decidi ser a hora de procurar
pelas autoridades e avisar sobre o ritual macabro acontecendo e sendo acompanhado
daquele som assustador e dos crimes ocorridos naquele lugar.
Após discar e passados alguns
toques, uma mulher me atendeu:
– Polícia, boa noite, em que posso
ajudar?
– Alô... É que está acontecendo um
ritual pavoroso aqui! É um ritual urbano!
Eles estão dando uma poção envenenada e tem um monte de gente morta para todo o
lado, então mandem todos os policiais que estiverem à disposição!
– Cidadão, se acalme, não estou entendendo nada de que está
dizendo! – Respondeu a atendente e isso me deixou ainda mais nervoso.
– Desculpa, moça, estou apavorado. É que tem gente morrendo
nesse ritual satânico!
– Ah, sim... Um ritual... – Disse a mulher, mas curiosamente
senti como se ela não estivesse acreditando em mim. – Não temos como averiguar
isso nesse momento, mas assim que possível mandaremos alguma viatura aí.
– Certo, mas sejam rápidos! – Disse para a atendente em
meio ao meu desespero.
Sem ter mais o que fazer sobre aquilo fiquei a aguardar
pela chegada da polícia, mas isso viria a demorar em acontecer. Eu já nem sabia
mais no que pensar diante de toda aquela loucura acontecendo naquela cidade e o
fato de ninguém sair das suas moradias para ajudar tais pessoas. Lá, os poucos
jovens ainda a estarem de pé seguiam adorando a fogueira flutuando no céu e
dizendo coisas sem sentido acompanhados daquele som pavoroso com suas vozes
graves, desafinadas e sem dizer nada com nada. Aqueles jovens só poderiam achar
aquilo como sendo algo normal devido a ação do efeito da poção servida naquele
ritual pavoroso.
Infelizmente já parecia ser tarde para as jovens, uma vez
que todas elas já haviam caído no chão ou tinham sido levadas para aquele local
onde certamente aconteciam coisas macabras, vindo a sofrer o mesmo destino das
outras. A morte!
Já tinha percebido que não havia mais
esperanças para aquelas pessoas, foi quando muito tempo depois pude perceber que
finalmente uma viatura da polícia tinha chego no local do ritual. Curioso,
tomei coragem e fui até o quintal na intenção de escutar ou ver alguma coisa. Os
policiais abordaram algumas pessoas que ainda estavam de pé e essas carregavam
aquelas sementes envenenadas. As autoridades questionaram a eles sobre uma denúncia
de ali estar ocorrendo a prática de algum ritual do mal. Era eu quem tinha
feito aquilo e então fiquei com muito medo, pois eu poderia até ter de ser uma
testemunha chave.
Finalmente vi a polícia entrar em ação. Enquanto alguns
foram presos, outros tantos foram levados em ambulâncias, esses talvez feridos,
desmaiados ou quem sabe até mortos. Algumas autoridades encontraram os corpos
das garotas e as levaram para algum lugar, quem sabe um hospital, pensei. Se
estavam vivas era difícil de se ter certeza.
Então os policias vieram a parar
frente à minha casa e temi que fossem me abordar. Porém, estavam apenas conversando
sobre o ocorrido.
– Mas que loucura aconteceu aqui? –
Indagou um deles.
– Ainda não sei dizer, mas essa denúncia
maluca foi de suma importância para a ação desta noite!
– Pois é! Esses jovens não têm mesmo
limites... – Observou o primeiro.
– Eles sabem que essas balas são proibidas. – Alegou o outro.
– Mas o pior foi as garotas dizendo
que foram obrigadas a fazerem o que não queriam... Isso é violência e abuso
sexual, fora a quantidade exorbitante de álcool e de drogas altamente perigosas
que estes caras tinham aqui.
– Infelizmente isso já parece ser
algo normal nessas festas. Eles bebem, se drogam, passam dos limites e aí acontecem
coisas como essas dessa noite.
– Ao menos desta vez, por causa da
ligação do caipira maluco, o caso de hoje terá um rumo diferente! – Afirmou
este.
– Como foi mesmo que o caipira disse
a atendente quanto ao que estava acontecendo aqui? – Questionou um deles em tom
de deboche e então os dois gargalharam.
– Espera, eu me lembro exatamente do
que disseram quando nos alertaram para virmos aqui... Vai lá atender e ver do
que se trata esse tal de um ritual urbano...
E logo após dizer isso, acompanhados
de altas gargalhadas, os homens voltaram para a viatura e foram embora. Fiquei
confuso com a atitude e as palavras deles, mas estava tranquilo, pois tudo
tinha voltado ao normal e de uma forma ou de outra, acabei por contribuir para
o fim daquele ritual urbano.
Bruno Olsen
Cristina Ravela
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