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Sinopse: Norma sai de casa para mais um dia de trabalho, quando descobre que os mortos caem como a chuva.


LAMRON
de Luma Rodrigues


Naquele dia igual aos outros, Norma levantou pela manhã e requentou um café do dia anterior. Acordou pensando na quantidade de serviço acumulado no escritório. O primeiro jornal matinal na TV já anunciava trânsito intenso na avenida por onde seu ônibus passava todos os dias. Tomou o café olhando pela janela, e acende um cigarro imaginando seu Ernesto, seu chefe, dentro do ônibus lotado que ela pegaria em 20 minutos. Com sua roupa social, Norma desce as escadas do prédio, e caminha até o ponto de ônibus. Espera o sinal fechar e atravessa a rua. Norma cai no chão e dá um grito. Pede socorro e as pessoas dentro dos carros saem para ver o que aconteceu. Norma limpa os respingos de sangue em seu rosto. Uma mulher caiu do alto e seu corpo se espatifou na faixa de pedestres, um passo à frente de Norma. Não havia prédios por perto para considerar suicídio. Era como se o corpo tivesse se lançado do céu. Norma não conseguiu evitar olhar para o rosto esmagado e as fraturas expostas dos ossos pela pressão da queda, e soube ali que não esqueceria aquela imagem. Os celulares apontam como armas para a cena escatológica e improvável. Alguém liga para a ambulância, mas os socorristas estão com muita demanda e afirmam que a próxima unidade deve levar cerca de duas horas para chegar ao local. Outro diz que não adianta socorrer, que a mulher já está mais que morta, e então liga para a polícia, para que se faça a identificação do corpo. Alguns carros seguem adiante, não sem janelas abertas e celulares a postos para filmar o cadáver na avenida. Norma retira dos pés o sapato social e senta-se no meio-fio da calçada enquanto chora e é acalmada por uma mulher desconhecida. “Meu Deus, eu tô toda suja de sangue”, repete Norma, enquanto limpa suas roupas com as mãos trêmulas. Norma telefona para seu Ernesto, dizendo que aconteceu um acidente na estrada, e que vai se atrasar para o trabalho, mas que pode repor as horas perdidas no dia seguinte. Antes de a polícia chegar, um carro do principal canal de imprensa estaciona no local. Os fotógrafos e cinegrafistas captam todos os ângulos que posteriormente serão borrados na edição de imagens para não chocar tanto a audiência televisiva. O repórter segurando um microfone pergunta às testemunhas de onde o corpo caiu, do céu, as testemunhas respondem. Se foi suicídio, se a mulher pulou de alguma janela, se foi empurrada de algum lugar, o repórter insiste, mas as testemunhas insistem também que a mulher simplesmente caiu como chuva. E talvez a parte mais intrigante do fenômeno fosse o menos percebido, o fato de que a mulher estava vestida com trajes típicos de empregada doméstica.
 

Norma passou em casa para trocar de roupas e ir ao trabalho, mas não conseguiu se concentrar bem em suas tarefas do escritório naquele dia. De vez em quando rolavam lágrimas imperceptíveis de seu rosto, que secava rapidamente antes que seu Ernesto pudesse notar. Ao pegar o ônibus de volta para casa, assistindo o jornal da noite em seu aparelho móvel, Norma soube que um caso semelhante havia acontecido em um bairro vizinho ao seu no mesmo dia. Um homem espatifou-se ao chão, como se expelido das entranhas do céu. Os familiares dos mortos relataram na TV que eles nunca tiveram pensamentos ou comportamentos suicidas. Naquela noite, choveu durante toda a madrugada, e Norma não dormiu. Esgotou um maço de cigarro durante aquela madrugada. Só conseguia rever em sua mente a imagem daquela mulher fraturada, com rosto desfigurado, e esperava que a chuva forte lavasse seu sangue daquela rua, para que nenhum carro passasse sobre seus restos. 

No dia seguinte, o sol amanheceu forte, como se tivesse a intenção de iluminar a cidade após um dia maldito. Norma fez um trajeto diferente para pegar seu ônibus para o trabalho em outro ponto, e, ao passar por uma banca de jornal, lê a manchete anunciando Dez mortos pela cidade em que chove gente. Falavam em punição divina, em fim dos tempos, em juízo final. Mas a verdade era que ninguém sabia explicar porque caiam cadáveres nas ruas. 

Fazia um mês que Norma dormia menos de quatro horas por noite, temendo o desconhecido. Seu Ernesto não acreditava nessa história, dizia que isso era armação da mídia para fazer as pessoas ficarem com medo de sair de casa. Essa história toda não tinha a menor lógica, e já que ele nunca viu aquilo acontecer, não tinha porque acreditar. Norma agora passava mais tempo no escritório do que em casa, para ficar o mais longe possível das notícias. Seu Ernesto não acredita porque não foi na cara dele que aquele sangue espirrou, ela pensou. Ao final daquele mês, já se contavam 380 mortos que caíam em pedaços sem explicação. Quando Norma não estava no escritório, estava em casa dormindo, após doses generosas de opioides. As notícias sobre mortos que se espatifam pela cidade, com o tempo, pararam de impressioná-la. Tentava focar sua atenção no seu trabalho, única fonte de renda após 2 anos desempregada, nas suas palavras cruzadas, nas suas novelas, em seu jogos de Paciência, e em preparar sua marmita para o dia seguinte. Não saia mais de casa se não fosse estritamente necessário, para evitar ser pega de surpresa por mais um cadáver a se desmontar na sua frente, o que não a poupou de ver a cena pela janela, de um corpo em queda livre, ao que Norma reagiu apenas fechando a janela e acendendo um cigarro. A cidade chegou a um ponto em que os mortos se acumulavam nas ruas. Os cemitérios e centros legistas colapsaram, devido à falta de covas e gavetas. A polícia já não conseguia identificar os corpos com tanta rapidez, uma vez que, muitas vezes durante as quedas, algumas partes dos corpos se separavam, e ficava difícil reconhecer de quem era esse braço ou aquela perna. Os garis passaram a ajudar os bombeiros na retirada dos corpos da passagem urbana, pois a mão-de-obra tornava-se escassa devido à demanda. O cheiro das ruas mudou devido à putrefação da carne humana no asfalto quente. O trânsito, no entanto, permanecia o mesmo. Alguns motoristas já não desviavam mais, só paravam se algum osso furasse o pneu. 

Passados seis meses, Norma levanta pela manhã e requenta um café do dia anterior. Acordou pensando na quantidade de serviço acumulado no escritório. O primeiro jornal matinal na TV já anunciava trânsito intenso na avenida por onde seu ônibus passava todos os dias. Tomou o café olhando alguns mortos caindo pela janela, e acende um cigarro imaginando seu Ernesto caindo também. Com sua roupa social, Norma desce as escadas do prédio, e caminha até o ponto de ônibus. Espera o sinal fechar e atravessa a rua, chutando para os lados os corpos que atrapalhavam seu caminho.


Conto escrito por
Luma Rodrigues

CAL - Comissão de Autores Literários
Agnes Izumi Nagashima
Eliane Rodrigues
Márcio André Silva Garcia
Ney Doyle
Pedro Panhoca da Silva
Rossidê Rodrigues Machado

Produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


REALIZAÇÃO



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