Baratas
de Ney Doyle
Baguera! Poucos conhecem a origem deste nome. Veio de um desenho. Era uma pantera toda negra. Não tinha outro nome mais apropriado para definir uma labradora deslumbrada. Ela nasceu para brincar. E acha que a vida é uma brincadeira. Coitada! A vida é feita de lutas e bravatas. Ela não sabe nada disto. Viver é a arte da brincadeira. Mas até os animais, mesmo os mais abestados, sabem das consequências de seus atos.
Sei das dificuldades de se
criar um cachorro pesado e brincalhão, e que na verdade não me pertence.
Baguera mora nas redondezas, visita-me amiúde, justo quando estou começando a
escrever. Tenho plena convicção de que ela entende todos os meus pensamentos, gestos
e palavras. Junto vem uma ligeira impressão de que ela também quer opinar, quer
se entregar ao texto.
Certo dia estava trêmula,
queria falar alguma coisa importante. Meu primeiro pensamento foi o de um
ataque convulsivo. Devia ter comido algo na rua, no meio do lixo. Aproximei-me,
fiz um carinho e dei-lhe um beijo. Quando encostei meu rosto ao dela, uma
surpresa:
- Quero andar pelo mundo,
conhecer pessoas, viver um pouco mais, on
profite la vie¹ – sussurrou,
quase num francês de rua.
Olhei para o lado e não vi
ninguém. A voz ecoada vinha unicamente de Baguera.
- Putain de merde² – respondi.
Ora, cachorros não falam, e
muito menos têm sotaque. Eu devia era estar “bebo”, como dizem nesta ilha
isolada da verdade. Mas estava sóbrio, acordado, já de café tomado. Refleti.
Aquela era a Baguera que me amava, que confiava em mim, que segredava.
- Por qual motivo quer
conhecer o mundo, se este aqui já nos basta?
- Le plus grand plaisir dans la vie³, é fazer as coisas que as
pessoas acham impossíveis – disse-me.
Aquela cachorra era realmente inteligente,
mesmo num ambiente desfavorável.
Todos sabem que a miséria não
chega assim, de chofre. Meu pequeno quarto que alugo é pobre. O mofo nesta
época de chuvas ainda piora o ambiente. Parece-me que nas paredes deram-se
apenas uma demão de tinta verde.
Tem um fogão velho e um botijão
de gás vazio. É ali, no forno emperrado, onde moram os insetos mais repugnantes
da história. Todas as baratas que vejo e
que não consigo eliminá-las correm para a parte de trás do forno do fogão.
Odeio baratas. Durmo com a luz acesa para tentar enganá-las.
Dou aulas particulares aos
alunos pobres da ilha, não cobro nada. Acredito ser meu dever aqui fazer com
que todos atinjam um nível melhor de escolaridade. As aulas foram suspensas no
início de março de 2020. Já estamos em julho de 2022 e sem previsão de retorno.
Mas as escolas mandam exercícios regularmente, e os alunos não sabem como
responder. O primeiro coronavírus a afetar a população foi a Covid-19. Por
meses e meses fomos obrigados a usar máscaras e evitar aglomerações. No último
vírus, a cachorra aprendeu a falar em português e francês. Ela foi infectada
provavelmente por um turista estrangeiro.
Normalmente uma criança
aprende a escrever e ler aos 7 anos. Os professores são fundamentais para que,
pelo menos esta idade seja conservada como início de alfabetização. A pandemia
acaba atrasando tudo. Volto, agora, minhas atenções àquela manhã na Bahia,
quando Baguera me propôs os engulhos. Seu desejo de sair pelo mundo, ir andando
pelas estradas, conhecer pessoas, amigos. Isto mexia comigo.
Ao mesmo tempo, só um esforço
hercúleo para tirar-me da inércia. Começou a falar sem virar o rosto, como se
estivesse falando dormindo. Tem muita gente que faz isso.
- On se casse, on fou le camps⁴ – disse, repentinamente.
Surpreendi-me. Eu não podia
deixar meus poucos compromissos para andar pelo mundo. O trabalho tornara-se
faina. Mas uma criança não podia ficar sem aprender.
Aquele pedido de Baguera
espicaçava-me. Resolvi ir pescar com a proprietária da minha kitnet, Chica. Na
verdade chama-se Juciene. Ela teve vários filhos. Me contou em uma das
caminhadas para a pescaria. Um morreu na cadeia, cumprindo sentença de tráfico
de drogas. Na verdade ele era o namorado de Rafaela, a que o levou para o
caminho do mal. Amava a mulher desesperadamente, e sabia que não podia
mantê-la. Começou roubando pequenos objetos de turistas e revendendo a troco de
drogas. Morreu dentro da penitenciária de Valença.
Os outros filhos me narrava
nas pescarias malucas. Digo malucas pelo simples fato de arriscar-me em
excesso para acompanhá-la. Aproveita a maré baixa para ir aos pesqueiros,
formados pela água do mar. Bate no joelho, tem que se equilibrar para não cair
e levar cortes profundos das pedras pontiagudas. Ao mesmo tempo, tem que sentir
a fisgada do peixe, e dar um solavanco na vara de pescar, para que o anzol se
fixe na boca do peixe. Eu mal conseguia equilibrar-me naquelas pedras.
Em casa, enquanto Baguera
descansava em meus pés, pensava nas duas propostas: sair pelo mundo, ou manter
esta vida miserável.
Com o nascer do sol, saímos. Alguns
metros adiante encontramos a amiga Cotoco. Explico: este é o apelido de
Jussiara, de 55 anos, nascida no interior do Maranhão, e completamente acabada,
destruída pelo álcool e pelas drogas. Fugiu de casa não tinha nem 18 anos.
Encontrou um amigo, que se tornou namorado e amante, até chegar na ilha de
Morro de São Paulo. Teve um filho, fruto deste relacionamento. Deixou-o com uma
vizinha, amiga de caridade. Foi ajudar o marido em sua profissão: traficante de
drogas. O coitado morreu seis meses depois. Assassinado por um grupo rival.
- Vamos pisar onde os outros
não ousam – bradei, lembrando Cervantes e mudando de assunto completamente.
Ela deitou-se no chão
empoeirado e pôs a língua para fora.
- Já estou com fome, queria comer quelque chose⁵ – disse.
- Bien sur, madame⁶ – respondi, já tirando da pequena mochila o conteúdo de comidas e bebidas. Baguera optou pelo hambúrguer, eu pelos ovos cozidos.
Com a barriga cheia, prontos a
enfrentar o mundo, éramos muito além de pai e filha. Companheiros.
Desta vez houve uma longa
caminhada sem nenhuma alma viva, sem nenhum conhecimento. Pela fina areia da
praia, só tinha comigo o barulho de nossos passos. Na frente avistei uma pessoa,
perto de uma casinha bem humilde. Parecia um pescador, nosso Sotero.⁷
- Bom dia meu senhor
pescador!- disse, assim que me aproximei.
– Bonjour⁸, disse a cadela.
O moço não se espantou com as
palavras do cachorro. Parecia acostumado a esse tipo de aberração. Continuou
seu trabalho: esticava uma rede de pesca imensa, remendando os buracos.
Pensei comigo mesmo: realmente,
o vírus que tinha contaminado Baguera também contaminara outras pessoas. O pescador falou em francês, pensando em
português:
- Que veux-tu⁹?
- Queremos ir ao continente,
conhecer pessoas, adquirir sabedoria – intervi, rapidamente.
- Com certeza. Você e sua
cachorra são bem-vindos ao meu pequeno cômodo, sem muito conforto, é claro, mas
o suficiente para nos abrigarmos da chuva que vem chegando.
Não tinha percebido essa
variação climática. Estávamos no inverno, época de chuvas, mas o céu estava
claro, o sol ainda brilhava quente. Lá dentro, sua mulher já estava no fogão a lenha.
Duas crianças brincavam nuas no quartinho ao lado.
- Licença minha senhora. Fomos
convidados a nos proteger da chuva, embora ache eu que isto provavelmente não
aconteça.
Mal terminei a frase e
começaram os pingos lá fora, que viraram cachoeiras e depois tempestades.
A chuva encobriu o sol, o dia
se tornou noite. No fogão, ela continuava sua tarefa, com sorriso sarcástico. Percebi
que tinham uma grande quantidade de peixes secos. Temperados com sal e deixados
ao sol por dias. Calculei que essa era a atividade principal para a
sobrevivência da família.
Aproveitei a noite caída para
conversar um pouco mais com o pescador. Seu nome era Darci, o nome de sua
mulher era Juliana, e seus dois filhos chamavam-se Jean e Marie, de três e
quatro anos cada um. Desconfiei.
O homem começou a contar sua
história. Era natural do Pará, de uma cidade próxima à Guiana. Ao completar
seus 14 anos, atravessou a fronteira para trabalhar com minério de ferro. Darci
trabalhou lá por 10 anos, aprendeu um pouco da língua. Contou-me que, no último
ano, ganhando pouco, mas economizando ao máximo, contraiu uma febre dolorosa
que durou 15 dias. Praticamente todos os trabalhadores tiveram a mesma doença.
O acampamento virou um hospital de campanha, com médicos vindos da França. Esta
doença fazia com que os trabalhadores se comunicassem em qualquer língua, fluentemente.
Na cama, entre um delírio e outro, ouvia comentários de mortes.
- Os sobreviventes viravam
esculturas de minério de ferro. Não acreditei, frisou, curioso.
- Por que as pessoas se
transformaram em minério de ferro ao morrer?
- Ah meu senhor, essa questão vou
contar durante o nosso jantar. Primeiro, falou dos momentos penosos.
As terras em que chegou não
tinham dono, foi construindo uma casa, aos poucos. Primeiro com folhas. Depois,
com pedaços de madeira, restos de um barco.
Tudo funcionava perfeitamente,
a paz reinava naquele lar até às nove da noite. Era o horário em que sua mulher
se transformava em lobo. Não eram sete da noite e as crianças já estavam de
banho tomado, e enrolados na rede de dormir.
Darci ainda conversou comigo
sobre suas aventuras naquela ilha, isolada pelo medo de novos contágios, novas
doenças. Com relação à sua doença, contraída na Guiana, ele lembra-se pouco. Em
alguns instantes de sobriedade, quando acordava e a febre abaixava, ouvia as
enfermeiras falarem da falta de um remédio à base de cloroquina.
- Por isto elas tinham medo
que eu morresse – disse-me. -Mas aconteceu justamente o contrário e quem trouxe
o remédio saiu da fábrica com malas de dinheiro. Era descendente de italiano,
com o sobrenome Messias. Três dias depois, no máximo, já estavam mortos e fossilizados.
Com o fim da febre, saiu do
acampamento vendo algumas estátuas bem esculpidas. Amedrontou-se quando
reconheceu um de seus chefes imediatos, também em forma de estátua. O pior é
que aquelas obras tinham um cheiro forte de carne podre, o que o fez acelerar
seu passo em direção ao Brasil.
- A caminhada de minha vida
lhe conto amanhã – avisou Darci, apontando para o relógio.
Eram 8h30 da noite, hora de se
recolher. Mesmo sujos, sem banho, dormimos, eu e Baguera, como dois anjinhos, lendo À la recherche des temps perdu¹⁰. Quando abri os olhos já
era dia.
Olhei em volta, ninguém mais
estava por ali. Uma forte chuva caia do lado de fora. O tempo esfriava. Saí da
rede e coloquei uns pedaços de madeira no fogão. A forte chuva impedia a visão
do que se passava lá fora.
Aos poucos, o tempo melhorou.
Consegui ver pela janela o barco. Estava no mesmo lugar, mas tinha no mastro quatro
estátuas coladas nele, de ferro bruto. Aproximamos e não tive dúvidas: eram os
quatro, duas crianças, Darci e a mulher. Os rostos, membros, tudo ali era
perfeito, mas não tinha o odor da podridão de carne estragada. Pelo contrário,
cheiravam a peixes secos.
Fui até o barco. No mastro
principal havia uma placa com uma espécie de mapa e um verso: “Somos atores de
sonhos alheios”
- Vamos partir, aproveitar o
barco e chegar ao continente. Era desejo do cão. Foi aí que ouvi o primeiro
som. E parecia ficar cada vez mais nítido, e mais próximo. Olhei para os lados,
não vi ninguém. Olhei para baixo e vi uma barata correndo em minha direção.
- Meus Deus, porque as baratas
não se transformaram em ferro também, justo elas que não mereciam sobreviver – falei
a Baguera.
- Não se preocupe – disse a
barata. Somos seres que aproveitamos da sujeira, da imundice, do pecado. A
última informação que tive é que o novo coronavírus, desta vez a Covid 2.533,
veio atacar e transformar em ferro todos aqueles que não sentiam medo nenhum de
outros animais na face da terra – retrucou.
- Pelo menos assim ouvi dizer.
Nos viramos para a pequena
barata e eu disse:
- Sempre tive medo de baratas
– contestei. – Agora já confio nelas.
Viramos estátuas naquele mesmo momento.
1. Aproveitemos a vida
2. Puta merda
3. O
maior prazer na vida
4. Fujamos
5. Qualquer coisa
6. Certamente
7. Em
grego: Salvador
8. Bom dia
9. O
que a você quer?
10. À procura do Tempo Perdido, livro de Proust, um dos maiores escritores franceses.
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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