Alma de Gato
de Paulo Romão
O passarinho saiu batendo asas, num canto assustado,
assim que o menino entrou correndo pelo quintal. Sua cor ferrugem e cauda
longa, digna de nota, não chamou a atenção de ninguém.
Diante dele, um novo mundo se abria: o chão de terra
batida era seu Canaã. Um enorme sapotizeiro no centro daquele paraíso dava a
sombra para que, pelo chão, se arrastasse um mar de grama e mato, com pequenas
flores esparsas naquela confusão verde. No canto, à esquerda, alguns blocos de
concretos já verdes de musgo e meias paredes denotavam um cômodo que deixara de
ser levantado. Do outro lado, uma amoreira pesava, carregada de frutos, com
seus galhos envergados ao chão. No meio disso tudo, o canto daquela ave saiu
desapercebido diante dos olhinhos deslumbrados do garoto que desbravava seu
novo reino.
A família de Willian havia acabado de se mudar para a rua
Direita, alugando aquela casa por um preço acessível para seus bolsos
desgastados. Era uma casinha popular, como várias da rua, mas bem cuidada e com
algumas reformas que davam a ela um ar aconchegante em sua simplicidade.
Ricardo, o pai, previra uma casa mais em conta, porém a mãe, Estér,
apaixonara-se à primeira vista, em especial pelo canteiro de blocos sob o
telhado de brasilite de uma garagem adaptada, cheia de pequenas rosas
vermelhas.
O garoto correra direto do quintal para o quarto mais
próximo, com janela logo adiante do limoeiro, para poder contemplar o terreiro
de suas futuras aventuras. Mal o carreto descarregara as coisas e já
importunava o pai para montar sua cama de estrado logo ali. Enquanto Ricardo
soava com os parafusos, Willian observava a janela, notando um par de olhos
amarelos, brilhantes, bem em meio aos galhos do sapoti.
- Pai, um gato!
E tropeçando nas ferramentas do pai, disparou em corrida
ao quintal atrás do bichano. Provavelmente demorara demais, ou fizera muito
barulho, pois o máximo que vira foi um vulto negro sacudindo as folhas rumo ao
nada. Não perderia a viagem até lá fora, porém: hora de testar se o espaço era
bom para chutar bola.
Já estava pingando de tanto brincar com sua bola de
capotão quando a mãe o chamou na cozinha para tomar café e comer um pedaço de
pão com mortadela.
Comeu pela boca e pelo nariz, ansiando pelo segundo
tempo. Correu ainda mastigando o último pedaço, procurando sua bola. Para sua
surpresa, estava ela ali onde deixara, mas o couro que a recobria estava todo
arranhado. Ele não havia notado antes. Será que era de bater no reboco da
parede? Olhou o muro e notou, sumindo rumo ao telhado, uma cauda negra e
felpuda, em fuga o provável autor do crime.
Não deu bola: continuou o jogo, chateado apenas de não
ter visto como era o gato e preocupando-se de que aqueles arranhões não
murchassem seu brinquedo. Divertiu-se tanto enquanto seus pais botavam as
coisas em ordem, que, quando viu, já era hora de estrear sua cama no novo
quarto. Deixou um vãozinho da janela aberto para o quintal e enrolou-se no
lençol branco, sob a cama rangendo. Odiava dormir sem cobrir a cabeça.
Começara a cochilar, quando um baque surdo no telhado o
despertou. Ainda abobeado pelo sono, ele buscou firmar os olhos e ver se
distinguia algo na penumbra. Distinguiu um ruído leve, como se alguém passeasse
pelo forro e então notou, pelo vão da janela entreaberto, passar uma sombra
rápida. Não era desses que se encolhem mãos e pés para dentro da cama: sem
medo, levantou-se e foi inspecionar pela janela quem era o invasor em seu novo
castelo.
Abriu devagarinho a janela, pois não queria incomodar os
pais cansados. Sabia que não acordariam de bom humor. A noite estava clara, com
lua cheia e um céu azul escuro sem nuvens, pontilhado de estrelinhas. Sob o
reflexo do luar, distinguiu na mesma árvore aqueles olhinhos brilhantes que
vira de manhã e notou que o gato era seu novo inquilino. Ou seria ele inquilino
do dono original da casa? Aliviado, encostou novamente a janela e, quando se
virou para ir para a cama, uma sombra rápida passou por debaixo da cama. Seria
um rato?
Empunhou o tênis jogado ao chão e abaixou-se para ver o
que ela. Lá no fundo, escondidinho, mais dois olhinhos reluzentes o observavam
e, encolhido nas sombras, uma forma felina se distinguia. Mais um?! Que
vizinhança terrível fora arrumar! Correu acender a luz, animado com um
candidato a animal de estimação. Nunca tivera nenhum e talvez essa fosse a
deixa para seus pais permitirem.
Mal tocou no interruptor e já voltara para espiar debaixo
da cama. Nada! O danado, não sabia como, fugira! Nem sinal. O garoto
aborreceu-se, frustrado, e retornou para a cama, sem nem aperceber-se do
estranho fato de que a porta estivera o tempo todo fechada e o vão que deixara
na janela era insuficiente para que qualquer gato por ali passasse.
O cheiro quentinho do café despertou Willian. Contou o
acontecido aos pais, que alegaram não ter ouvido nada de mais durante a noite
(pudera, a mudança os exauriu para um sono de chumbo). Mas era segunda-feira e
a rotina os aguardava: Ricardo e Estér rumo ao trabalho, e Willian para o tédio
da escola sem futebol.
O garoto escovou seus dentes, amassou todo o material na
mochila e quando foi fechar sua janela para ir de encontro aos pais, que o
levariam para o martírio escolar, notou um gato angorá, felpudo e alaranjado,
deitado sob a sombra do sapoti. Seus olhos amarelos o observavam fixamente
enquanto o garoto, rindo, o acusava: danado!
Montou no banco de trás do carro e divertiu-se olhando o
novo trajeto para a escola, a partir da nova casa. Mal via a hora de poder
fazê-lo sozinho, com a bicicleta que o pai prometera para o Natal (e que
provavelmente não daria, por conta da crise).
Viu algumas crianças sendo arrastadas pelas avós enquanto
iam para a escola. As calçadas estavam sempre rachadas, com mato saindo pelas
frestas. Ora! Um gatinho corintiano, branco e preto, estava sentado na janela
daquela casa, olhando-o com a mesma atenção que o olhava. Via agora um Fiat Uno
ultrapassando o pai e um muro todo pichado, com dizeres indecifráveis. Um
cachorro preto revirando o saco de lixo, espalhando tudo. Mais um gato, preto
agora, estacado no meio da calçada olhando o menino. Árvore, árvore, árvore.
Sinal vermelho e um gatinho branco, mais encardido do que branco, aliás, o
observava do meio fio. Cidade pra ter gatos!
Chamou a atenção dos pais para esse fato e eles, mais
interessados em manter a própria conversa, disseram nem ter notado nenhum.
Sinal verde. Um garoto estava saindo com uma sacola de
plástico quase arrebentando de uma vendinha: a sacolinha azul estava
esticadíssima sob os braços elásticos do garoto, que a carregava desajeitado. Muros
pichados e postes com cartazes rasgados. Dali, bem no bueiro, dois olhos
amarelos o fitaram. Esse tanto de gato já estava enchendo o caso. Que tanto
encarar?
Chegou na escola e esqueceu-se disso, doido que estava
pra contar da casa nova.
Aula de matemática.
Muito mais legal que a aula era olhar pela janela,
cabecinha debruçada na parede, vendo os meninos privilegiados que começavam a
semana com Educação Física. Pênalti e a bola voou para o canto da quadra. Ali,
detrás do alambrado, Willian notou outro gato. Esse era também preto e os seus
olhos amarelos irradiavam de longe. O garoto se ergueu para ver melhor e o gato
eriçou os pelos, arreganhou os dentes compridos e pontiagudos. A bocarra vermelha
parecia agora tão perto, um abismo prestes a engoli-lo, engolir o mundo...
- Willian!
Ele tomou um susto, virando-se sobressaltado diante da
professora zangada e das gargalhadas dos colegas. Olhou de relance e não viu
nada lá na quadra. Desculpou-se com a professora e fingiu que prestava atenção
à aula.
Que diabos estava acontecendo? Nunca notara tantos gatos
e nunca fora tão notado por eles. Devia ser coincidência, porém aquilo o
deixara com a pulga atrás da orelha, mais difícil de entender que conta de
matemática. Crianças não costumam ter angústias filosóficas, todavia aqueles
gatos inquietaram o coração do menino.
Na volta para casa, preferiu olhar para baixo do que para
a janela. Os pais nem deram bola: a conta do carreto, mais alta que o combinado,
os aborrecia mais do que os gatos fantasmas.
Uma janta com sapoti de sobremesa fora alegria suficiente
para que os dissabores do dia se esvaecessem. De bucho cheio, chutou bola lá
fora até se extenuar para dormir, deixando de lado as preocupações e tarefas de
casa.
Outro baque no meio da noite, mas lá de fora agora. Dessa
vez, pegaria o danado no flagra! Num pulo, Willian despertou e saiu apenas de
cueca para ver o que havia lá fora. Olhou para o telhado e não viu nada. Um
sapoti caiu bem nos seus pés, e um vulto passou rasante pelos galhos. Seu pai o
alertara que morcegos adoravam a fruta e talvez fosse mesmo isso: o gatinho,
simpático transeunte que vira ontem, deveria estar apenas de passagem e algum
morcego devia ter feito todo o alarde de ontem.
Voltou para cama satisfeito com suas próprias conclusões,
fechando a porta e a janela.
Mal se deitou e um barulho começou a surgir da porta. Era
como pequenas garrinhas raspando a sua porta, como se algum animal quisesse
entrar à força. Assustado, muniu-se de um chinelo e andou devagar até a porta.
Se fosse o tal morcego, o lascaria numa chinelada só. Abriu a porta num ímpeto
para ver apenas a cozinha vazia, exceto pela pilha de louça na pia, esperando o
amanhecer.
Sua coragem já se esvaíra quando voltara para a cama. Era
menino que não tinha medo de nada, mas aquilo já era demais. Será um sonho?
Enrolou-se todo no lençol.
Foi aí que sentiu como se algo, com destreza e leveza,
tivesse saltado em seu colchão. Não sabia que animal era, mas o estresse do dia
o exasperara tanto que repuxou os pés e encolheu-se em posição fetal, suando
frio. O animal, ou fosse lá o que fosse, pareceu andar em círculos e aninhou-se
próximo a seus pés, não sem antes afofar o colchão com suas garrinhas, fazendo
pequenos estalos conforme desfiava o colchão.
Willian não se deu ao luxo de descobrir a cabeça e ver o
que era o animal. Ficou ali encolhido, rezando para que seus pais entrassem a despertá-lo
e espantassem aquela coisa dali. Ficou desperto até o cansaço vencer e fechar
suas pálpebras, quase de manhã já.
Acordou num susto com o barulho dos pais preparando
comida na cozinha, jogando o lençol para o alto e se encolhendo na cama com
medo de que isso atiçasse o visitante noturno. Sua cama porém, a não ser pelo
garoto amedrontado, estava vazia.
Comentou o episódio a seus pais, que o acalmaram e
disseram ser provavelmente o estresse da mudança, de ter agora um quarto só
para si e que aquilo não passava de medo pueril. Fosse o que fosse, Willian
teve de encarar novamente a escola, amuado o tempo todo e ouvindo broncas por
cochilar no meio da aula.
Chegando em casa, foi buscar sua amada bola no quintal,
de modo a chutar para longe suas tristezas e medos. Quando se aproximou do
canto onde a deixara, estava ela desengonçada e murcha, rasgada por seja lá o
que fosse. Horrorizado e sabendo que aquilo fora diabrura do ser que o visitara
durante a noite, correu chorando para sua mãe. Exasperada, largou ela a faxina
e foi ver o que havia acontecido, já que os soluços o impediam de explicar
tudo.
Os olhos do garoto se esbugalharam quando saiu para o
quintal e viu a bola ali, plena e redonda, sem qualquer arranhão que fosse.
Ouvira da mãe um turbilhão de broncas, mas dava a mínima atenção a suas
palavras: ele havia visto a bola ali, toda rasgada, e ela estava agora novinha,
apenas com as marcas tradicionais de seus chutes.
Passou a tarde encolhido no quarto, cedendo apenas à
fome. Quando foi à cozinha pegar um pacote de bolachas, o chão estava decorado
por brilhantes cacos de vidro e pétalas floresciam aqui e ali: o vaso que
decorava a mesa estava quebrado e um gato assustado o fitou por um segundo nos
olhos, antes de sair correndo rumo ao quintal. Fora o tempo de ele sair e Estér
entrar furiosa acusando o menino de tamanha bagunça!
- Num me vem com esse papo de gato de novo! – e a mão da
mãe ardia na sua perna direita, deixando uma marca muito mais visível que a dos
gatos visitantes. Willian chorou, muito mais de agonia do que de dor. Pretendia
pedir para dormir com os pais naquela noite, porém esse episódio arruinara suas
chances, bem o sabia.
Com o anoitecer, enrolou-se todo no lençol, não sem antes
trancar a porta e janela. Quando tudo era silêncio e o coração do garoto batia
lento rumo ao sono, esperançoso duma noite de descanso, o familiar baque surdo
apareceu.
Willian encolheu-se mais ainda, sentando-se abraçado aos
joelhos e protegido pela roupa de cama. Os barulhinhos de garras chegaram, mas
eram agora muito mais numerosas as patinhas que ali se faziam ouvir.
Silêncio.
Willian não sabia se tudo tinha acabado, se despertara do
pesadelo. Ficou com medo de gritar pelos pais, diante do nervosismo que a mãe
exibira durante o dia. Só restava a ele abrir os olhos e encarar o que quer que
fosse. Se Deus quiser, não veria nada além do escuro aconchegante de seu novo
quarto. Abriu os olhos e descobriu o rosto.
Ali, emoldurado pela lua, na janela, um enorme gato
preto, de olhos brilhantes e amarelo o observava. O garoto pensou em correr
para a porta gritando, mas o que viu congelou lhe o sangue.
Em passos mudos, gatos e mais gatos entravam. Felpudos,
sujos, perfumados, com coleira, alaranjados, feridos, de pelo liso ou
arrepiado. Gatos e gatos entravam no quarto e o rodeavam, sentando-se em volta
da cama e olhando nos olhos arregalados do garoto.
Um deles, um pequeno gatinho rajado, tomou a iniciativa e saltou na cama. Foi quando os demais aprumaram-se preparando para saltar que o garoto soltou um grito agudo e apavorado.
CAL - Comissão de Autores Literários
Bruno Olsen
Cristina Ravela
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