3x09 - Faces da Confiança
de Túlio Tosati
Em
uma cidade do interior mineiro, o sino da centenária igreja matriz toca de
forma disparada e atípica logo que amanhece. O soar do sino se intercalava com
som dos apitos policiais e o movimento de repórteres, detetives e legistas. As
violetas e margaridas do canteiro da praça central se contrastavam com o tom de
amarelo e preto dos cordões de isolamento que serviam de cisão entre curiosos
em prantos e uma mancha de sangue já ressecado nas pedras sabão que ladrilhavam
as ruas do centro histórico.
Na
noite anterior um morador de rua que dormia em um gélido banco de concreto da
praça, despertou com o tilintar das esferas do interior de uma lata de spray de
tinta, tilintar este que fora seguido pelo som de jatos de tinta lançados
contra a parede da centenária igreja. Ao
remover o seu cobertor desgastado de sobre a cabeça, pôde observar apenas a
silhueta de um homem sumindo no meio da neblina e ouvir o som dos passos
apressados que foram tornando-se cada vez mais baixos e distantes. Movido pela
curiosidade ajoelhou-se sobre o banco para ver o que teria sido escrito na
imaculada fechada da matriz. Ele se deparou com uma frase incompleta, composta
por letras assimétricas e escorridas, que diziam: “Polegares, polegares onde
estão...”. Ao baixar sua visão pôde notar um volume envolto numa manta preta no
meio da rua que cortava entre a igreja e a praça. Ao se aproximar da beira da
rua, teve sua feição tomada pelo horror.
Segundos de silêncio se passaram, até que foram rompidos por gritos de
pedidos de ajuda que, se caso ouvidos, foram ignorados por completo pelos
moradores ao redor. Recuperando um pouco de seus movimentos, que haviam sido
travados pelo choque do que tinha visto, correu até o telefone público do outro
lado da praça e discou o número da polícia local. Do outro lado da linha, uma
voz apática soltou um decorado e formal discurso de identificação— que dizia:
—
38º batalhão de polícia, cabo Jonas falando, em que posso ajudar?
—
O padre Jean! Socorro! — Disse o morador de rua com uma voz trêmula e
insustentável.
Dotado
de seus treinamentos acerca de atendimentos a emergências, cabo Jonas solicita
calma ao homem e pede para ele se identificar. Um pouco mais tranquilo o
morador de rua responde:
—
meu nome é José Carlos. Alguém matou o padre Jean e jogou o seu corpo na rua à
beira da igreja — Disse José Carlos de forma simplória e amedrontada.
—
permaneça onde está Sr. José, que uma viatura está a caminho. Orientou de forma
apressada, porém atenciosa o cabo Jonas.
Em
exatos sete minutos a praça se iluminava com as luzes da viatura policial. Desembarcaram
dois soldados que foram logo se aproximando do corpo. Munidos de lanternas, assentiram um para o
outro, com um silencioso aceno de cabeça. Realmente era o corpo do padre Jean,
no entanto, ao olhar em volta notaram que o autor da chamada de emergência já
não se fazia presente, conforme lhe fora orientado.
Imediatamente acionaram pelo rádio da viatura
o serviço legista e os detetives da polícia civil, procedimento de costume em
situações de investigação de homicídio. A equipe chegou rapidamente. Era
chefiada pelo delegado Medeiros, senhor já no fim de uma gloriosa carreira
policial, que mesmo com a sua vasta experiência com a morte, levou a mão aos
ralos cabelos brancos e disse:
—
Por que o padre Jean? Quem faria uma barbárie dessas? — Já posicionando a equipe,
orientou aos legistas que fizessem os registros descritivos e fotográficos mais
ligeiramente, para que se recolhessem o corpo antes de amanhecer.
—
Uma figura pública e amada como o padre não pode estar aqui na rua quando o dia
amanhecer — “lençol branco e fitas de
isolamento não iram conter a multidão e os abutres da imprensa”, pensou o
delegado Medeiros.
Ao
retornar à viatura de forma discreta pegou o telefone e ligou para a central,
solicitando a presença de três detetives em especial.
—
Quero meus três melhores homens neste caso — ele disse, de forma autoritária. —
Não me interessa se o Caruso está de férias, o quero neste caso — E desligou
bruscamente.
Ao
nascer do sol, toda a cidade já sabia do ocorrido e os três detetives
solicitados pelo delegado Medeiros já estavam na porta da igreja trocando
informações com os outros policiais.
—
Bom dia Hugo — cumprimentou o detetive Paulo — Caruso! Vejo que o delegado
interrompeu as suas férias — ironizou Paulo, com uma entonação de humor.
—Verdade Paulo, mas como vocês já sabem a minha
função é investigar. Já não aguentava mais pescarias malsucedidas e cervejas no
horário do almoço.
Após
ter dado um irônico suspiro de alívio, Caruso respondeu, gesticulando a sua
esferográfica:
— Muito prestativo esse Caruso. Por isso que é
o nosso melhor detetive — falou Hugo.
Caruso,
Hugo e Paulo eram amigos de longa data, se conheceram ainda nos preparativos
para o concurso da academia de polícia e desde então construíram uma amizade
que envolvia o lado profissional e o pessoal de suas vidas. Hugo, um pouco mais
novo que os dois amigos, era dedicado à polícia e amante dos estudos,
procurando sempre se superar. Contudo, possuía um caráter muito introspectivo e
uma vida social bem pouco movimentada. Paulo já era um cara mais agitado,
divorciado de um casamento bem conturbado; atravessava a crise de meia idade
regada a noitadas com diversas parceiras, mas, sabia muito bem separar o lazer
do trabalho. Caruso era conhecido por toda a corporação e por grande parte da
cidade, sendo amigo de todos. Ele parecia falar a língua dos diversos setores
da delegacia. Casado a doze anos, possuía um discurso e uma persuasão
superconvincente, qualidade que volta e meia era aplicada a alguma desconhecida
no barzinho do happy hour, ferindo os laços de seu matrimônio. Porém era tão
amado por todos que conseguia se safar dos seus erros sem atrair olhares de
julgamento. Caruso possuía o dom de falar aquilo que as pessoas queriam ouvir
no momento e aparentava ter uma opinião sobre qualquer assunto. Profissionalmente,
se destacava pela carreira impecável e pela vasta lista de crimes solucionados,
sempre com a companhia de seus dois parceiros Hugo e Paulo. Devido a essas
características que os três apresentavam, rolava-se um murmúrio nas entranhas
da delegacia que afirmava que o Delegado Medeiros tiraria o seu sucessor à
chefia desse trio de detetives e, com isso, um ar de disputa se instaurava em
toda delegacia, mas nada se comentava entre os três amigos, a não ser algumas insinuações
de Caruso aos demais, dizendo que qualquer um dos três seria um ótimo Delegado,
mas, não tão bom quanto o “grande Medeiros”.
Os
três detetives colheram as informações com os peritos e se dirigiram ao I.M.L
da cidade para acompanhar a inspeção do corpo. Ao sair com o carro de forma bem
cuidadosa devido à multidão que rodeava a praça, podia- se ouvir os gritos de
pedido de justiça e rezas de condolência. Paulo, com a mão esquerda no volante,
gesticulava a mão direita, hora na direção de Caruso ao seu lado, hora para
Hugo no banco de trás.
—
vocês viram aquela pichação? — dizia Paulo. — A polícia contou que o autor
daquele vandalismo possivelmente seja o mesmo que deixou o corpo do padre na
rua.
— E o mendigo que acionou a polícia? — Perguntou
Caruso. — O que vocês acham dele?
— há, com certeza teve medo de levar à culpa,
por isso não quis esperar a polícia — respondeu Hugo.
— Ou chamou a polícia para despistar o seu
malfeito — Completou Caruso.
Após
segundos de silêncio, Paulo diz de forma retórica:
—Que
merda é aquela de polegares, cara!Que diabos isso significa?
Ao
chegar ao necrotério, os detetives foram recebidos pela doutora Heloísa, que,
enquanto levava-os em direção ao corpo,perguntava aos detetives se eles já
tinham alguma resposta.
—Por
enquanto só temos perguntas — disse Caruso.
—
E a doutora irá responder algumas — acrescentou Paulo.
Ao
chegarem à câmara fria, a doutora pegou a alça do gavetão e, antes de puxar,
olhou fixamente para os três, como se pedisse autorização para revelar o corpo
pálido e desnudo do padre Jean. Em um só movimento, puxou a gaveta que ao abrir
fez um som estridente, ecoando por toda a câmara. Hugo mal olhou para o corpo
frio e azulado. Puxando a gola de sua camisa ele disse:
— Acho melhor eu ir às ruas para localizar a
testemunha que ligou para a polícia — gaguejando, concluiu: — passarei no
batalhão e tomarei informações do policial que atendeu a chamada — nem esperou
resposta sobre suas afirmações e saiu apressadamente.
Caruso e Paulo olharam um para o outro e
franziram as sobrancelhas de forma sincronizada, fazendo parecer que o
movimento havia sido ensaiado.
—
Nervosismo não é? — disse a doutora de forma despojada.
Hugo já havia se deparado, ali mesmo naquela
prancha, com tantos outros cadáveres em estado bem pior do que o do padre.
—
Deixa o menino — advertiu Caruso. — Deve estar num dia ruim. Paulo não soltou
uma só palavra.
Ao
começarem a examinar o corpo, a doutora, ao passar as informações que havia
descoberto, foi interrompida por Caruso que disse de forma agitada:
—
Polegares Paulo! O padre está sem os polegares.
Paulo
olhou para as mãos do corpo.
— Exatamente! — a doutora retoma a palavra. — Os
polegares foram decepados e pela coagulação do sangue, o padre ainda estava
vivo. Além disso, um tiro de calibre 38 que atravessou sua cabeça bem no meio
dos seus olhos. Algumas escoriações nas mãos, que são resultantes de uma inútil
resistência do momento do corte dos dedos.
—
Doutora, alguma amostra debaixo das unhas do padre? — indagou Paulo.
—
Nada de importante ou que o ligue ao assassino nem nas unhas e nem no restante.
Quem fez isso sabia como agir.
Caruso
pegou o telefone, dizendo que iria ligar para o Hugo e pedir para que ele
investigasse sobre algum relato de som de disparo. A doutora completa dizendo
que a hora da morte não batia com a hora em que o corpo fora encontrado na rua.
Alegando que o corpo tinha sido deixado lá algum tempo depois de morto, Paulo a
interrompeu dizendo: — Então devemos encontrar a cena do crime.
Ao
sair do necrotério, Paulo recebeu uma ligação da síndica do prédio em que mora
pedindo para que ele fosse lá imediatamente e que não iria dar detalhes por
telefone. Mesmo com muita insistência de Paulo, a síndica não falou do que se
tratava, deixando Paulo expressando uma mistura de fúria com curiosidade.
— Paulo, vá de carro até seu apartamento e
veja do que se trata — disse Caruso. — Pegarei um táxi até a praça da igreja e
perguntarei sobre o mendigo que é a nossa suposta testemunha. — E assim
fizeram.
Ao
chegar à praça, Caruso mal começara o seu serviço investigativo e já fora
interrompido por uma ligação de Paulo, que muito agitado dizia:
— Caruso! Os polegares!
—
O que é que tem? — questionou Caruso, correspondendo o mesmo tom de desespero
de Paulo.
—
Apareceram em minha caixa de correspondência.
—
Estou indo aí! — disse Caruso, desligando o telefone e levando os dedos à boca
para assoviar para um táxi.
Ao
chegar ao condomínio de Paulo, Caruso mal descia do táxi e já avistava Paulo
vindo à sua direção, esbravejando e transpirando muito, com uma das mãos a digitar
no telefone enquanto a outra carregava um envelope pardo com o fundo manchado
de sangue coagulado. Na parte exterior estava escrito à caneta: “...aqui estão.”
Ao
se aproximar de Caruso, Paulo entregou-o o envelope e disse:
—
Olha isso — vagarosamente Caruso abriu o envelope enquanto franzia a testa e
distorcia os lábios numa expressão de nojo.
Lá
no fundo estavam os dois dedos polegares, roxos e emanando o cheiro da podridão
oriundo da morte. Enquanto Caruso olhava, Paulo explicava que a síndica ligara
porque os moradores reclamavam do cheiro de podre que empesteava a portaria e daquele
grotesco filete de sangue que escorria de sua caixa de correio. Assim que
terminou de falar, um morador que se dirigia ao estacionamento do prédio se
aproximou. Caruso então endereçou outro olhar para o envelope.
— Roedores! — disse ele em voz alta, com um
sorrisinho desbotado. — Foi morrer logo dentro da sua correspondência!
Paulo,
guiado pela expertise de Caruso respondeu:
—
Vai saber meu amigo...
—
melhor ninguém saber disso por hora — sussurrou Caruso. — Inclusive o Hugo. Ele
está muito estranho e como já te disse antes, não confio nele. Aliás, onde ele
está?
— Justamente o que eu queria saber! —
completou Paulo, enfurecido. — Liguei para a delegacia onde ele disse que
estaria e ele nem passou por lá. E o telefone dele só chama.
— Muito estranho né? — observa Caruso, desconfiado.
Horas
depois, do outro lado da cidade, trancado em seu apartamento estava Hugo com um
envelope que ele havia encontrado em seu armário pessoal na central. Nele
continha uma arma calibre 38 e um cortador de charutos sujo de sangue. Hugo
sabia que se tratava da arma que matara o padre, mas se indagava sobre como
iria explicar que aquilo havia aparecido em seu armário. Seus perturbadores
pensamentos foram interrompidos por uma ligação de Caruso.
—
Caruso o que eu faço? — disse ele, desesperado.
— Fica calmo e de bico calado! — respondeu
Caruso, em tom autoritário. — Apague a mensagem que me mandou sobre isso e
esconda essa arma. Há! E não conte nada para o Paulo. Já te disse que não
confio nele né?!
Hugo confirma com uma voz trêmula.
— Tenho que desligar agora — conclui Caruso. — Descobri o paradeiro da testemunha. Irei interrogá-lo e assim resolveremos isso.
Imediatamente
o telefone de Caruso toca. Ao olhar a tela, viu escrito “Chefe Medeiros” e
engoliu em seco.
— Fala Chefe, Caruso na escuta.
Medeiros
do outro lado responde:
—
Caruso, preciso ter uma conversa séria com você, mas, necessito de sigilo da
sua parte. Trata-se de dois detetives da nossa central e que por acaso são seus
parceiros.
—
Pode contar com o meu silêncio chefe — responde Caruso, preocupado. — Aconteceu
alguma coisa?
—
Vou ser direto com você. Recebi um bilhete anônimo em minha casa dizendo que
Paulo e Hugo estão envolvidos no assassinato do padre. Há a possibilidade de
ser um trote, porém, eu sei do desentendimento de Paulo com o padre Jean devido
à intromissão da igreja no término de seu casamento.
—
Mas, chefe! O senhor acha que...
—
Meu amigo, nunca confie totalmente em ninguém. Irei mandar duas viaturas em
suas casas só para desencargo de consciência.
—
Pois faça isso! Vá e perca o seu tempo!
Ao
anoitecer, Caruso foi para o centro da cidade, desceu para debaixo de uma ponte
onde estava a sua espera uma figura que foi surgindo na escuridão por de trás
de algumas caixas de papelão.
—
Você é mesmo um idiota Fred? — disse Caruso, com a arma em punho. — Porque
matou o padre?
Com
uma voz rouca, Fred respondeu:
—
Foi um acidente. Fiz tudo como o senhor pediu, mas o padre arrancou a minha
touca e me reconheceu no momento que eu cortava seus dedos. Aí eu apaguei o
velho. Mas cortei os dedos e coloquei lá onde combinamos junto com as armas.
Até vi quando o senhor passou de madrugada e pegou os envelopes. Pelo visto deu
certo, porque vi a notícia hoje que dois detetives foram presos porque a
polícia encontrou provas que ligavam os dois à morte do padre.
— É. Consegui plantar as provas com facilidade
e enviar um bilhete anônimo à casa do delegado. Quanto ao José Carlos, aquele
que me viu na praça?
— Já dei um sumiço limpo nele. Ninguém vai
sentir falta daquele Zé ninguém.
Caruso abriu um sorriso e disse:
—
Agora só resta uma ponta solta nessa história — apontou a arma e, assim como Fred
fizera ao padre, Caruso tirou sua vida com um tiro entre os olhos.
Dias
depois, estava Caruso em seu discurso de posse.
— Agradeço a todos pela promoção! — dizia ele,
satisfeito. — Certa vez o delegado Medeiros ensinou-me que não devemos confiar
totalmente em alguém. Esse fato só serviu para confirmarmos isso. E como meu
primeiro caso no cargo de delegado, não irei descansar até descobrir quem
assassinou o Sr. Fred embaixo da ponte.
A multidão o aplaudiu.
Bruno Olsen
Cristina Ravela
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