O Estranho
de Felipe Duque
Eric e Sheila voltavam de uma festa.
Riam no carro a caminho de casa como um jovem, belo e recém-formado casal. Eric
dirigia a caminhonete com desenvoltura pela estrada que serpenteava mansamente.
Iam para casa comprada de pouco, uma simples e simpática granja. As luzes da
cidade ficavam para trás, presas no retrovisor retangular do veículo. À frente
apenas pequenos pontos de luz, que de forma fantasmagórica demarcavam outros
sítios.
Ao chegarem à propriedade, Eric
desceu do carro para abrir a rustica porteira. Sheila que agora ocupava o
assento do motorista atravessou a entrada trepidando sobre o mata-burro. Eric
após fechar a porteira entrou novamente no carro e seguiram pelo curto caminho
que os levavam infalivelmente para casa. Era uma hora da manhã. A casa não era
muito grande, mas sua estrutura era sólida, coisa que demarcava sua feitura em
um tempo onde as casas eram feitas para durar e sua construção demandava tempo.
Os grilos cricrilavam incrivelmente naquelas primeiras noites de primavera.
Corujas solitárias nas copas das árvores chirriavam na escuridão, de onde em
relances se podia ver o brilho quase metálico de seus olhos.
Estacionaram o carro bem em frente
da entrada da casa. O farol alto do veículo iluminava bem a porta. Eric, como
de costume, já ia sair para acender as luzes da casa e abrir a porta. Sheila,
garota criada na cidade iluminada e vigiada dia e noite por luzes e pessoas
artificiais, ainda não se acostumara com a solidão, o silêncio e a escuridão
obsedante e completa da natureza. Mas naquela noite, não se sabe se por se
sentir feliz um pouquinho a mais que o normal, ou por que tenha bebido um
pouquinho a mais que o normal, decidiu que não seria necessário que Eric
descesse do veículo para realizar seus procedimentos de praxe. Ela mesma
acenderia as luzes e abriria a porta. Não importa se um pouquinho a mais, seja
de felicidade ou álcool, ambos são capazes de nos fazes esquecer, ainda que
momentaneamente, nosso total desamparo e insignificância diante do mundo e da
natureza.
Eric deu um beijo na boca da esposa
antes que ela descesse e disse:
“Nossa! Estou gostando de ver, está
ficando sem medo mesmo.”
Ela sorriu orgulhosa.
“Meu bem, eu enfrento a selva de
pedra recheada de psicopatas e tarados todos os dias, qual o perigo que esta
escuridão tenebrosa, diga-se de passagem, e este isolamento quase completo pode
representar para mim?”
Riram. Sheila desceu do carro. Eric
pulou para o assento do motorista. Ela foi até os acendedores na varanda, um
clique surdo se fez ouvir e imediatamente a luz banhou toda a entrada da casa.
Sheila riu como uma garota travessa e gritou:
“Viu. Nem foi tão difícil.”
Eric sorriu de dentro do carro e
buzinou como se fosse uma salva de tiros em celebração. Sheila com as chaves na
mão foi para abrir a porta, mas recuou assustada.
“O que foi?” – perguntou Eric de
dentro do carro.
“A porta está aberta.”
“O quê?”
“A maldita porta está aberta.” –
gritou Sheila retrocedendo.
“Fique tranquila, meu bem. Devo ter
deixado quando saímos. Foi uma correria só, você se lembra?”
Sheila parou em meio a sua retirada.
Eric saiu do carro.
“Pode entrar, querida. Fico aqui,
qualquer coisa você me grita.”
Sheila olhou para o rosto tranquilo
do marido e entrou. As luzes de dentro da casa foram se acendendo e o portão
elétrico da garagem se abriu. Eric entrou novamente no veículo e o encaminhou
para a garagem.
Sheila depois de acender as luzes e
verificar que tudo estava na mais perfeita ordem, relaxou. Respirou fundo o
doce ar carregado do cheiro das alfazemas, que plantara no jardim de inverno ao
lado da sala. Arrancou os sapatos de salto e já completamente relaxada se pôs a
cantarolar “La vie em rose”. Estava
feliz. Uma felicidade confortável e morna comum aos recém-casados, que começam
a desfrutar do companheirismo e independência que a formação do próprio lar
permite. Cada coisinha ali tinha um pouco de si e do esposo. Era como ser
adolescente e decorar o seu quarto da maneira que bem entendesse sem a
supervisão crítica dos pais. A liberdade semi-erótica de poder andar nua por
todos os cômodos, sentindo o bafejar do ar primaveril sobre o corpo. Resgatar
ainda que precariamente a liberdade de uma sexualidade quase infantil, onde o
corpo todo se apresenta como um objeto de obtenção de prazer. Na granja,
afastados de quase todas as imposições sociais, sentiam-se como os novos Adão e
Eva. No final das contas Eric tinha mesmo razão. Não existe vida melhor que a
vida no campo. O tempo nesses lugares passa de forma diferente. Não diria que
mais lentamente, mas sim mais gostoso e prazeroso. A orquestra de insetos e
animais noturnos que impediam que o silêncio fosse completo, não atrapalhava o
repouso, mas ao contrário disso, faziam do sono mais fácil e profundo. Como se
aqueles barulhos fossem um mantra natural de relaxamento que levava ao
paroxismo de um quase transe. A natureza dominada deixa de ser um perigo, para
se tornar um deleite.
Sheila foi até a cozinha e se serviu
de um copo d’água que bebeu de um só gole. Nesse interim, ouviu a porta se
abrir e em seguida o barulho da chave que a fechava. O barulho dos sapatos de
Eric andando pelo corredor. Tudo tão familiar.
“Guardou o carro, meu amor?” – ela
gritou.
Adorava a liberdade de poder gritar
em plena madrugada. Totalmente diferente da vida enclausurada em apartamentos
cercados por ouvidos de tísicos e ameaçadoras leis do silêncio. Gritava
premeditadamente, só para poder sentir a alma cheia de liberdade, assim como a
casa se enchia de sua voz.
“Sim, meu bem.” – respondeu Eric
afrouxando a grava que lhe garroteava o pescoço. – “Vai abrindo umas cervejas
aí. Vou lá em cima dar uma mijada e já volto”.
Estavam reformando o banheiro do
térreo e neste período eram obrigados a usarem somente o da suíte. Eric trotou
jovialmente nas escadas de madeira de lei. Entrou no quarto completamente
escuro. Estava de fato apertadíssimo. Havia abandonado de pouco o uísque por
problemas menores de saúde. Nada demais, apenas uma gordurinha no fígado, coisa
que com uma dieta e evitando destilados contornaria facilmente. Ainda se
adaptava ao consumo de cerveja e ao desejo incontrolável de urinar que ela
proporciona. Entrou no banheiro e acendeu a luz. Deixou a porta aberta. Abriu a
braguilha e pôs-se a se aliviar. Um arrepio de prazer percorreu todo o seu
corpo levando-o a um estremecimento que fez com que pequenas gotas douradas de
urina respingassem em sua calça e no vaso.
“Droga!”
Depois de quase um minuto de um jato
longo e barulhento, restou-lhe apenas as últimas gotas resistentes que ele
deixou cair lentamente enquanto balançava o pênis com suavidade. Pegou um
pedaço de papel higiênico e se curvou para secar as gotas que haviam
tragicamente caído na privada. Quando se ergueu quase caiu para trás. Um homem
estava parado debaixo do umbral da porta. Só isso já faria qualquer pessoa,
mesmo a mais corajosa, tremer como um cão com frio. Mas o que ele viu era ainda
pior. O homem que estava debaixo do umbral era idêntico a ele. Não havia nada
que pudesse diferencia-los nas feições, porte físico, cabelos ou roupas. Talvez
somente o olhar. O outro tinha um olhar selvagem, atrevido, porque não dizer
maldoso. Mas Eric não teve tempo para pensar nessas comparações acerca de
olhares, pois o outro já caiu em cima dele com uma faca nas mãos e o acertou
com um golpe no meio da garganta, logo abaixo do pomo de Adão. Eric gorgolejou
e se sentiu sufocar pelo sangue que lhe enchia a boca e os pulmões. Seu corpo
se enfraqueceu brutalmente. O estranho o arrastou para dentro do box de vidro
fumê e o estirou no chão com enorme estrondo. Antes de perder a consciência
ouviu a voz da mulher que gritava da cozinha:
“Eric, que barulho foi esse? Está
Tudo bem?”
O estranho respondeu:
“Está sim, meu bem. Deixei a garrafa
de enxaguante bucal cair no chão.”
Eric estremeceu. A voz dos dois era
também idêntica. Segurando a garganta ensanguentada desfaleceu. O outro pegou
então as toalhas ali penduradas e limpou o sangue que sujava o piso.
Sheila havia aberto duas long neck’s e esperava Eric sentada na
mesa da cozinha. Estava com o vestido longo de festa suspenso até o meio das
coxas brancas e carnudas. Bebia vagarosamente, meio que distante e com uma
sensualidade invulgar. Deixava os lábios vermelhos e carnudos envolverem de
forma lubrica e macia o gargalo da garrafa. Ele desceu as escadas de madeira de
maneira dura e definitiva, como se fosse uma máquina. Observou Sheila por um
tempo antes de entrar na cozinha.
“Que porra é essa? – perguntou
rudemente. – “Vai ficar pagando boquete pra garrafa agora?”
Sheila sorriu.
“Na falta de seu portentoso membro é
onde eu treino.”
Ele se sentou. Olhava para ela como
se nunca a tivesse visto. Seu olhar como uma máquina de escâner esquadrinhava
todo o seu corpo. Ficou por um tempo em silêncio.
“O que foi meu bem? Você está
sentindo alguma coisa?” – perguntou Sheila preocupada.
“Não estou sentindo nada. Por um
acaso, estou com a aparência de estar sentindo algo?”
De fato ele não parecia sentir nada.
Nem um musculo de seu rosto se movia. Estava mais para uma estátua de cera do
que para um ser humano que mesmo no sono é invadido por sentimentos e
expressões.
“Não. É que você está diferente.”
Ele bebeu um gole da garrafa que
estava aberta à sua frente. Escondeu o rosto nas mãos de unhas bem cortadas.
“Estou enojado...” – gemeu. – “Você
me dá nojo Sheila.”
“O que é isso Eric? Que estupidez é
essa? O que aconteceu pra você me falar uma coisa dessas?”
Ele retirou as mãos do rosto e a
fitou por um tempo. Depois pegou a garrafa como se fosse dar mais uma golada,
mas antes que chegasse à sua boca ele a arremessou na direção de Sheila. Ela se
abaixou em um movimento feliz de reflexo e a garrafa foi explodir na parede. Os
cacos voaram como pirilampos na noite escura por todos os lados. O cheiro de
cerveja se espalhou por toda a cozinha sufocando grosseiramente o perfume de
alfazemas que as plantas em seu irrefreável instinto de vida produziam sem mais
nem por que.
“Que isso Eric! Ficou doido?” –
gritou Sheila enquanto se levantava da cadeira.
Ele indiferente a qualquer reação da
mulher se levantou também e começou a revirar os armários e a geladeira,
quebrando e jogando tudo no chão.
“Onde está meu uísque?” – gritava
feito um louco. – “Onde você o escondeu, sua vadia filha de uma puta?”
Sheila se encolheu em um canto da
cozinha. Chorando e implorando gritava:
“Para com isso, Eric! Você está me
assustando! Foi você mesmo que se desfez das garrafas quando nos mudamos pra
cá.”
“Chega de mentir sua cadela dos
infernos!”
Após revirar toda a cozinha, ele
saltou sobre Sheila e a ergueu do chão, onde ela estava abaixada, pelos braços
e a pressionou contra a parede.
“Me larga! Você está me machucando!
Me larga pelo amor de Deus!”
Ele apenas a olhava com o semblante
frio de um morto. Na sua voz havia expressão de ódio e raiva, seu corpo se
movia rápida e bruscamente, mas seus olhos e seu semblante não demonstravam
sentimento algum. Eram vazios e sem vida. Sheila via que o rosto era do seu
marido, mas não o via ali dentro. Não havia nada que fizesse lembrar o homem
por quem se apaixonou. O corpo sim, era dele, a voz também. Mas algo que
emanava dele como uma onda de energia ou de calor lhe dizia não poder ser
ele. Mas contra fatos não há argumentos.
Era ele. Só podia ser ele.
“Socorro! Socorro! Socorro!” –
gritava Sheila inutilmente.
Como um animal, ele começou a
fareja-la passeando seu nariz infamemente pelo seu pescoço e lentamente
descendo aos seus seios e pressionando ostensivamente seu corpo contra o dela
encurralado contra a parede.
“Que cheiro de vagabunda de merda
você tem.” – disse entre os dentes como um animal que rosna raivoso.
Sheila banhada em lágrimas tentava
se desvencilhar.
“Me larga, por favor! Eu te
imploro!”
Insensível aos seus rogos, começou a
deslizar suas mãos pelo corpo dela de forma nojenta e invasiva, por fim rasgou
partes do vestido.
“Sabe do que estou com vontade?” –
perguntou sádico.
Sheila gemia de pavor.
“Sabe, sua desgraçada, do que estou
com vontade?” – ele gritou.
“Não.” – gaguejou ela entre soluços.
“De te foder aqui mesmo, de pé, e quando
estiver gozando enfiar uma faca na sua garganta e te ver morrer engasgada no
seu próprio sangue.”
Sheila gritou. Em um golpe de sorte
acertou-lhe uma joelhada no saco. Ele grunhiu como um bicho ferido e a soltou
quando se curvava pelos caprichos da dor. Sheila escapou do canto onde estava
encarcerada, segurando o vestido rasgado e completamente desorientada subiu
correndo as escadas em direção à suíte. Trancou-se no banheiro completamente
desesperada.
Eric havia voltado a si. Mas estava
muito fraco para se mover, tinha perdido muito sangue. O furo na garganta o
impedia de falar. Mas seus olhos extremamente abertos e atentos de pavor
puderam ver Sheila entrar no banheiro em estado lastimável. Queria mover-se,
falar, chamar de alguma forma a atenção da esposa para poder lhe mostrar que
não era ele quem estava fazendo aquela barbaridade. Tentar ajuda-la de alguma
maneira. Mas estava agonizante em seu mar particular de sangue.
A porta tremeu com um estrondo. Eric
reconheceu sua própria voz que gritava do lado de fora do banheiro.
“Desculpe gatinha, me desequilibrei.
Estou arrependido. Prometo que nunca mais vou repetir uma coisa dessas. Me
perdoe, por favor.”
Eric queria gritar e dizer para
Sheila não abrir, que aquele homem lá fora não era ele. Mas da sua boca saía
apenas um gorgolejar que não podia ser ouvido por Sheila devido ao desespero e
a excitação do momento.
“Sai daqui!” – ela implorou aos
gritos.
“Que isso, meu bem? Está é nossa
casa. Onde iremos passar o resto de nossos dias felizes. Todo mundo erra uma
vez. Quem neste mundo esquizofrênico nunca se descontrolou? Vai, só me perdoa e
me deixa entrar.”
“Me deixa, por favor. Vá embora!”
“Então essa é sua decisão? Você não
vai mesmo abrir?” – o outro falou em tom de ameaça.
Silêncio.
Sheila segurou com todas as forças
os soluços para poder ouvir alguma coisa. Mas o que pode ouvir foram somente o
gorgolejar de Eric por trás do box. Quando ia verificar o que se escondia ali,
ouviu o grito do outro:
“Então, eu mesmo arrombo.”
Logo depois um novo estrondo. A
porta tremeu como se fosse se desprender dos seus umbrais. Sheila então correu
para a porta e tentou escora-la com o seu próprio corpo.
“Não! Por favor Eric, me deixa em
paz!”
Eric de dentro do box sentiu-se
submergir em tristeza e angustia, ao pensar que Sheila acreditava de fato que
aquele estranho era ele. A impossibilidade de poder lhe falar e pelo menos lhe
demonstrar que ele jamais faria algo parecido o enregelava. Vivenciava de certa
maneira uma segunda morte. A primeira a morte de seu corpo era quase que
inconteste, a segunda fruto do que adviria deste momento, poderia mata-lo na
memória não só de Sheila, mas de todos que com eles conviveram. Esforçou-se
mais uma vez para se levantar e quem sabe ajuda-la. Mas seus membros
enfraquecidos já não o respondiam.
Outras pancadas vieram. Cada uma
mais forte que a anterior. Os gritos de Sheila enchiam o banheiro e o retumbar
das pancadas na porta era o compasso. Por fim a porta cedeu. Sheila se encolheu
no fundo do banheiro. Derrotada, abatida e desesperada. Mas tudo isso ficou
ainda pior depois que ela viu na mão do homem o brilho de uma faca. Já não
fazia súplicas. Palavra alguma é eficaz contra o terror.
“Você achou que podia mesmo escapar
de mim?”
E lá estava outra vez o estranho
debaixo do umbral. Sheila apenas lhe estendia as mãos como se este ato de
defesa inútil pudesse impedir o homem. Ele também não disse mais nenhuma
palavra e saltou sobre ela derrubando-a no chão. Cortou-lhe a garganta com
rapidez e profundidade. Os olhos de Sheila molhados e borrados de maquiagem em
poucos instantes perderam o brilho e a vida. Eric por detrás do box de vidro
fumê apagou assim que o estranho dominou Sheila.
O estranho ergueu-se. Olhou-se no espelho. A camisa, o rosto e as mãos estavam manchados de sangue. No chão, Sheila morta olhava para o box, para o lado oposto de onde o assassino se encontrava, como se sua intenção fosse desviar os olhos de seu executor. Ele abriu com calma o box. Lá não havia ninguém.
CAL - Comissão de Autores Literários
Bruno Olsen
Cristina Ravela
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