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Cine Virtual: O Voo

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Sinopse: Há pessoas que por medo preferem ser leves... mas a leveza é insustentável para quem é vazio. Almas assim vivem perdidas em valores distorcidos, mas pensam haver conquistado o melhor dos mundos. Esta é a história de uma delas. E sobre o incomensurável valor do tempo para quem tem pressa de chegar a lugar algum...



O Voo
de Alice Castro


Ele desceu do Uber já em frente às escadas para embarque em Congonhas. Tinha pressa e, como de costume, não perder tempo era uma das suas prioridades.
Desde bem cedo ele achava que o seu dia devia ser produtivo, e com o passar dos anos só mudaram as atividades... brincar, estudar e trabalhar foram os verbos que marcaram épocas da sua vida.
Subiu rapidamente pelas escadas, sem ao menos cogitar o uso de elevador ou escadas rolantes. As escadas eram o exercício que se permitia ainda que o atrasasse para o próximo evento; afinal, academia não era prioridade, mas estar em forma, sim.
Entrou na triagem das malas calculando mentalmente onde se posicionar para pegar a menor fila. Achava inconveniente esperar famílias com crianças ou idosos passarem pelo detector de metais. Era um atraso que ele optou por não ter, ainda. Mantinha-se solteiro para não ter que passar por nada que lhe tirasse o sono, preocupasse ou o aborrecesse.
Estava feliz assim. Namorava quem queria, mas desde que não atrapalhasse seus planos profissionais ou a ordem da sua vida.
Era um cara “pintoso”, ele mesmo achava. Sempre bem arrumado, limpo, bem cuidado. Dentes brancos e ternos caros eram seus cartões de visita.
E pontual. Sempre.
Por isso acreditava ser bem-sucedido.
Entrou no saguão principal do embarque. Seu portão era o 4, o que era ótimo pois era bem em frente. Não perderia tempo andando pelos corredores.
Na verdade essa viagem não considerava tão importante. Ia apenas rever sua família em Belo Horizonte, onde seus pais moravam.
Não tinha mais vínculos com quem quer que não fossem com seus pais e irmãos, por entender ser desnecessário manter laços com primos, tios e afins, uma vez que não teria tempo para encontrá-los.
Mas seus pais ele ainda via, ainda que raramente. E com eles ainda conversava, por telefone (quase) apenas. Sem muitas visitas ou particularidades, os assuntos eram sobre o tempo e saúde. Sentia-se obrigado, pois o chavão de ser um bom filho ainda repercutia na sua memória adulta.
Sentou-se próximo à fila dos passageiros com “artigos pessoais”.
Ele aprovava a medida das companhias aéreas em separar quem tinha bagagem e quem não tinha, uma vez que pessoas organizadas como ele não perderiam tempo com o transporte de malas de mão para dentro da aeronave, atrasando o embarque.
O voo estava no horário, o que era ótimo. E ele se permitiu olhar seus emails. Nenhum remetente importante, apagou todos os “não lidos” sem ler.
Abriu seu instagram. A primeira foto era dela, e ela estava simplesmente linda, com suas tranças bem ali à sua frente, sentada em sua Harley sorrindo para a tela do iPhone.
Fechou imediatamente o insta. Não queria vê-la. Não hoje. Talvez nunca mais. Ele havia decidido que apaixonar-se por aquela moça aventureira havia sido uma grande distração na sua vida. Infelizmente estava sofrendo por isso, pagando o preço por ter se deixado conhecer uma pessoa tão diferente de si mesmo.
Suspirou.
Nesse instante, anunciaram o embarque. Ele levantou-se e se posicionou em primeiro lugar na sua fila. Tinha pressa em entrar na aeronave para não esperar em pé no corredor atrás de quaisquer passageiros com mala.
Caminhou até a porta do avião refazendo a agenda da semana, quando voltasse a São Paulo. Fecharia novos contratos, ganharia mais dinheiro.
Já havia fechado mais uma meta de um milhão em sua conta de depósitos. Suas aplicações rendiam bem e logo seria um homem mais rico. Quem sabe batesse seu recorde e fechasse mais um milhão ganho em 2019?!
Essa expectativa o fez sorrir e ele encontrou seu assento na primeira fileira. Dava-se o luxo de ser preferencial sempre, o que lhe proporcionava conforto e, lógico, economia de tempo.
A vida era boa.
Apertou os cintos e tentou relaxar, colocando os fones de ouvido para não precisar observar quem mais entrava.
Conversar com estranhos era algo que só se permitia a trabalho, vendo nisso uma oportunidade de descobrir como ganhar mais dinheiro. Caso contrário, era perda de tempo, assim pensava.
A música clássica que tocava o envolveu e ele esqueceu de onde estava.
E assim, do jeito como estava, ele não viu o casal que passou aflito com suas malas e os dois filhos pequenos, sentando-se na fileira atrás. Ele não viu o suor dos rostos dos pais quando enfim sentaram-se e abraçaram amorosamente seus filhos. Também não sentiu a felicidade infinita que deles emanava por estarem juntos, voltando para casa.
Ele não viu a mochileira passar cantando e sentar-se na fileira ao lado, completamente feliz pela expectativa de mais uma escalada que faria nas serras de Minas com suas amigas de infância.  
Não viu o casal idoso que entrou pé ante pé na aeronave e se sentou ao seu lado, um cuidando do outro, de modo devagar e sem pressa até atarem seus cintos e darem-se as mãos. Após 60 anos juntos, eles ainda se amavam, e sabiam que até o final de seus dias seria assim.
Ele não viu nada, nem o tempo passar.
Sem ver quem entrava ou saía, sentia-se bem, e como sempre sozinho. Porque sozinho era o estado em que se colocava para ter todo o tempo do mundo, sem ter que perder tempo com o que não lhe interessava.
E sozinho ficou sentindo a aeronave taxiar pela pista e em segundos decolar.
Foi quando o frio o envolveu, e uma dor gigante tomou conta do seu peito, em uma onda crescente, cada vez mais penetrante, explodindo o seu coração.

E assim, quieto como estava, sozinho como estava, ao som da sua música clássica, ele estremeceu. Sem sonhos realizados, sem ninguém que o amasse ao seu lado, ele adormeceu. E ele morreu.


Conto escrito por
Alice Castro

Produção
Bruno Olsen
Carlos Mota

Cristina Ravela


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


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