Cem Graus Celsius ou a Garota da Pole Dance
de Rô Arruda
Quando despertei na penumbra do quarto,
sentia todo o rosto latejando, a adrenalina ainda era alta e eu tremia como se
sentisse frio. No silêncio da noite, só ouvia a minha respiração entrecortada,
olhei procurando por ele, estava inerte e parecia dormir. Tentei me levantar,
mas senti uma dor profunda na costela, então, precisei deitar-me novamente e
encontrar um apoio para me erguer. Passei sobre ele devagar e com cuidado para
que não acordasse. Saí do quarto deixando a porta trancada, já na cozinha,
acendi a luz. O meu rosto continuava a latejar, principalmente, o olho direito,
então, joguei um bocado de água e vi o sangue diluído descer pelo ralo.
Eu queria gritar, chorar, quebrar tudo,
mas meu corpo mal conseguia respirar. Ouvia meu coração aos pulos prestes a
explodir no peito. Eu precisava me controlar, não iria continuar ali depois de
tudo. Como chegamos a esse ponto? Se não fossem a dor e o sangue, talvez eu até
achasse que tudo era um pesadelo. As imagens me vinham em flashes, como o
trailer de um filme a que eu não desejava assistir. Respire, apenas respire.
Tente se acalmar, você precisa se controlar para fazer aquilo que deve ser
feito. Respire. Além da dor, inúmeros sentimentos me invadiam e dilaceravam
minha alma ou o que restava dela. Ódio era o mais recorrente, mágoa, decepção, o
medo, porém, era o mais fácil de superar.
Era tudo tão intenso que eu não conseguia
organizar meus pensamentos, só queria planejar o que precisava fazer e que se
danasse tudo depois. Não importava o que viria a acontecer. Nunca tive muita
coisa mesmo, a vida inteira eu tinha sido uma ferrada. A infância de casa em
casa, da adolescência no abrigo para o trabalho de camareira no programa de
jovem aprendiz de um hotel de luxo, onde consegui continuar como funcionária.
No último ano, ter dois empregos foi o
melhor que me aconteceu até hoje. De dez da manhã às sete: hotel; de dez da
noite às quatro: boate. Assim, pude alugar um apezinho no Centro o que foi bom,
pois não dividia mais quarto com ninguém. Pela primeira vez na vida, tive um
lugar só pra mim. Ali era um mundo só meu. Uma cama, uma mesinha com duas
cadeiras, um sofá, tv, geladeira e fogão. Pendurava minhas roupas numa arara e
jogava os sapatos num canto do quarto. Nenhuma colega dizendo que tomou minha
bolsa emprestada. Nada sumia, porque somente eu entrava ali. Não deveria ter
aceitado o convite de Bruno pra vir morar aqui, nem paixão era, foi só mesmo para
saber como era viver num apartamento bem decorado, num bairro nobre. O conforto
e a beleza me seduziram e agora estou aqui.
Eu precisava de uma panela, mesmo que o
som da água enchendo a vasilha pudesse acordá-lo. Deixe Bruno Accioly continuar
a dormir como um príncipe encantado. Poderia ter sido mesmo, mas, desde o
início, eu vi nele aquele olhar superior e arrogante de quem se acha muito
melhor que os outros. Ainda podia me lembrar da primeira vez que nossos olhares
se cruzaram na boate há uns seis meses. Como sempre, eu estava lá na pole
dancing e percebi o cliente me admirando, o desejo estava em seus olhos, nas
pálpebras quase imóveis e nas pupilas dilatadas. Ele acompanhava cada movimento
e eu sabia que nem precisava de muito esforço para ganhar uma boa gorjeta de um
cara como esse. De fato, quando girei e me pus de ponta a cabeça, suspensa
apenas por uma perna agarrada à barra, vi seu braço esticar-se e com um
movimento rápido lançar a nota de cem, enquanto fitava meus seios. Fixei o
olhar no seu rosto até que os olhos verdes dele encontrassem os meus, foi
quando percebi que havia escondido ali um sentido de desprezo, como se o que eu
fizesse fosse algo vulgar, apesar de excitá-lo. Ele voltou outras noites e a
primeira impressão que tive passou à certeza: ele gostava, mas desprezava. Isso,
porém, não me constrangia, eu já estava acostumada e ele não era o primeiro a
agir assim. Desde que não se aproximasse ou verbalizasse seu preconceito, não
fazia a menor diferença para mim. Afinal, eu trabalhava para arranjar uma grana
e pagar meus pequenos desejos. Tinha que me sustentar, fazer a pole dance
naquele lugar era só mais um meio para me manter.
A panela já estava cheia e eu me sentia um
pouco mais calma, meus pensamentos também começavam a se ordenar, até respirava
melhor apesar do incômodo causado pela dor na costela. Acendi o fogo para
esquentar a água e o calor emanado do fogão parecia atenuar o rosto que
continuava a latejar. Decidi, então, tomar um banho quente enquanto a água
esquentava. No banheiro, olhando-me no espelho pude ver os lábios bem inchados
e o olho direito arroxeado com um corte no supercílio. Pensei novamente em
chorar ou quebrar o espelho, mas agora eu tinha um plano e não queria estragar
tudo. Senti novamente meu coração acelerar junto com a respiração. Calma.
Respire. Tome seu banho. Isso vai ajudar. Tirar a roupa foi quase impossível
por causa das dores, houve, inclusive, um momento em que eu cheguei a gritar e
temi que meu príncipe encantado tivesse acordado. Felizmente, não ouvi barulho
algum, abri o chuveiro e a água parecia agulhas furando meu rosto, mas o calor
aquecia o corpo e os tremores iam diminuindo.
Depois de escolher uma roupa suja no cesto
para não ter de entrar no quarto, penteie os cabelos ainda molhados e o que eu
via no espelho não era nem a sombra da mulher jovem, de corpo atlético com
formas bem definidas e um rosto bonito emoldurado pelos longos cabelos
castanhos. Por isso, tinha ido trabalhar naquela boate ou clube, como alguns
preferiam. Minha beleza. O lugar não era dos piores, nem a clientela, pelo
contrário, o ambiente poderia ser considerado vip, a maioria dos homens iam ali
para curtir com os amigos ou para aliviar a tensão. Quando queriam algo mais,
havia as meninas que estavam lá aguardando a vez. O meu trabalho era só
entreter, hipnotizar pra fazê-los beber e passar o maior tempo possível ali
gastando.
Bruno parecia mais jovem que a média dos
homens que frequentavam o clube, bonito e até atraente, mas a arrogância
travava o sorriso, era uma beleza marmórea. Certa noite, quando saía do clube,
um carro veio em minha direção com os faróis acesos me impedindo de manter os
olhos totalmente abertos, ouvi a porta abrir, os passos já estavam bastante
próximos quando o reconheci. “Vamos beber alguma coisa?” Sua mão já tocava meu
braço me direcionando para o carro. Parei. Senti uma onda fria percorrer meu
corpo. Infelizmente não dá. Tenho compromisso. Outro dia, quem sabe. “Bancando
a difícil?” Repeti o que já tinha dito e acrescentei que ele poderia ter
escolhido qualquer menina, menos as que dançavam, pois, estavam ali só para
entreter. Ele esboçou um esgar de escárnio e se afastou quando outras pessoas
também saíam do clube. Aproveitei para me misturar a elas e ir embora. Passaram-se
algumas semanas sem que ele aparecesse até que no final de novembro ele chegou
muito cedo, sendo um dos primeiros clientes. Eu ainda estava terminando de me
arrumar, quando alguém bateu à porta, embora outras meninas estivessem ali
comigo, ele entrou trazendo em uma das mãos um cartão com um endereço, dia e
hora escritos no verso; na frente, o nome dele Bruno Accioly. “Não me faça
esperar” e saiu.
Apesar de minha razão dizer para ignorar
aquilo e não ir ao encontro, minha curiosidade foi maior. Havia a frieza e a
arrogância que emanavam dele, mas havia também uma aura de mistério que me
despertava a atenção e de certa maneira me excitava. Fui. Cheguei ao local às
oito horas, era um restaurante sóbrio e metido a elegante com algumas pessoas
no salão. Lá fora, o movimento era grande, muita gente se dirigindo para a
estação do metrô próxima dali. Não havia o que temer. Ele não poderia me fazer
mal naquele lugar. Lá estava ele, sentado a um canto, tomando uma bebida
qualquer, me aproximei, ele apenas disse: “Pontual”. Dei um olá tímido e
ficamos em silêncio por um tempo. Até que não aguentei mais e fui bastante
direta: “O que você quer de mim?” Ele me olhou por um instante e de imediato me
arrependi daquela pergunta. “Você sabe o que quero, Silvana”. Ouvir meu nome
ser enunciado por ele fez meu sangue gelar nas veias, pois nunca havíamos nos
apresentado. Eu sabia o nome dele por causa do cartão, mas nem imaginava que
ele soubesse o meu! É certo que bastava ele ter perguntado no clube e
provavelmente o fez. Não sei explicar, senti-me inquieta como se ele tivesse
descoberto um grande segredo meu. “Já expliquei que meu trabalho é apenas
dançar.” Então, ele exibiu um sorriso debochado que anulava a sinceridade de
suas palavras: “Claro! É por isso que te convidei para sair. Digamos que eu
esteja te cortejando. Você entende, é outro tipo de tratamento. Vamos nos
conhecer um pouco e ver no que dá.”
Tentei relaxar, mas a frieza em suas
palavras e a forma como tudo soava banal me assustavam. Mesmo assim, continuei
ali e fui me deixando hipnotizar pelo verde dos seus olhos. Em certo momento
ele se sentou ao meu lado e esticou o braço sobre o espaldar da cadeira,
inevitavelmente, a manga da camisa roçava minhas costas nuas. No início me
incomodei um pouco, mas, à medida que a conversa avançava vencendo os
silêncios, fui me deixando ficar e encontrei, bem lá no fundo, um calor sutil
que atravessava o tecido da camisa aquecendo minha pele. Dali saímos e fomos a
um motel, o sexo não foi assim tão excitante, mas também não deixou a desejar. Encontramo-nos
por mais algumas semanas até que ele me levou a seu apartamento, era bem
decorado, com cores que iam do azul ao preto, passando pelo cinza. Era algo bem
masculino. Ele era administrador de uma empresa pública, pelo jeito tinha um
bom salário e podia manter um apartamento daqueles na zona nobre da cidade.
O fato é que, em poucos dias, ele quis que
eu levasse minhas roupas para lá, assim nos veríamos todos os dias no período
em que ele chegava do trabalho até a hora em que eu saía para o clube. Aceitei
e me mudei. Sentia-me lisonjeada por estar com um cara bem-sucedido e que
nutria um forte desejo por mim. Sim, essa altura, o desejo era bem maior que a
arrogância e o desprezo por mulheres que se sustentavam com um trabalho como o
meu. De minha parte, eu não o temia mais e me deixava levar pela boa situação
em que me encontrava. Continuava trabalhando, embora ele insistisse para que eu
largasse a pole dance, na verdade, eu ia enrolando, tentando ganhar tempo,
enquanto ele repetia: “É que eu sou possessivo, não gosto de imaginar você
dançando para outros caras”.
Então, veio a quarentena, nós dois ficamos
em casa, não tínhamos hora pra nada. Dia ou noite, tanto fazia, no início
aproveitei para descansar, ter dois empregos era desgastante. Ele parecia
satisfeito em me ter ali, seus olhos estavam em mim o tempo inteiro, onde quer
que eu estivesse, ele também estava. O que eu fizesse, ele também fazia só para
ficar perto. Às vezes, eu me sentia meio cercada, como um animal prestes a ser
devorado; outras, me sentia como um objeto valioso sendo vigiado. Mesmo assim,
eu tentava me convencer que eram os efeitos da quarentena e procurava não dar
crédito a esses sentimentos. Para escapar dessa rotina, decidi ir ao meu
apartamento para ver como estavam as coisas e ele, é claro, quis ir comigo. Lembro
que fiquei contrariada e deixei claro que preferia ir sozinha; subitamente, ele
mudou, começou a gritar. “Vadia! Você quer se encontrar com alguém.” A palavra
gritada por ele derramou todo o desprezo represado pelo desejo. “Vadia”. Eu
negava e, quanto mais eu falava, mais transtornado ele ficava.
Comecei a sentir novamente o sangue gelar
como quando o conheci. De pronto, toda aquela sensação de estar correndo perigo
invadiu meu corpo. Peguei minha bolsa e me dirigi para a porta, ele segurou meu
braço, torcendo-o e me arrastou até o quarto. Abriu a porta e me jogou na cama,
dizendo que eu não sairia dali. Desde o início, eu soube que ele me faria mal,
eu vi em seus olhos que ele não hesitaria em me aniquilar, caso eu deixasse de
ser seu objeto exclusivo. Como um escravo dos próprios caprichos, ele não
titubearia em destruir algo que não pudesse mais lhe pertencer. Levantei-me
nervosa e também gritando, avancei para porta, mas ele, não só impediu, como me
deu safanão, caí no chão, mas me levantei. Precisava me livrar dele, precisava
reagir, concentrar a força obtida no pole dance para escapar daquele cara
descontrolado e agressivo. Puta da vida, consegui acertar um chute na sua
canela, ele me xingou novamente e me socou o olho. Caí mais uma vez e ele
aproveitou para me acertar mais um golpe, agora, em minha boca. Senti o gosto
do sangue descer pela garganta, livrei-me dele e corri na direção da porta para
pegar um cabideiro e acertá-lo, mas ele pensou que eu ia sair e deu um salto
nessa direção, nesse momento, ele tropeçou e bateu a cabeça na porta. Caiu.
Rapidamente, ergui o cabideiro, mas ele agarrou minha perna, tombei e ele chutou
fortemente a minha costela. Quase desmaiei ao sentir o ar deixar meus pulmões. Quando
pude respirar, vi que ele segurava a cabeça com as mãos, mais uma vez peguei o
cabideiro. Levantei-me e, dessa vez, não errei, ele caiu batendo de novo a
cabeça na quina do criado mudo. Desmaiou. Eu me deixei cair, atordoada. Como
tudo aconteceu tão rápido! A única certeza que eu tinha era que eu estava
certa: ele era uma ameaça.
Finalmente, a água estava fervendo,
apaguei o fogo, fui até o quarto, destranquei a porta, ele continuava largado
no chão. Minha bolsa estava jogada do outro lado, entrei para apanhá-la com
cuidado para que ele não despertasse. Retornei à cozinha para pegar a panela
com a água fervente. Esse filho da puta ia pagar caro por essa agressão. Ter me
machucado desse jeito era como roubar a minha riqueza: um rosto bonito e um
corpo desejável, as únicas garantias que eu tinha para me sustentar. Entrei no
quarto pela última vez com o calor da panela me obrigando a concluir logo o meu
plano, então, despejei o líquido borbulhante sobre o peito e fui descendo em
direção às pernas. Seus olhos se abriram e vi quando ele percebeu sua pele
queimando; gritou com a dor. Acendi a luz e deixei que ele me visse. Ele
urrava. Talvez me desse mal por isso, mas não me importei. Larguei a panela,
peguei minha bolsa e saí, fechando a porta atrás de mim.
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
REALIZAÇÃO
Copyright © 2021 - WebTV
www.redewtv.com
Comentários:
0 comentários: