Quase-Ficção
de Adriana Oliveira
Eram muitas as brigas, e lutas, e
pancadas, e gritos, e choros, e roxos, e cortes, e sangue; muito sangue.
Enormes e incomensuráveis as desigualdades que viviam. Na faculdade, escondiam
as atrocidades da casa no dia anterior. No prédio, local de gente humilde e
sofrida, eram a família mais escandalosa. Vergonha, humilhação; exclusão. Total sensação
de não-lugar.
Falava ao telefone com a amiga que
também não sabia desenhar, quando as brigas com o pai, alcoolizado, começaram a
ressoar. Sua irmã entrou no quarto desesperada, invadindo o espaço sonoro do
telefone, que ela escondia com a mão, tentando mostrar normalidade. -Sai
daí!!!!! -Olha lá!!!! Era assim, (quase) todas as noites. Total desamor. Até
hoje exercita externalizar amor. Banho, era até às 20:00. Quando seu pai
chegasse do bar, tinha de estar tudo sob controle. Cozinha arrumada, com as
facas escondidas. Comida no prato, e estarem na cama, mas vestidas. Dormiam
vestidas e de tênis, para as possíveis brigas que viriam a acontecer. Não tinha espaço para amor; o amor foi se
perdendo. Era tudo muito bruto, seco, duro, cruel. Isso foi sua adolescência e
juventude. Na época dizia, consternada: -Sou porteira de bêbado, pois passava
férias inteiras abrindo e fechando a porta para as inúmeras vezes que ele (como
o chamavam) entrava e saía para beber em um mesmo dia. Começava cedo; 8:00,
9:00 da manhã ele já saía, com a cara inchada; curtido de pinga, como dizia sua
mãe. E, num mesmo dia, podia voltar e sair novamente umas cinco ou seis vezes.
Ficavam presas, cuidando da entrada, porque se saíssem, ele esmurrava a porta e
fazia muito escândalo. Era pior para todas. Lembra-se de pular de susto,
arrepiada, só de ouvir a campainha tocar.
Sorte que, com a reforma do apartamento
da Cohab; sim, era Cohab (tinha horror a conjuntos habitacionais populares até
hoje), foi colocada uma bonita e resistente porta na entrada. Certamente era um dos apartamentos mais bem-acabados
do conjunto todo. Material de primeira foi usado na reforma, feita com a única
herança que tinha lembrança de um dia terem recebido: seu pai ficou com um
pequeno terreno, que foi vendido para a compra dos materiais. Havia um ar de
superioridade nisso: saíram da Pompeia e vieram parar ali, em Taipas, mas o
apartamento é bem reformado, pensavam, todos. Apesar disso, estranha a
sensação: andavam de cabeça baixa, sem cumprimentar ninguém; como bichos; acuados.
Todos acuados; até o pai. Problema complexo este o do alcoolismo.
Como os hormônios da juventude poderiam
funcionar sob tal condição adversa? Quase respondeu à sua psicóloga, já com
vinte e seis anos, não fosse sua extrema vergonha daquilo tudo.
Uma vez a psicóloga do banco que sua mãe
trabalhava, quase dez anos antes, disse: -Geralmente famílias de alcoólatras
são de mulheres fortes. Tanta força; tanta fragilidade. Falta de feminilidade,
falta de intimidade, falta de segurança interna e externa. Era bonita, isso lhe
preservava um pouco de ainda maiores violências.
Nunca teve um professor que falasse
sobre desigualdade social; de modo que não desenvolveu essa consciência, e
maneiras de enfrentá-la, na época. Mas ela a vivia, diariamente. Na faculdade
de artes, pública, não tinha dinheiro para os materiais; era uma das piores
alunas, até o terceiro ano, quando conseguiu um estágio remunerado. Na
faculdade de letras, também pública, não conseguia chegar; era muito difícil
chegar na Usp às 19:00, por todos os caminhos que fizesse. Então, nesse abismo
existencial, se refugiava nos sonhos, nas pequenas percepções sensórias, nos
amores platônicos por homens mais velhos. Não via saída nem qualquer condição
de ficar com um garoto na época. Como iria mostrar esse mundo? Ela era assim a
desligada, a avoada, a meio riponga, a que deixava um suspense no ar. Nada
premeditado, mas muito premeditado, para esconder isso tudo. Seu esforço era
esconder.
*
Aperta o coração ao ver a manicure com o
rosto todo ralado. Ela deve ter arranjado um namorado e apanhou dele em um
encontro. Eu lhe diria para fazer um B.O. Mas, ela chegou sorridente e falante;
quando tiver chance lhe pergunto o que lhe acontecera. E ela disse que foi um
procedimento estético, de rejuvenescimento. Aliviada quase balbucio: Quanta
agressão, para se ficar bonita.
*
Quanta autoagressão, aguentando aquilo
tudo sozinha, e calada. Roupa suja se lava em casa, falara sua mãe. Nem um
amigo, nem um professor, nem um psicólogo ou assistente social, nem um padre,
nem um terapeuta. Ninguém sabia; só os vizinhos. Só, absolutamente só. Nenhum
namorado; por anos a fio.
Foi necessário um longo trabalho de
perdão, de aceitação do pai e autoaceitação da própria história para que algo
mudasse. E mudaria, afinal, ela era muito bonita; e inteligente. Nessa
trajetória, trabalhou, estudou, encontrou sua autonomia financeira; lugar de
elite e, enfim, encontrou um parceiro.
Mas, ficam os resquícios remanescentes;
algo de submissão, de saber seu papel de mulher e ter sua voz. De
posicionar-se, e fazer-se ouvir, com amor e jogo de cintura.
Crisálida floresce e exercita estar no mundo. Brilhar no mundo. Expandir-se. Iluminar, apesar de tudo, e com todos.
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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