Então, o Amor Aconteceu!
de Amanda Kraft
Eu o
vi na porta do elevador do meu prédio, tentando desesperadamente se equilibrar
nas muletas, ao mesmo tempo em que segurava em uma das mãos duas sacolas de
compras e prendia o celular entre o ombro e o rosto. Seria cômico se a perna
não estivesse engessada até a altura do joelho. Conhecia-o de vista nos
esbarrões pela área comum do prédio. Apenas trocávamos um oi encabulado quando
isso acontecia. Era aparente seu desespero em tentar conciliar pernas, mãos,
sacolas, muletas, entrar no elevador e apertar o número do seu andar. Pensei
por alguns instantes e resolvi ajudá-lo. Segurei a porta para ele e entramos. Apertei
o botão do décimo andar antes que seu dedo se aproximasse do número. Sorriu
para mim, curioso, e continuou falando com seu interlocutor. Passei a prestar
atenção na conversa, uma vez que a posição do celular permitia que a voz
feminina bradasse em alto e bom tom.
— Vou
arrumar minhas coisas e vou aí tomar conta de você – insistia a mulher
desconhecida.
— Não
precisa. Eu estou bem. Além do mais você sabe muito bem que não pode sair de
casa. Tá proibido, lembra? Você tem
que se cuidar.
— Você
também. Como vai se virar com uma perna quebrada? E ainda por cima correndo o
risco de pegar essa coisa? Onde você está agora?
— No
elevador.
— Tá usando máscara? Tá com o álcool gel nas mãos? Esses elevadores são um foco de
contaminação. Eu vou aí cuidar de você.
— MÂE!
Não precisa. Eu dou conta! – Disse elevando a voz, enquanto se equilibrava e
olhava constrangido para mim.
— Cadê
aquela sua namorada? Não está aí pra te ajudar? Que raio de mul...
— Mãe!
Ela está aqui comigo. Dá um tempo. Eu tô bem
– disse olhando para mim, enquanto eu tentava não sorrir.
— Deixa eu falar com ela. Põe essa menina
no telefone!
Nossos
olhos se encontraram e sorri abertamente. Ele sabia que eu estava participando
da conversa. Suspirou profundamente e tirou o celular do ouvido, dando de
ombros. Sorriu e disse baixinho:
— Quer
falar com ela?
Eu
adorei a brincadeira e peguei o celular de sua mão.
— Qual
o nome dela? – Perguntei num sussurro.
—
Célia!
— Alô?
– Disse, segurando o riso.
— Ah!
Então você está mesmo aí. Posso contar com você pra tomar conta do MEU filho?
— É
claro!
— Não
deixe de dar os remédios nos horários certos e de alimentá-lo bem para não
prejudicar o estômago do menino. E diz para ele me ligar todos os dias.
Entendeu?
—
Entendi, dona Célia. Pode deixar comigo. Seu filho está em boas mãos.
Ela
desligou, convencida. Em seus olhos havia um misto de diversão e
constrangimento quando tomou o aparelho da minha mão, assim que a porta se
abriu.
— Obrigado.
Você salvou minha vida. Ela é bem capaz de largar meu pai sozinho, atravessar
Araraquara inteira e vir pra cá.
— Isso
só prova que é uma boa mãe. Quer ajuda com as sacolas? – Perguntei solícita.
— Só
se puder te oferecer um café. Você toma?
— É
claro. Mas eu faço.
A
partir daquele momento, nos tornamos amigos. Passamos o resto da tarde a
conversar. Descobri que ele era advogado, que trabalhava como assessor de um
juiz e que havia quebrado a perna numa dividida de bola entre um grupo de
amigos, dias antes de se instaurar a quarentena. Ele realmente tinha uma
namorada. Havia visto os dois entrando e saindo algumas vezes do prédio. Não
queria ser indiscreta ao observá-los à distância, entretanto, toda vez que os
via sentia um frio no estômago e confesso que um pouco de ciúme e até mesmo um
tiquinho de raiva dos dois. Estranho, já que nunca havia conversado com ele e
tinha certeza de que não perderia tempo olhando para mim estando com a beldade do
lado. Não sei se foi obra do destino,
mas ele estava ali, lindo e simpático e eu louca para descobrir porque me
encontrava sentada à sua frente e ela não. Se fosse meu namorado, jamais o
deixaria sozinho naquela situação.
Não
imaginava, nem nos meus sonhos mais românticos, que fosse tão simpático e tão
divertido. Uma covinha se formava perto do canto da boca quando sorria. Nós
mulheres temos um jeito especial de obter respostas quando temos interesse em
algo. Sendo assim, entre uma coisa e outra, descobri que não havia mais
namorada! Com o coração disparado, os olhos foram ao chão para disfarçar a
vontade de sorrir e sonhar. Parece que ela, sendo uma dondoca, filha de um
desembargador, não suportou cuidar de um aleijado. Palavras dela, não minha,
quando o viu de muletas, sentindo dores. Até tentou, pobrezinha, entretanto, a clausura naquele apartamento masculino,
desprovido de qualquer toque feminino, começou a deixá-la apreensiva. O mesmo
se deu com relação à alimentação e medicamentos. Por fim, achou que ele ficaria
melhor sem ela.
Ficou
só, o pobre rapaz, num apartamento todo bagunçado, alimentando-se mal,
trabalhando em home office, sentindo
dor, necessitando de ajuda até para tomar banho, mas acima de tudo, lindo. Muito
Lindo! E charmoso. Senti pena dele. Como estudante de Fisioterapia, que ainda
sou, também sofria com a quarentena mesmo morando com meus pais, entretanto,
minha futura profissão nos aproximou e fortaleceu aquele início de amizade.
Para ele, pelo menos. Vivia me perguntando o que teria que fazer para recuperar
a perna e eu discorria tudo o que sabia sobre os ossos, nervos e tendões.
Passamos a nos encontrar todo o fim de tarde quando o expediente dele acabava e
eu já me encontrava longe das aulas online.
Embora tendo que estudar, fazia-o na madrugada.
Jantávamos
juntos e assistíamos filmes na TV. Passei a livrá-lo da bagunça em que se
encontrava seu apê. Sua mãe ligava
todas as noites e ela sempre pedia para falar comigo. Eu adorava fazer o papel
de nora, mesmo sabendo que aquilo poderia não acontecer. Ele parecia gostar da
minha companhia, mas não passava disso. Ríamos juntos, conversávamos sobre
tudo, jogávamos cartas e eu acabava sempre voltando para a casa sonhando com a
possibilidade de ele deixar de me enxergar como amiga. Pois é. Confundi as
coisas. Sabia que quanto mais perdurasse aquela situação, mais machucada
sairia. Mas quem controla o bendito coração? Sei que me deixei levar e que não
deveria ter deixado isso acontecer. Contudo, presos naquele prédio, sem amigos
para sair e se divertir, sem conhecer pessoas novas... Acabei me apaixonando. E
sofrendo. E me odiando.
Chegou
o dia de tirar o gesso. Fiquei de levá-lo até o pronto atendimento. Minha mãe pôs
mil e um empecilhos:
— Você
é louca! Vai se enfurnar num lugar desses? E se pegar essa doença? Não vai não
senhora. Você nem conhece esse rapaz!
— Mãe!
E a solidariedade onde fica? Eu posso apenas levá-lo. Ele entra sozinho.
— Não
sei não. É perigoso! Ele não pode ir de Uber?
— Mãe.
Ele é meu amigo. Não vai acontecer nada.
— Você
sempre diz isso. E saiba que não estou gostando nada de te ver enfurnada
naquele apartamento a tarde toda. E tem mais. Esse rapaz ainda nem veio falar
comigo e com seu pai.
— MÃE!
Ele é meu amigo. Quantas vezes vou ter que repetir isso?
— Ana,
eu não nasci ontem. Seus olhos mudam quando fala dele. E ele? Sente o mesmo por
você ou está se aproveitando de sua bondade?
Calei-me,
constrangida. Havia verdade em suas palavras. E o que poderia fazer? Dizer a
ele que não iria mais vê-lo? E que motivo lhe daria sem revelar a verdade?
Prometi à minha mãe que não iria entrar no vinte e quatro horas e, chegando em
casa, tomaria um banho, passaria álcool no corpo todo e lavaria as roupas. Deixei-a
resmungando e fui buscá-lo, apreensiva, sentindo-me deprimida. Não iria
simplesmente abandoná-lo naquele momento como a ex havia feito. Sabia que havia
sofrido com o rompimento. Parecia que ele realmente gostava dela. O que piorava
a coisa para meu lado, já que no quesito beleza e glamour eu não chegava aos
seus pés.
Nesse
período em que travamos amizade, ele parecia me conhecer muito bem, pois assim
que abriu a porta, seu sorriso morreu no rosto.
— O
que houve? Está tudo bem com você? – Perguntou preocupado.
— Tudo
bem. Vamos? – Respondi, evitando olhar em seus olhos perscrutadores.
—
Entre um momento.
Sentei-me
no sofá, ainda sem encará-lo, mordendo o lábio inferior, constrangida.
— Não
vai me contar o que provocou esse desconforto em seu rosto?- Perguntou de
chofre.
— Como
sabe que estou desconfortável? – Fiz pilhéria, sorrindo nervosa ao mirar seus
olhos. Senti uma pontada no coração. Era hora de deixar de sonhar e pôr os pés
no chão. Manteria apenas uma amizade superficial com ele. No começo seriam
desculpas sobre a faculdade, depois sobre os pais, até que a coisa fosse
esfriando aos poucos.
— Eu sei
ler as pessoas. Faz parte da minha profissão, lembra? – Disse, pegando em minha
mão fria.
—
Minha mãe não acha prudente levá-lo. Sabe! Toda essa droga de pandemia...
Mirei
seu pé engessado e respirei devagar, brigando com a lágrima teimosa. Como é
difícil dizer adeus! Eu queria deixar aquele lugar e correr para o cantinho confortável
do meu quarto e não sair mais. Ligar para uma amiga e soluçar minhas mágoas.
—
Bom. A especialista aqui é você – disse,
sorrindo - Consegue tirar o gesso? Assim não precisaremos ir. Além do que estou
louco pra tomar um banho de verdade.
— Há
quanto tempo exatamente está com ele? – Perguntei, aliviada com sua atenção
voltada para a perna e não mais para mim.
— Há
exatamente quatro semanas.
— É.
Já está na hora de tirar. E depois começar a fisioterapia.
— Ok,
doutora – disse, sentando-se no sofá, derrubando a muleta no chão – Faça!
— Você
estava brincando, né? É sério! Tem que tirar isso aí, senão pode causar
atrofia.
— Tem
uma faca bem afiada na cozinha. Você sabe onde está. Tira pra mim. Eu confio em
você – disse, deixando-me boquiaberta. Tudo bem que eu já havia feito isso nas
aulas práticas, mas sempre em bonecos – Vai, Ana.
Fui
até a cozinha e voltei com a faca. Minhas mãos tremiam quando coloquei a ponta
afiada no gesso. Cortei devagarinho, sentindo um frio na espinha. Ele estava
calmo e me olhava fixamente. Sorria sempre que meus olhos se encontravam com os
seus. No meio do caminho, já me sentia confiante. A parte mais difícil foi a do
pé, que por fim, ele acabou tomando a faca da minha mão e soltando o que
restava do gesso. Sorriu e me disse:
— Viu?
Não foi tão difícil, doutora.
— Não
sou doutora. E foi difícil sim. Eu poderia ter te cortado.
— Mas
não o fez. Suas mãos são precisas, Ana.
Senti o
calor aquecer meu corpo. Aquilo não estava certo. Como poderia dizer adeus
sentindo o amor explodir dentro do peito? Como deixar de olhar aqueles olhos
castanhos que transmitiam tanta serenidade? Como usar o elevador novamente e me
esquecer de que foi ali que tudo começou? Como voltar a ser aquela menina boba
depois de ter sentido a transformação que ele operou em mim? Meus olhos
marejaram quando o encarei, sabendo que seria a última vez que o veria.
—
Senta aqui, Ana. Diz o que está acontecendo?
— Não
posso! Eu... Preciso ir...
Saí
praticamente correndo do apartamento. Deixei as lágrimas inúteis inundarem meu
rosto. Ele tinha que ser tão gentil? Minha amiga Gabi havia me dito que um cara
gato desses, tendo uma mulher em seu apê,
fazendo tudo por ele, sem nem ao menos tentar roubar um beijo, era muito
estranho. Tinha algo de errado com esse cara. “É gay” Ela disse! “Ele tinha
namorada, lembra?” Respondi amargurada. “Bom... Então...”
Então a
resposta estava diante de meus olhos. Óbvia. Ele definitivamente não sentia
nada por mim, a não ser amizade. O melhor mesmo era eu me afastar. No começo
seria terrível, mas com o tempo eu superaria. O tempo é o melhor remédio, não
é? Seria melhor assim, para mim e para ele. O coitado não tinha culpa de eu ter
me deixado levar. Um coração romântico não deve bater sozinho. Não voltei ao
seu apê naquele dia. Nem no seguinte.
À noite meu celular tocou. Era ele. Respirei várias vezes pensando em não
atender. Ele não tinha culpa de eu ter sido tão tola.
— Ei!
Como você está? – Perguntou com a voz rouca.
— Oi.
Está tudo bem. Olha, desculpa eu ter saído da sua casa daquele jeito.
— Você
pode vir aqui? Acabei de cair no banheiro.
Larguei
o celular no chão e corri para o elevador. Meu coração batia descompassado no
peito, pensando-o caído no chão molhado, com a perna novamente quebrada. Eu
poderia nem ter ido, achando que ele realmente só queria se aproveitar de minha
bondade. Mas isso não me passou pela cabeça. Eu só conseguia pensar em seu bem
estar. Nele!
Abri a
porta do apê e entrei feito um
furacão. Estaquei chocada. Ele estava em pé na sala, com uma camisa preta, que
acentuava a cor dos seus olhos, e uma calça jeans, ao lado da mesa de jantar
posta para duas pessoas.
— O
que é tudo isso? – Perguntei com raiva.
— Achei
que você não viria me ver se eu apenas pedisse – sorriu encantador.
— O
que você pensa que está fazendo? Quase me matou de susto! Eu já tinha imaginado
sua perna quebrada novamente e como iria fazer para levá-lo ao hospital. O
que...
— Ana!
– Silenciou-me incisivamente.
— O
quê? Droga! – Disse, vendo-o se aproximar de mim, com aquele bendito sorriso de
covinhas no rosto.
Não
disse nada ao manter seu rosto perto do meu, perscrutando-me. Sentia as
lágrimas queimando meus olhos. Não ia chorar na frente dele. Não mesmo. Estava
pronta para virar as costas e fugir novamente quando ele disse quase num
sussurro:
— São
verdes – salientou colocando o polegar no meu rosto.
— O
quê? – perguntei franzindo o cenho – O que são verdes?
— O
contorno dos seus olhos. Tem dia em que eles estão totalmente verdes. Sabia
disso? – Perguntou, contornando a maçã do meu rosto com o polegar.
— Não
– sussurrei – quando seu dedo escorregou para meu lábio.
— Você
morde o lábio inferior quando está nervosa. É algo involuntário e encantador,
Ana.
Eu o
encarei, confusa. Como ele sabia tanto sobre mim?
—
Eu...
—
Senti sua falta, Ana. – Ergueu meu rosto com o indicador, enquanto eu engolia
em seco ao ver sua boca se aproximar da minha.
O
beijo veio calmo, feito a brisa num dia quente, para depois se transformar num
furacão de volúpia e desejo. Meu coração estava enlouquecido. Minha cabeça
girava com inúmeras perguntas não respondidas. Foi preciso muita força de
vontade para afastá-lo alguns centímetros.
— Você
nunca disse nada. Nunca demonstrou nada. Fez-me pensar...
— Eu
acreditava que ora ou outra você se cansaria de cuidar de mim. De estar comigo,
presa aqui. Mas você ficou...
— Sim.
E ficarei se você pedir.
O
beijo quente e doce se perdeu no silêncio e então, o amor aconteceu aplacando
toda a dúvida e toda a minha dor.
CAL - Comissão de Autores Literários
Bruno Olsen
Cristina Ravela
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