3x13 - Brasil
de Ramiro Delcastanher
A vida de qualquer policial não é
muito fácil, em especial, a de um que atua na cidade do Rio de Janeiro. Em meio
ao tráfico, a prostituição, os roubos e toda aquela lista que satura os
noticiários sensacionalistas; ainda há aqueles acontecimentos que conseguem
reter a minha mente por um longo tempo. Nesses vinte e cinco anos de profissão,
nunca esquecerei o que aconteceu naquela viela.
Era tarde na delegacia, quando o
telefone toca para irmos averiguar uma situação. Sem muitas informações e com
pressa, saem as botinas rumo ao desconhecido. São alguns minutos que separam o
destino de um aspirante a investigador, seria meu momento de destaque por
minhas habilidades de dedução lógica.
Abro a porta da viatura, vendo uma
movimentação grande de pessoas, mas não eram os comuns curiosos. Cada cidadão
ali se movia para um lado naquele local insalubre, como as baratas quando
acendemos a luz. Estirado no meio daquela rua, um jovem de pele escura, já era
difícil discernir os hematomas da coloração natural.
Havia muito sangue espalhado pela rua, o corpo
estava lacerado, parecia ter ossos quebrados no peito e nas pernas. A face
estava praticamente desfigurada e na cabeça havia um buraco no cabelo. Andei um
pouco ao redor do corpo e logo achei o cabelo que estava faltando, ele estava
grudado ao sangue em uma barra de ferro.
O que salta aos olhos de qualquer
investigador amador é que o corpo ainda estava quente. Além disso, dentro do
bolso da bermuda ainda estava a carteira de trabalho e algum dinheiro. Ergo a
cabeça para meu chefe:
-- Soldado Pereira, anota aí “acerto
de contas”. Isso deve ser um maconheiro do morro.
Apesar da ordem, continuei perplexo,
algo estava errado. Naquela rua, mesmo com um mercado perto e uma loja de
roupa, nenhum curioso se aproximou. A hipótese do capitão fazia sentido, quando
um chefe do tráfico manda apagar alguém, ninguém se atreve a caguetar. Mas me
recuso a aceitar.
Silva, sobrenome comum. João, nome
mais comum ainda. Era um desgraçado pela vida, porém a carteira de trabalho
revelava outra coisa. João Silva, admitido por uma empresa três dias antes,
agora promovido a morto. Infelizmente, essa profissão anestesia os fortes e
insensibiliza os fracos.
O cadáver tinha pelo menos algumas
marcas que não eram novas, tinha calos nas mãos e as unhas sujas. Entre o
sangue que sujava a camisa, a marca de graxa. Entretanto, ele tinha um registro
em seu corpo que era muito maior, seus 17 anos de idade. Meu filho tem a mesma
idade, nunca trabalhou e nem saiu do Ensino Médio.
Eu olho ao redor, reparo em todos os
transeuntes, porém eles não são recíprocos. Respiro fundo tentando pensar, nada
surge em minha cabeça, era como se a barra de ferro com cabelo estivesse
atravessando o meu cérebro. O cheiro de sangue se mistura ao de asfalto. De
repente, o corpo no chão se tornou a minha incógnita pessoal.
Vou me superar, vou descobrir. Já
haviam chamado os legistas quando decidi entrevistar a população. Ouvir
testemunhas deveria ser a primeira parte do serviço, contudo, estávamos no Rio.
Dessa cidade gigante, com doze milhões, um defunto a mais ou um a menos não
faria diferença. Só que persisti.
Então me afastei, observei as
baratas. Uma corria de um lado para o outro, assim escolhi a primeira testemunha.
Tirei o caderno do bolso e fui na direção dele. Pegando-o pelo braço, com mais
força que o normal, fiz-lhe a pergunta que me fulminava a mente:
-- O que aconteceu aqui, senhor?
“Ééééé... Complicado. Não vi bem. Éééé....
Eu vi que ele veio do mercado ali e foi pra dentro. Saiu depois e gritaram
alguma coisa. Que eu não ouvi bem. Éééé.... Gritaram alto e saiu um grito aqui
fora. Depois só vi o corpo aqui estirado no chão da rua. ”
Não tirei nada demais dali, mais
perguntas e menos respostas. Mas a resposta poderia estar naquele mercado ou
pelo menos próximo. Ao tirar os olhos das novas anotações, fito um mendigo
próximo ao lixo do empreendimento. Certamente, se há o crime envolvido aqui, o
último a não revelar a verdade seria quem não tem mais nada para perder.
Corri até o outro lado da rua, fraco
na minha ambição de ser investigador, todavia, forte em descobrir o fato que
acabara com a vida de alguém. Chegando perto, em meio a caixas de papelão e
cobertores inúteis, estava a minha chave para a liberdade. Ao velho bêbado
moribundo questionei:
-- O que aconteceu aqui, senhor?
Erguendo a cabeça como quem olha
para o próprio sol sem conseguir enxergá-lo, o homem balbucia questões que
destoam do meu objetivo. Com uma aproximada e o tão usado terror psicológico,
consigo dele uma possível pista que era fruto do álcool e do resto de
humanidade com a qual ele ainda se sentia.
“Umm, pretu saiu alí, correu,
caindo. Juntô genti, tinha ummm monti olhandu. Numm vi, purrque tinha gríto e
foi lá. Num sei sinhô, sei não quem matô”
A dificuldade das palavras quebrava
o meu conhecimento, parecia que ele sabia demais e não dizia o justo. Fui
incerto em insistir em algo dele. Mesmo assim, quando dizia que saiu dali ou daqui
sempre mantinha os dedos na direção de uma única empresa e presumi que a
solução estava lá. Então fui ao mercado.
Logo na entrada havia um homem forte
e suado, parecia cansado. Essa se apresentava como a minha última cartada em
busca de uma informação. Ponho-me diante do imponente “porteiro” e faço o
procedimento que me levou até ali:
-- O que aconteceu aqui, senhor?
Os olhos dele denotam um falso respeito ou um sentimento de
parte quando miram a minha farda e ele me responde.
“Seu policial, ali na rua tem mais um desses drogados do
morro. Esses que descem aqui para roubar. Só ver, só ver. Pela roupa temos o
tipo de gente. Só tiro uma coisa disso tudo: um a menos para incomodar o
empreendedor brasileiro nesse país podre. Ele veio aqui roubar e alguém pegou
esse desgraçado. Não vi nada! Nada além disso. Agora o inferno vai dar um jeito
nele”
O depoimento daquele sujeito me deixou raivoso. Nada ele
sabia, mas sabia demais. Então me volto para a loja de roupas onde há um senhor
de pé olhando a rua com atenção. Mais um que pode me descrever o acontecido, já
que eu me recuso a acreditar em um jovem ladrão com sua carteira assinada. A
vida é cruel com os desgraçados, porém a honestidade é a força deles.
Vou até aquele senhor. Tudo está em xeque, ele me dará a
realidade. De todos os tipos de questionamentos pessoais que me posso fazer,
tudo que tenho gritando nem minha consciência é a voz de um morto que nunca
conversei. O corpo era minha assombração e eu precisava resolver aquele caso.
Então me ponho em frente ao senhor. A minha voz trêmula e hesitante fala:
-- O que aconteceu
aqui, senhor?
A resposta vem como um tornado que tudo arrasta.
“Olá, esse jovem subiu a rua em direção ao morro. Levava
consigo uma bolsa de uma senhorinha que é tia de um traficante. Então eles
subiram o menino assim que chegou no meio da rua, ele não teve nem chance. É
isso que acontece com esses criminosos, os comunistas do Governo infelizmente
perdoam, mas o crime nunca perdoa. ”
Eu ouvia as palavras dele como quem chupa a um limão.
Querendo confirmar sua história, ele invita um funcionário magricela para que
confirme. E ele me traz a proposição de ouro, por consequência, minha alforria.
“Eu vi um cara correndo e ele era um bandido e fazia coisas
erradas e saiu berrando e gritando falando que ia matar todo mundo que visse no
seu caminho e tiveram que resolver quem resolveu foi o morro que veio aqui e
deu um fim nessa raça. Não sei de mais nada. Eu estava ocupado não sou como o
velho Pedro matuto que só assiste tudo passivo da varanda e nunca faz nada
contra essa raça”
Olhei em direção a uma varanda, lá estava o velho. Tudo era
cada vez mais confuso na minha mente. Enquanto um falava do mercado, outro
dizia que o menino havia subido a rua correndo. Todas aquelas dissonâncias nos
depoimentos me consumiam, realmente poderiam estar ocultando um crime dos
chefes da favela.
Eu saí andando e pensando, quando surge a última esperança
no meu coração. A chama se acende ao pensar que o tal “Pedro” poderia ser a
solução, um velho, respeitado demais na comunidade para ser morto, pode me dar
a realidade fria, sem medo. Então corro ao prédio.
Admiro a altura e aquele senhor na varanda. Subo as escadas
correndo, ali seria o fim da minha jornada, finalmente eu descobriria quem era
o algoz daquele jovem. Finalmente eu teria paz e solução, os homens e a verdade
seriam revelados.
Eu entro no apartamento, vou até a cadeira. Em um sinal de
fraqueza me ajoelho e peço, consumido por tudo o que estava acontecendo,
consumido por aquele cadáver. Cruzo os dedos e peço como uma oração a Deus,
como se pedisse um guia da verdade e pergunto com o meu resto de esperança:
-- Por favor, o que aconteceu aqui, senhor?
O Senhor ri como se
eu fosse um tolo e fala com toda a calma que só os cabelos brancos podem impor
ao homem e termina a minha jornada.
“ O Doutô ainda não entendeu o que deu aqui? Deve ter
começado agora nisso. Doutô, se o sinhô não percebeu, se ainda não entendeu eu
lhe digo. O menino que está lá gelado no meio da rua, não foi um bandido que
matou, nem ele tentou roubar alguém. O cadáver que está lá, Doutô, foi o povo
quem assassino”
Então as respostas e a realidade caíram como um caminhão
sobre mim.
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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