O Combativo
de Eduardo Canesin
Todo grande herói tem uma origem trágica e, certamente, o Combativo
(nome provisório) não seria exceção: o guerreiro da justiça surgira com o firme
propósito de se vingar de uma grande perda.
O problema é que a perda desse herói era a esposa, a qual falecera de
causas naturais, com oitenta e cinco anos. Ele, com oitenta e sete, não estava
no auge de sua forma física, o que dificultava sua cruzada contra os inimigos.
E, para piorar, não tinha alguém de quem se vingar: se a esposa morreu de
causas naturais, quem ele deveria combater? A própria morte? Dificilmente o
protagonista seria tão ousado a essa altura de sua vida.
Por conta disso, decidiu que deveria combater um inimigo mais palpável:
os comunistas. Essa lhe parecia uma ótima decisão, já que todo mundo falava mal
de comunistas (ainda que eles não existissem há várias décadas).
E, assim, Eufrásio (nome civil do Combativo) iniciou sua missão. Após
refletir um pouco, decidiu que não queria dedicar-se a treinamentos, pois isso
só consumiria seu tempo e, pelas suas expectativas, não tinha muito mais desse
bem tão escasso: somente cerca de três anos (estimava morrer aos noventa) para
acabar com todos os comunistas do mundo.
Comprou um arco e flecha, já que não quiseram lhe vender armas de fogo,
e decidiu executar os inimigos ao mesmo tempo que aprendia a usar a arma:
adquiriu muitas flechas para que, se errasse os tiros, não faltasse munição.
Sua aposentadoria, naquele mês, não deu para pagar os inúmeros medicamentos –
mas garantiu flechas bem afiadas.
Eufrásio comprou, também, um facão, mas como se cortou pouco tempo
depois, acabou desistindo de usá-lo. Só o arco e a flecha já bastariam.
Numa noite quente de verão – já que ele não saía de noite durante o
frio, para não pegar pneumonia –, a batalha começou: Eufrásio pegou um ônibus e
foi até onde julgava que haveriam comunistas para serem abatidos: o teatro do
bairro.
Aguardou o fim de um espetáculo até as 21h00 e, como a peça ainda não
tinha acabado e ele estava ensonado, resolveu voltar para casa. O embate foi
adiado por um dia, embora ele já considerasse que a batalha estava em
andamento.
No dia seguinte, saiu de casa mais cedo, às 13h00, por perceber que
comunistas não trabalhavam, por isso poderiam ser encontrados no teatro a
qualquer momento. Refez o trajeto com cautela, esperando ansiosamente para
tornar o mundo um lugar melhor (isto é, sem comunistas).
O idoso viu, no beco ao lado, um rapaz magro que usava saia e tinha o
cabelo comprido. Seu radar interno soou alto: certamente era um comunista.
Assim sendo, pegou seu arco e colocou a flecha na corda. Enquanto mirava o
alvo, perdeu o equilíbrio, caiu e bateu a cabeça. Ficou internado por duas
semanas.
Por uma curiosa ironia, o rapaz que seria o alvo de Eufrásio, sem saber
que era o alvo (mas suspeitando disso), compadeceu-se do desajeitado idoso e
passou a visitá-lo. O Combativo percebeu, então, que talvez comunistas fossem
boas pessoas. Estava a um passo de desistir dessa história de ser herói e
aceitar a aposentadoria como uma pessoa comum, passando as horas na frente da
televisão.
O rapaz de cabelo comprido, que se chamava Tomas, teve uma outra ideia e
sugeriu que Eufrásio dirigisse sua ira contra outros inimigos: milicianos que
atuavam nas ruas da região.
Qualquer pessoa decente veria a absurdidade da proposta – afinal, quais
as chances de um idoso contra uma milícia? Tomas, contudo, não era uma pessoa
decente: embora não fosse comunista, era um maconheiro inveterado e, por isso,
nem sempre suas ideias faziam sentido.
Eufrásio, que já estava meio senil, interpretou aquilo como um chamado
à ação. Passou a crer que estava destinado a enfrentar esses inimigos terríveis
da moral e dos bons costumes. Só assim, acreditava ele, sua esposa poderia
descansar em paz. A relação entre morte por causas naturais e milicianos não
pode ser entendida completamente por qualquer um que não esteja drogado ou que
não seja muito velho (velho a ponto de perder a razão).
Assim que Eufrásio recebeu alta médica, voltou para casa e traçou os
planos para combater seus novos arqui-inimigos. Dessa vez, todavia, o Combativo
teria a ajuda de seu mais novo parceiro, o Rapaz Erva.
Tomas comprou, para a ocasião, uma roupa apertada da cor verde e uma
capa rosa. Eufrásio, vendo a força moral que uma fantasia trazia, também
decidiu adquirir uma: passou a usar uma camiseta com caveira, um cachecol
vermelho (da cor do sangue, diria ele, tentando soar assustador) e pantufas
pretas (da cor da morte, diria ele).
E, assim, a nova dupla estava pronta. O Combativo usaria seu arco e
flecha mortal, enquanto o Rapaz Erva usaria um narguilé chique (Eufrásio não
falou nada porque achava que era uma bomba de fumaça).
Por três noites seguidas eles decidiram combater o crime, mas, por três
vezes, tiveram de adiar os planos: em duas delas, o Combativo estava com sono,
enquanto na última, o Rapaz Erva estava na delegacia, pois foi apreendido com
drogas.
A quarta noite, porém, seria aquela que faria tudo valer a pena: os
heróis se vestiram, jantaram uma refeição leve (sopa de cebolas, a preferida de
Eufrásio) e saíram. Como estavam fantasiados e não queriam chamar a atenção,
decidiram, em vez de pegar um ônibus, chamar um táxi.
Assim que o táxi chegou, deram-se conta de que não sabiam para onde ir,
então desistiram da viagem, o que deixou o taxista furioso, xingando-os com
todo o ódio que sua nobre profissão lhe permitia ter. Os heróis limitaram-se a
dar as costas e voltar para a casa de Eufrásio. No futuro, sabiam eles, aquele
taxista lhes agradeceria por tornar o mundo um lugar melhor.
Acabou que adiaram os planos por mais uma noite. A quinta noite, no
entanto, seria a decisiva: arrumaram-se, motivaram-se para o combate e se
prepararam para sair de casa. Quando estavam na rua, perceberam que, apesar das
fantasias, nenhum dos dois usava máscara, o que poderia fazer com que suas
identidades secretas fossem descobertas, colocando em risco a vida de todos
aqueles que os heróis amavam. Voltaram, então, para a casa de Eufrásio,
enquanto pensavam sobre o visual da máscara.
A sexta noite foi um momento de resolução: O Combativo percebeu que não
amava mais ninguém, já que não tinha filhos e sua esposa morrera. Logo, se
descobrissem sua identidade, não faria diferença. O Rapaz Erva, por sua vez,
tinha apenas uma irmã que o chamava de vagabundo e uma mãe que o expulsara de
casa na noite anterior, ao descobrir que o filho saía com roupa verde e capa
rosa pela rua: se descobrissem sua identidade e as matassem, não faria grande
diferença para ele.
Assim sendo, os heróis decidiram que não usariam máscaras. Além disso,
não pretendiam deixar testemunhas e queriam que os vilões vissem os rostos
daqueles que os matariam.
A despeito disso, os heróis não saíram para combater o crime naquela
noite, pois estavam ocupados arrumando o quarto de hóspedes – que agora seria o
quarto do Rapaz Erva, já que Tomas fora expulso de casa.
A semana seguinte foi período de compras, para que mobiliassem a
contento o quarto do Rapaz Erva. O Combativo sabia que seu aliado merecia um
bom aconchego, já que a atividade contra o crime é bastante exigente: uma cama
macia e quentinha é a recompensa justa para um parceiro de super-herói.
Nos quinze dias posteriores, Eufrásio adoeceu, com um resfriado. O
combate ao crime, obviamente, estava postergado: naquela idade, era necessário
se cuidar, ou uma pequena doença poderia se tornar uma enfermidade extremamente
grave.
O Rapaz Erva, por sua vez, ficou ao lado de seu mentor, cuidando dele o
melhor que podia e aguardando a hora de acabar com os milicianos da região.
A hora de fazer isso, contudo, teve de ser novamente adiada, já que o
jovem ficou doente nos dias posteriores, contaminado pela doença de Eufrásio.
Dessa vez, foi o Combativo quem cuidou de seu aprendiz.
Após ambos melhorarem e tirarem alguns dias de merecidas férias,
decidiram que, na noite seguinte, a batalha definitiva começaria, sem
escapatória. O problema é que, no dia em questão, começou a chover – e ninguém
queria se molhar e correr o risco de uma tuberculose.
Para a sorte dos milicianos, começou a temporada de chuvas e, pouco
tempo depois, veio o frio do outono e do inverno. Ficaram a salvo por mais um
tempo considerável.
Quando o tempo estava melhorando, houve um outro imprevisto: o Rapaz
Erva estava com a agenda cheia, já que o Combativo o matriculara num cursinho
pré-vestibular. Optaram por aguardar mais um tempo até trazer a justiça ao
mundo.
O ano seguinte, todavia, não foi o ano da vingança, pois Tomas entrou
na faculdade e tinha de se dedicar muito para acompanhar as aulas. O Combativo
dizia que o problema estava na maconha, que arruinara os neurônios do seu
ajudante. Por conta disso, teriam de ficar em casa, estudando, em vez de
liquidarem os bandidos.
As férias seriam a época do massacre, mas Eufrásio quis passar um tempo
no campo e precisou da companhia do Rapaz Erva. Talvez nas outras férias
começassem as execuções.
O problema é que não houve outra folga para a dupla imbatível: em
dezembro daquele ano, o Combativo morreu em combate, enfrentando um coração
debilitado pela idade. O Rapaz Erva chorou e jurou que honraria seu mentor,
completando uma missão sagrada: concluir os estudos que seu amigo tanto
insistira para que ele começasse.
No fim, o Combativo tornou o mundo um lugar um pouco melhor.
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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Amei ❤
ResponderExcluirNão fosse o sono de alguém que hora dessas ainda não dormiu, iria escrever um texto com mais algumas linhas tecendo elogios ao seu texto. Vou precisar adiar este plano para mais tarde.