3x12 - Suspeito Incomum
de J. L. Silva
Quando os sinos da catedral
anunciaram a sexta hora do amanhecer de mais um dia, os pombos faziam revoado
em direção às ralas nuvens dispostas no céu, massas translúcidas que pareciam
manchadas de amarelo e laranja pelos primeiros raios de sol.
O vento estava calmo naquela
manhã, uma suave brisa que tocava as faces das pessoas que se movimentavam pela
praça da Catedral da Sé, junto às massas de veículos que percorriam as ruas, num
vai e vem contínuo, quase mecânico.
A senhora caminhava com pressa, enquanto
a revoada dos pássaros assustados pelo badalar dos sinos do belo campanário
cortava os ares. Avistou nos arbustos próximos a uma das árvores, a figura de
uma pessoa que, inicialmente, parecia ser mais um dos mendigos que dormiam por ali,
porém, quando se aproximou, conseguiu ver que se tratava de uma mulher. Havia
uma poça de sangue por baixo do seu corpo, suas roupas estavam rasgadas e sujas.
Apesar de temerosa, a senhora ainda conseguiu reunir forças para tocar a moça e,
ao virá-la, percebeu que ela estava morta, pois tinha um corte profundo na
garganta. O grito de desespero da senhora ressoou por toda a praça, sobressaindo-se
aos ruídos matinais e habituais daquela região.
Marcos ostentava a expressão de
infelicidade que carregava consigo nos últimos seis meses. Estava investigando um
caso difícil, que exigia muito de si, e mesmo trabalhando a finco, não conseguia
concluí-lo e prender o assassino que atormentava a cidade de São Paulo.
Dirigiu-se à cena do crime, cumprimentou alguns policiais conhecidos a fazerem
o isolamento do local, desviou da fita de proteção passando por baixo dela e
seguiu em direção ao corpo.
O perito examinava
minuciosamente o cadáver que jazia no chão de terra fria. Marcos aproximou-se
cuidadosamente para não danificar nada que pudesse ser uma prova, agachou-se
próximo ao corpo e viu as duas grandes moedas antigas caídas ao lado da jovem.
Ela tinha uns vinte anos de idade, era loira e aparentemente bonita, o mesmo estereótipo
das outras vítimas do assassino.
Chamavam-no de O Retalhador,
pois sempre cortava suas vítimas com lâminas. Cortes precisos, sempre em pontos
vitais, às vezes cortava pulsos e virilhas, mas adorava mesmo era cortar o
pescoço; nunca se contentava com isso, era pouco; fatiava-as sem piedade. Sempre
deixava na cena do crime as duas moedas sobre os olhos das vítimas, uma antiga tradição
grega, o preço que Caronte, o barqueiro, cobrava para levar as almas para o
mundo dos mortos.
— Como está a situação? — ele
perguntou ao perito, tirando o lenço do bolso e enxugando a testa suada e
jogando as madeixas grisalhas do seu cabelo para o lado.
— Detetive Marcos Santiago... a
situação está feia... parece-me que não é uma vítima do Retalhador.
— Deixe que eu decido isso, apenas
continue.
— Corte profundo até o meio da
garganta, mas um corte muito malfeito.
Marcos guardou o lenço no bolso,
coçou a barba gris e ajeitou os óculos no nariz.
— Por que ele cortou o pescoço pela metade?
— Não sei, detetive... talvez porque
a lâmina estivesse cega, ou, então, porque alguém apareceu na hora do crime... quem
sabe tenhamos alguma testemunha.
— Esse cara matou quinze
mulheres em um período de seis meses, acredita mesmo que ele cometeria um erro
desse tipo?
— Com certeza não.
— Sem arma do crime novamente?! —
Marcos perguntou, mas as palavras saíram de sua boca como uma afirmação, pois o
assassino nunca deixava a arma na cena do crime.
— Aí que se engana, meu caro.
Temos a arma do crime dessa vez — o perito disse-lhe mostrando a navalha no
saco plástico.
Marcos sentiu uma sensação estranha
ao ver aquela navalha toda ensanguentada, mas acabou não dando importância para
essa reação, pois estava animado com o surgimento de uma prova.
— Não acredito!
— Pois acredite, parece que dessa
vez ele cometeu um erro, detetive.
— Alguma testemunha?
— Nenhuma testemunha, uma
senhora que ia para o trabalho a encontrou. Ela já prestou depoimento e foi
liberada.
— Já identificaram a vítima? — perguntou
ao tocar os cabelos da jovem assassinada.
— Sim! Ana Paula Martins,
estudante de enfermagem, 21 anos, morava sozinha, ainda não conseguimos
contatar a família.
— Tudo bem, informe-me dos
avanços da perícia, quero saber mais sobre a armar do crime e sobre a autópsia da
vítima quando tudo estiver pronto — Marcos disse ao se levantar. — Dessa vez
nós vamos pegar esse desgraçado.
Quando se vivou para sair, esbarrou
num homem que estava às suas costas.
— Sempre atrasado, não é mesmo?
— Marcos, seu cretino, por que
não me avisou da ocorrência assim que soube? Fiquei sabendo por terceiros,
sendo que meu parceiro deveria ter me contatado — o homem disse, repreendendo-o
cordialmente.
— Não quis incomodá-lo, Jorge!
Merecia descanso, trabalhamos muito ontem.
— E você? Não merece descanso?
— Mereço... e como mereço... mas
não posso me dar esse luxo no momento.
— Cristina está mal, parece-me
depressiva. Sem falar que está furiosa contigo, queixa-se sempre com Silvia dos
seus sumiços, principalmente nessa fase inicial... seu filho nasceu há três
meses, homem, e você mal o viu, sem falar que nem esteve no hospital no dia do
nascimento. É sério, amigo, está obcecado pelo Retalhador, precisa tirar umas
férias.
— Concordo que preciso de umas
férias, Jorge — Marcos disse seguindo em direção ao seu carro. — Mas não antes
de prendê-lo.
— Não há como discutir com você,
Marcos — Jorge disse seguindo-o.
— Vamos, Jorge — disse entrando
no carro. — Temos outros casos para investigarmos.
Jorge era parceiro de Marcos há sete
anos na divisão de homicídios, eram muito amigos, até suas esposas mantinham uma
boa amizade, e isso, às vezes, somente trazia problemas para ambos. Quando
aquelas duas se uniam para colocá-los na linha, como eles adoravam dizer, não
havia chances de defesa, elas sempre acabavam perdendo.
Seguiram para a próxima
ocorrência, mas nada de importante aconteceu durante o dia todo. O cadáver de
um morador de rua encontrado nas margens do Rio Tietê, um usuário de drogas que
teve overdose embaixo de um pontilhão na Zona Leste e um esfaqueamento numa briga
de bar na Zona Norte, nada que merece a atenção da divisão especial da homicídios.
O resto do dia eles passaram a averiguar papéis sobre o caso do Retalhador, na
hipótese de encontrarem algo novo.
No fim da tarde, quando os
últimos raios de sol alaranjadas adentravam as venezianas, Jorge suspirou,
juntou um maço de papéis, colocando-os na gaveta da escrivaninha, e levantou-se.
— Já é hora de irmos, não acha?
— Pode ir, Jorge. Ficarei mais
um pouco.
— Não achará nada de novo aí! — ele disse
colocando a mão em seu ombro. — É mais fácil esperarmos até que os primeiros laudos
da perícia cheguem amanhã cedo.
— Não posso esperar mais — Marcos
disse levando as mãos à cabeça. — Tenho que conseguir alguma pista, os ataques
estão se tornando mais frequentes.
— Esses dois últimos tiveram um intervalo
de dias, eu sei.
— Ele anda quebrando o seu
padrão, Jorge, tenho que descobrir o porquê!
— Compreendo, amigo, mas você
tem uma família que o espera em casa.
— Sei muito bem disso, mas... deixa
pra lá! Você venceu! Eu vou para casa hoje — Marcos disse sorrindo ao se levantar.
— Que bom, fico muito feliz.
— Então, já que estamos indo
para casa, quer ir jantar conosco hoje?
— Não posso. Silvia e eu combinamos
de irmos à casa da mãe dela, jantaremos lá.
— É uma pena, ficaríamos felizes
com você e Silvia jantando conosco.
— Agradeço o convite, Marcos,
fica para uma próxima. Além do mais, é bom que você e Cristina passem um tempo
sozinhos.
— Tudo bem. Mas sabe que esses
jantares estão ficando cada vez mais raros ultimamente, não saberei lhe dizer quando
teremos outra oportunidade dessas.
— Sei sim, e como sei. Mas
realmente não vai dar.
Os dois homens saíram sorrindo
do escritório, dirigiram-se ao estacionamento e aos seus devidos carros. A
viagem demorou vinte minutos, mas assim que chegou em sua casa, Marcos não quis
saber de outra coisa a não ser de um bom banho. O vapor e a água quente que
caia sobre seu corpo o revigorava, deixava-o mais disposto, poderia voltar e
passar mais uma noite em sua sala trabalhando, mas sabia que isso não seria
possível, pois Cristina acabaria com ele se fizesse isso.
Saiu do banho e dirigiu-se ao
quarto, enxugou-se e vestiu-se para o jantar. Desceu às escadas e se deu conta
de que quando chegou não tinha visto sua mulher.
— Cristina?
Cristina? — Marcos chamava a esposa enquanto procurava pelos cômodos da casa. —
Onde está, mulher?!
Nenhuma resposta veio aos seus
chamados. Procurou pela casa até frustrar-se, pois se estressava facilmente. Não
sabia onde a mulher estava e isso o deixava irritado. Mas não podia culpá-la,
tinha praticamente a abandonado nesses últimos
seis meses por causa do caso do Retalhador. Lembrou-se do quarto das
crianças. Ela só pode estar lá, pensou
ao subir novamente às escadas, indo em direção ao quarto dos filhos. Quando
chegou à porta, suas suspeitas foram concretizadas. Cristina estava prostrada
ao lado do berço de seu filho recém-nascido e da cama da sua filha de quatro
anos de idade. Todos estavam dormindo, a esposa apagara numa poltrona, por
isso, Marcos decidiu por não incomodá-los, somente beijou-os e os cobriu apropriadamente
antes de ir para o seu quarto e desmaiar na cama de casal.
Acordou atrasado naquela amanhã,
acabou dormindo demais, mas pelo menos estava completamente revigorado, fora o
ânimo que sentia para ir logo ao trabalho e dar uma olhada nos laudos da
perícia da vítima do dia anterior. Sua mulher não estava mais na cama, e isso o
incomodou mais uma vez, havia saído e não o acordara de propósito, sabia disso,
mas resolveu não ligar para o celular dela e iniciar o dia com uma briga. Sua
filha também já tinha ido à escola, então, estava realmente sozinho em casa.
Decidiu não tomar o café da
manhã, arrumou-se e entrou no carro para ir direto ao trabalho. Quando chegou à
delegacia, Jorge já estava no escritório e os resultados preliminares da
perícia já estavam em suas mãos.
— Quase não acreditei quando
cheguei aqui e vi que você não estava — ele disse em tom de deboche.
Marcos limitou-se a sorrir sem
graça, mas sabia que Jorge não deixaria aquilo passar facilmente.
— Há quanto tempo que eu não
chego primeiro que você, Detetive Santiago?
— Há sete meses, duas semanas e
três dias exatamente — Marcos retrucou com um sorriso nos lábios.
— Não precisava ser tão preciso!
— Vamos ao que interessa, Jorge.
Deixe-me ver esses papéis — disse-lhe puxando-os das mãos do amigo.
Sentou-se a sua mesa e passou a
analisar os laudos periciais minuciosamente, demorou duas horas neles, tentando
compreender aquilo que o deixava intrigado. Jorge permaneceu quieto, a analisar
outros laudos em sua mesa, até que não aguentou mais e quebrou o silêncio
mórbido que tomava a sala.
— Pare de ficar remoendo esses
papéis — disse zangado.
— Você sabe quais são os fatos
que estão me intrigando — Marcos retrucou.
— Sim, algumas coisas não batem.
— O corte na garganta da mulher é
totalmente irregular, como se a pessoa não tivesse prática alguma — Marcos virou
a folha para ler o próximo papel. — As lacerações que estavam em seus braços
não eram profundas e precisas, tais como as das outras vítimas, são menores e malfeitas.
Sem digitais mais uma vez, só que foram encontrados dois fios na roupa da vítima
que não pertencem a ela.
— Poderia ser da mulher que
achou o corpo.
— Mas não é, Jorge! Aquela senhora
tinha cabelos brancos e os fios encontrados são negros... então, esses fios são
do assassino ou de alguém que esteve com a vítima pouco tempo antes do crime.
— Então, de qualquer forma,
temos uma pista.
— Sim! Temos de descobrir quem
era essa pessoa e, a cada prova que surge, apego-me mais ainda à hipótese de termos
um imitador do Retalhador, pois as últimas vítimas não se encaixam nos padrões
iniciais — disse largando os papéis na mesa.
— Não consigo acreditar nisso,
Marcos.
— Esses erros todos nas últimas
cenas dos crimes e o fato de ele ter deixado a arma do crime dessa vez, indicam
essa possibilidade.
— A navalha não foi esquecida, mas
deixada... eu acho que o Retalhador está brincando conosco, meu amigo... seria
muito improvável termos dois assassinos em série na cidade agindo ao mesmo
tempo, com padrões parecidos.
— E se houver outro assassino querendo
que essas mortes sejam atribuídas ao Retalhador?
— Não sei, Marcos, creio que não...
— Eu tenho quase certeza de que
é outra pessoa, Jorge — disse socando a mesa.
— Vamos com calma, parceiro...esse
cara está deixando você louco, é isso que ele quer fazer, na minha opinião...
— Então por que ele está mudando
os padrões e por que deixou a arma do crime?
— Como eu disse, acredito que
ele queira jogar conosco, ou, então, quer nos confundir, pois quer que você
tome outros rumos nas investigações. — Jorge caminhou irritado de um lado para
o outro na sala. — Conhece tão bem esses tipos como eu, eles querem fama e prestígio.
Quem sabe não se cansou de ficar no anonimato e está nos desafiando para ver se
conseguimos prendê-lo?
— Pode ser, mas se der tempo,
irei averiguar essa linha de raciocínio.
— Se não pegarmos esse assassino
depois dessas provas, eu concordarei com as suas conclusões — Jorge disse
colocando a mão no ombro do amigo. — Mas, agora, tenho uma péssima notícia para
você.
— O que é? — Marcos quis saber.
Jorge arqueou as sobrancelhas e sentou-se,
em seguida, deu um longo suspiro, fazendo com que Marcos ficasse mais aflito.
— Vamos, homem, diga.
— Ele atacou mais uma vez noite
passada, Marcos.
— Temos outra vítima? Por que
não me falou nada antes?
— Sim, temos outra vítima,
infelizmente. Ela foi encontrada logo pela manhã por um homem que fazia
caminhada pelo Ibirapuera. Não disse nada antes por que o corpo da vítima já
havia sido retirado da cena do crime.
— Você já esteve lá, Jorge?
— Sim, estive e dessa vez temos
mais pistas, o corpo dela está no IML.
— Ok! Vamos para o IML, eu quero
conversar com o médico legista sobre a vítima de ontem e sobre a vítima de
hoje.
O horário do almoço aproximava-se,
antes de entrarem no carro, Marcos percebeu
que, mesmo que o sol forte estivesse em meio ao céu azul-acinzentado aumentando
o mormaço, gigantes massas cinzentas aproximavam-se à noroeste, anunciando que
a água desabaria dos céus no fim da tarde na cidade paulistana.
Dirigiram até o Instituto Médico
Legal e, quando chegaram, o médico responsável pelas necropsias do caso do Retalhador
estava prestes a sair. Marcos e Jorge tiveram que insistir para serem atendidos.
— Desculpem-me a falta de
cordialidade, mas é que minha mulher me espera para o almoço e se eu me
atrasar, ela acaba comigo — o médico disse-lhes mostrando um sorriso jocoso.
— Não vamos tomar muito do seu
tempo, doutor, somente viemos esclarecer algumas dúvidas — Marcos falou
educadamente.
— Pois bem, perguntem o que
vieram me perguntar, detetives.
— Bom, primeiro gostaria de
saber se o resultado do exame de DNA do material encontrado sob as unhas da
última vítima está pronto? — Jorge perguntou, fazendo com que o parceiro o
olhasse de rabo de olho, pois Marcos ainda não sabia dessa informação por não ter
visto a cena do crime.
— Não está, pois esse tipo de
exame demora um certo tempo, mas assim que sair, avisos vocês, detetives,
prometo — o doutor finalizou a frase com um sorriso cínico.
— Então, isso quer dizer que podemos ter um
suspeito? — Marcos perguntou.
— Provavelmente, detetives.
— Acredita que esse assassinato
tenha sido do Retalhador? Já que foi você o médico que examinou todos os corpos
anteriores? — Marcos emendou.
— Com certeza não, posso garantir
que esses os três últimos assassinatos não foram do Retalhador.
— Como pode ter tanta certeza
assim? — Jorge indagou.
— Acompanhem-me — o doutor disse
abrindo uma porta ao lado da sua sala.
Marcos e Jorge o seguiram e,
assim que entraram, avistaram a bancada com o corpo coberto por um lençol
branco no meio da sala fria.
Marcos andou até a bancada e ergueu
o lençol. A jovem estava com a garganta cortada irregularmente e, em vez dela
ter sido retalhada, apenas havia sido arranhada e picotada, talvez por uma
espécie de estilete ou canivete pequeno.
— Os cortes não são precisos
como das primeiras vítimas — o médico disse levantando-se e indo em direção a
eles. — Aliás, os ferimentos das três últimas vítimas não são precisos...
— Prossiga — disse Marcos.
— Já havia apontado nos meus
relatórios anteriores que o assassino, muito provavelmente, seria alguém com conhecimentos
médicos, pois seus cortes eram precisos, como os de um cirurgião com um
bisturi... outra coisa que me chama bastante à atenção é o corte até o meio da
garganta, porque, no começo, o Retalhador sempre abria o pescoço de suas vítimas
de orelha a orelha, mas nessas últimas três, houve hesitação e os pescoços
foram cortados pela metade... agora, o mais intrigante, é que essas três últimas
vítimas levaram fortes pancadas na cabeça antes de serem degoladas.
— Pancadas na cabeça? — Marcos e
Jorge perguntaram ao mesmo tempo.
— Sim — o sorriso aflorou mais
uma vez nos lábios do doutor, e aquilo estava começando a deixar Marcos
irritado. — Vocês não leram o relatório inteiro?
— Eu li — Marcos respondeu secamente.
— Mas não havia nada sobre pancada na cabeça. Você sabia disso, Jorge?
— Também não sabia — ele disse
coçando a cabeça.
— Mas foi você quem recebeu os
papéis — a expressão de Marcos começou a transparecer o nervosismo. — Não foi?
— Foi sim — Jorge respondeu desconcertado.
— Mas quem sabe eu deixei cair alguma folha ou ele pode ter sido adulterado no caminho,
sei lá!
— Continue, doutor, não sabemos
nada sobre a pancada na cabeça — Marcos disse voltando à atenção para o médico,
mesmo a contragosto.
— Pois bem, pelo o que parece, as
três últimas vítimas receberam uma forte pancada na cabeça que as deixaram
desacordadas... contudo, nesta última, a causa da morte foi traumatismo craniano,
ou seja, a jovem estava morta quando ocorreu a atentiva de degolamento, mas o
Retalhador somente...
— ... mata as suas vítimas ainda
vivas! — Marcos completou entusiasmado.
— Isso mesmo — disse o doutor,
dirigindo-se à porta.
— Eu sabia! — Marcos disse a
Jorge. — Viu como eu tinha razão?!
— Bom, agora tenho que ir,
detetives — o doutor falou olhando em seu relógio de pulso. — Estou atrasado.
— Tudo bem, agradecemos a ajuda,
doutor Silas — disse Marcos.
— Não tem de quê, contem sempre comigo,
detetives... com licença.
— Sempre contamos, Silas — emendou
Jorge.
— Ah! Estava quase me esquecendo
— Silas disse dando meia volta e retirando dois sacos plásticos do bolso do
jaleco, em seguida, jogou um deles para Marcos. — A última vítima foi cortada
por um canivete e um pedaço da lâmina acabou se quebrando na garganta dela.
Marcos analisou o pequeno pedaço
da lâmina quebrada no saco plástico e percebeu que no objeto havia metade de um
brasão muito familiar, mas não se lembrou de onde conhecia aquele símbolo. Seus
devaneios foram interrompidos quando a voz do doutor emendou:
— Tem isso daqui também — doutor
Silas disse jogando o segundo saquinho plástico para Marcos. — Sei que é
pretensão da minha parte achar que vocês, detetives, não tenham notado isso,
mas as moedas são outra prova de que se trata de outro assassino, pois elas são
diferentes das originais.
Os dois detetives
entreolharam-se sutilmente.
— Sim, notamos essa diferença...
de qualquer forma, obrigado, doutor Silas — Marcus mentiu e agradeceu
falsamente, pois não ia com a cara do médico.
— Por nada — o doutor disse com o
sorriso cínico habitual.
As últimas palavras do doutor
Silas atingiram-nos como uma bofetada no rosto. Ambos não faziam ideia sobre o
que o doutor falara, mas sabiam que deveria ser algo importante, sendo assim,
correram para o estacionamento e entraram no carro.
Os pneus do carro de Marcos
fritaram o asfalto do estacionamento, fazendo com que uma fumaça surgisse e
enchesse o ar com o cheiro de borracha queimada. Chegaram rapidamente à
delegacia e, assim que estacionaram em frente ao prédio, não perderam tempo e correram
para a sala de investigação.
Marcos dirigiu-se de imediato à
sua escrivaninha, abriu a gaveta e apanhou a pasta que continha todos os
arquivos sobre o caso do Retalhador. Folheou as imagens das moedas antigas e
depois deu uma olhada nas que foram encontradas recentemente. Seu mundo girou,
várias sensações vieram de uma vez, pensou nas possibilidades que poderiam vir
a surgir até cansar-se, então, finalmente falou:
— O doutor estava certo — Marcos
disse atirando a pasta sobre a mesa.
— Está falando das moedas? — Jorge
questionou-o pegando a pasta da mesa e analisando as fotos. — Meu Deus! Como
não percebemos isso antes?!
— Estávamos focados em outras
pistas que esquecemos de checar as moedas — lamentou-se levando as mãos à
cabeça.
— Não consigo acreditar... ainda
bem que o doutor nos chamou à atenção sobre esse fato, Marcos... deveríamos
agradecê-lo.
— Não daria esse gosto para aquele
doutorzinho metido.
— Nunca foi com a cara dele, não
é mesmo?
— Não mesmo...
— Bom, as moedas usadas nos
primeiros assassinatos eram gregas, mas as dos últimos assassinatos são moedas de
1922. E isso quer dizer...
— Que eu estava certo quando
disse que temos alguém querendo atribuir assassinatos ao Retalhador! — Marcos
completou com um sorriso.
— Sim, realmente estava certo,
admito — Jorge disse sem graça. — Mas o que faremos agora? Contaremos que essas
mortes não foram obra do Retalhador?
— Não, ainda não. Manteremos
isso em segredo. Podemos tirar vantagem disso, deixando que esse novo assassino
ainda pense que seus crimes sejam atribuídos ao Retalhador.
— Tudo bem... mas que linha de
investigação seguirá? Abriremos mão do caso do Retalhador colocando-o de lado e
começamos a investigar esse ou esquecemos esse por enquanto e nos empenhamos no
do Retalhador?
— Nenhuma das duas hipóteses,
Jorge.
— Como assim?
— Bom, você ficará encarregado de
procurar mais pistas sobre o Retalhador, enquanto eu investigarei esse novo
assassino.
— Combinado. Apesar de achar que
o caso do Retalhador é perca de tempo, já que não surgiu nenhuma pista nova — disse
desanimado — Você terá mais sorte, pois têm os fios de cabelo, o DNA sob as
unhas da segunda vítima, as moedas antigas, a navalha e o canivete com metade daquele
brasão estranho.
— Nisso tem razão. Sou um
detetive de sorte — Marcos zombou.
— Não quer trocar? Acho que você
está mais por dentro do caso do Retalhador.
— Não.
— Deixe-me fazer essa nova investigação,
Marcos, por favor! Estou animado com esse novo caso!
— Tenho certeza que sim, mas até
pouco tempo atrás nem acreditava que existia outro assassino, por isso, eu que
devo seguir com essa investigação, Jorge.
A porta do escritório abriu-se e
um homem entrou na sala repentinamente.
— O que ainda estão fazendo aqui?
— o homem perguntou zangado.
— Estamos trabalhando no caso do
Retalhador, Capitão.
— Surgiu uma nova pista sobre o
caso, seus imbecis.
— O quê?! — ambos disseram
juntos.
— Foi uma ligação anônima — disse-lhes
atirando os papéis da gravação. — Um homem disse que uma das vítimas entrarem
em um furgão preto de placa GBA-1206 no mês passado, mas só teve coragem de contatar
a polícia agora... disse que estava com medo, mas como agora o assassino está
agindo com mais frequência, decidiu que seria importante falar para ajudar na
investigação, tomou coragem e ligou.
Eles não acreditaram no que haviam
ouvido, finalmente parecia-lhes que o destino estava sorrindo para os dois.
Esperaram o capitão sair da sala para voltarem a falar.
— Vamos lá! — Marcos disse
pegando as chaves do carro que estavam na mesa. — Busque todos os furgões
pretos vendidos nos últimos seis meses que eu vou atrás da pista das moedas
antigas de 1922.
— Tudo bem! Eu farei a lista dos
furgões.
— Qualquer avanço que tiver da
sua parte, me avise, Jorge.
— Sim, pode deixar... me avise
também se encontrar alguma coisa, Marcos.
Marcos passou a tarde inteira
pesquisando sobre as moedas brasileiras de 1922. As moedas gregas ele já havia
pesquisado há tempos, sabia que eram legítimas e importadas, impossíveis de
serem rastreadas. Contudo, a situação era diferente com as moedas de 1922, porque
elas eram itens raros de colecionadores nacionais, o que facilitava o rastreamento.
Marcos pesquisou todos os
proprietários e colecionadores de moedas antigas do país, encontrando oito
colecionadores cadastrados na associação numismática brasileira. Um dos mais
importantes colecionadores morava em São Paulo e havia leiloado um lote dessas
moedas de 1922 há dois meses. Entrou em conato com o colecionador por telefone
e obteve o nome do arrematador do lote: Jorge Estevão Macedo.
Ficou zonzo por alguns segundos.
Não queria acreditar que seu amigo de sete anos e padrinho da sua filha poderia
ser um assassino, porém, todas as pistas apontavam para ele. Por ser um investigador,
poderia muito bem encobrir seus rastros e direcionar os seus crimes para outro
assassino. Lembrou-se de que o amigo havia insistido para cuidar desse caso,
talvez na intenção de destruir provas, assim como havia feito com o laudo
pericial, supostamente perdido. Tudo se encaixava. Apenas não sabia o motivo do
amigo ter assassinado aquelas mulheres.
Pegou o telefone celular do
bolso e ligou para Silvia, esposa do amigo. Interrogou-a informalmente,
perguntando o que o casal andava fazendo ultimamente e Silvia brigou com ele, dizendo
que Jorge mal aparecia em casa por causa da investigação. Marcos não disse nada,
mas sabia que Jorge sempre voltava para casa e não ficava trabalhando até mais
tarde com ele. Antes de desligar, perguntou como havia sido o jantar do casal
na casa da mãe dela na noite passada. Silvia irritou-se com ele mais uma vez, repreendendo-o
por não tê-lo deixado ir e feito Jorge trabalhar até tarde da noite. Marcos
então se despediu pedindo desculpas e desligou o celular, ainda atônito. Agora
tudo fazia sentido, o assassinato da noite passada tinha sido cometido por
Jorge, bem como os outros dois anteriores, não tinha outra explicação.
Saiu da delegacia e ficou
rondando pelas ruas da cidade com o carro, pensando em como resolveria toda
aquela situação. De repente, no fim da tarde e depois de pensar bastante, o
celular de Marcos tocou. Era Jorge. Seu coração disparou, não queria conversar
com o parceiro naquele momento, contudo, lembrou-se que havia pedido que o
amigo ligasse para ele caso houvesse alguma novidade no caso do Retalhador, por
isso, suspirou fundo e atendeu ao celular.
— Venha logo para cá, Marcos — Jorge
disse entusiasmado do outro lado da linha — prendemos ele, meu amigo, e você
não vai acreditar quem é o assassino!
— Estou a caminho — Marcos limitou-se
a falar.
Virou o veículo de forma brusca,
ligou as sirenes e seguiu em disparada para a delegacia. Levou quinze minutos
para chegar e, quando entrou na sala de observação de interrogatório, somente o
capitão estava observando pelo vidro. Avistou Jorge interrogando o assassino do
outro lado da sala e surpreendeu-se novamente naquele dia: Doutor Silas, o
médico legista, era o Retalhador.
O capitão começou a contar como
chegaram ao assassino, dando ênfase ao maravilhoso trabalho de investigação
liderado por Jorge. Enquanto o capitão falava, Marcos pensava. Espere até saber o maravilhoso trabalho que ele
anda fazendo em suas horas vagas. Contudo, não disse nada, apenas ouviu em
silêncio o resto da conclusão do caso.
— Jorge fez uma busca minuciosa
sobre todos os proprietários de furgões pretos da cidade e, quando o nome do
Dr. Silas surgiu, desconfiou imediatamente, porque o próprio doutor havia
colocado em seu relatório que o Retalhador deveria ser alguém da área médica,
então, Jorge investigou o doutor Silas e descobriu que ele havia feito uma
viagem à Grécia há sete meses, que era um ligação direta com as moedas gregas.
Por último, decidiu investigá-lo e, coincidentemente, flagrou-o saindo do IML com
um furgão preto, com a mesma placa da denúncia anônima. Lá dentro do furgão
havia uma garota apagado com clorofórmio, por isso, não restou dúvidas, as provas
são concretas, por isso, quando chegou aqui, o doutor abriu o bico e agora está
contando tudo — finalizou a narrativa apontando para o doutor Silas do outro
lado do vidro e entregando a Marcos uma pasta com as provas da investigação de
Jorge.
Coincidência demais, Marcos pensou, mas guardou as suas desconfianças para
si.
— Ele confessou todos os crimes,
capitão? Já disse por que cometeu os crimes? — Marcos perguntou imaginando a
resposta que viria.
— Não! Os dois últimos crimes
ele disse que não é dele, mas Jorge diz que ele está brincando conosco e que
vai fazê-lo confessar esses também... quanto aos motivos, os mesmo de sempre,
era frustrado no casamento, a mulher dele é uma megera, então, como não tinha
peito para enfrentá-la, o covarde descontava sua raiva em mulheres parecidas
com a esposa...
— Entendi... bom, capitão, posso
entregar o inquérito amanhã?
— Claro que pode, vá para casa e
descanse, você e Jorge trabalharam bem — falou dando dois tapinhas nas costas
de Marcos. — Amanhã lidamos com a burocracia.
Marcos ficou em silêncio e retirou-se
da sala, saiu da delegacia e entrou no carro. No caminho de casa, remoía os
detalhes recém-descobertos. Claro que ele
quer que o Retalhador confesse os dois últimos assassinatos, assim poderá sair
livre, pensou. Como pude não
enxergar seu verdadeiro caráter durante esses sete anos? Decidiu que revelaria ao capitão o que
havia descoberto sobre Jorge na manhã seguinte.
Quando chegou à porta de sua
casa, encontrou-a semiaberta. Entrou chamando pela esposa, mas não obteve resposta.
Parecia não ter ninguém em casa. Andou pelos cômodos e nada, então, escutou um
barulho vindo do banheiro do quarto do casal. Quando entrou nele, ouviu o barulho
do chuveiro, pois a porta estava escancarada. Cristina estava no banho. Marcos
não quis incomodá-la, então, somente esperou pela esposa. Contudo, antes que
ela saísse do banho, Marcos viu algumas peças de roupas manchadas de sangue e jogados
ao lado esquerda da cama de casal. Aproximou-se e as pegou, fazendo com que um
canivete quebrado e algumas moedas antigas caíssem e rolassem pelo tapete do
quarto. Seu coração gelou. Sua esposa havia sido atacada por Jorge, tinha certeza
disso.
De repente, alguém atravessou a
porta do banheiro, entrando no quarto.
Marcos ficou aliviado quando viu
a esposa parada na soleira da porta, com uma toalha enrolado no corpo e outra na
cabeça. Entretanto, não estava entendendo mais nada daquela situação.
— O que significa isso? — Marcos
perguntou, ainda confuso. — O que essas coisas estão fazendo com você, Cristina?
Cristina começou a gargalhar em quanto
algumas lágrimas rolavam por sua face.
— Parabéns, detetive Marcos Santiago...
você me pegou!
— Do que você está falando?
— Fui eu, Marcos! Eu matei
aquelas mulheres.
— O quê? Como? Isso não é
possível!
— As duas primeiras eu degolei com a sua própria navalha de
barbear, mas você nem se deu conta disso... depois usei o seu canivete de pesca,
mas também nem percebeu... que ótimo detetive você é — Cristina cuspia as
informações com os olhos lacrimosos cheios de rancor ao mesmo tempo em que sorria
sadicamente.
— Não, não pode ser! Era o nome
de Jorge que constava nos papéis da compra das moedas, tem que ser ele — Marcos
falou ainda aturdido.
— Usei os documentos de Jorge
porque queria deixá-lo louco, assim como eu estava ficando louca aqui presa
nesta casa, cuidando sozinha de dois filhos pequenos, sem a droga do meu marido
ao lado para me ajudar...
— Por que, Cristina, por quê?
— Você me abandonou nesses
últimos meses, abandonou a mim e a seus filhos! Sabia que fui diagnosticada com
depressão pós-parto? Claro que não sabia, nunca está em casa, somente se
preocupa com o seu trabalho... então, arrumei uma forma de chamar a sua atenção...
esse foi a punica forma que achei de ser uma prioridade em sua vida, Marcos... estava
cansada de vê-lo correr atrás desse assassino e não dar a mínima para sua
família, então, fiz isso e não me arrependo! Agora tenho a sua atenção!
Marcos não conseguia acreditar
no que estava ouvindo, mas no fim percebeu que tudo fazia sentido. As noites em
que ela não apareceu para dormir em casa; as atitudes suspeitas; a familiaridade
que sentiu ao ver a navalha e o pedaço do canivete; a pancada na cabeça das vítimas
para desacordá-las, pois a esposa não era forte suficiente para dominar completamente
as últimas vítimas; os fios de cabelos negros; enfim, tudo fazia sentido.
— Tudo bem, meu amor. Vai ficar
tudo bem — Marcos disse a esposa, puxando-a para os seus braços. Cristina não o
recusou e o abraçou, passando a chorar copiosamente nos braços do marido.
— Não precisa se arrepender agora,
querida — sussurrou em seu ouvido. — Pois terá muito tempo na cadeia para isso —
completou algemando-a, com os olhos marejados e o coração apertado.
Cristina não disse nada, apenas
sentou-se na cama e passou a olhar para o chão. Marcos pegou o telefone e
chamou por reforços, não conseguia olhar na cara da esposa.
— Cuide dos nossos filhos — Cristina
disse antes de entrar na viatura.
Mesmo não tendo respondido
Cristina, Marcos acataria o pedido da esposa, pois, mesmo com raiva, o detetive
não conseguia deixar de amá-la. O que o deixava ainda mais arrasado.
Marcos então entrou na casa e seguiu
em direção ao quarto dos filhos, enquanto os policiais juntavam provas e
colhiam evidências no quarto do casal. Apanhou um livrinho de histórias, pegou
o filho recém-nascido no colo e sentou-se na cama da filha de quatro anos, iniciando
assim uma narrativa para as crianças. Apesar dos problemas, Marcos sabia que
estava na hora de pedir uma licença e tirar umas boas férias para cuidar dos membros
restantes da sua família.
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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