O Retrato
de Raquel Catunda
Sendo os dias tão quentes, as chuvas tão intensas e os riscos de invasão tão iminentes, a jovem não se permitia paz enquanto não encarasse o retrato posto na parede da sala. Na pintura, o rapaz sorria para o pintor com a mesma naturalidade com que sorria para ela em seus mais memoráveis encontros calorosos. Enquanto companheiro, ele não perdera a flama do sorriso, às vezes malicioso, outras tantas infantil. No retrato, exibia altivo aquele mesmo encanto, enquanto ela quase não se reconhecia. Muitas vezes, ela prendia tão fixamente o olhar no rosto do amado estampado na pintura, que tudo ao redor se perdia em escuridão, na inércia, encontrava sua paz. Impermanente. Tornava a se indignar, pois percebia em sua imagem jovem e bela apenas a fragilidade e a estupidez da mocidade. Por que perdera naquele dia tantas horas a olhar para o verso de uma tela vazia, quando tinha ainda tanto a desvendar em cada gesto de seu amado? Repreendia a sua vaidade de outrora, intentava reprimir da memória cada falha, mas o Retrato tomava seu protagonismo a cada cerrar de olhos, evidenciando a mais dolorosa falta.
Um retrato! Fora o seu pedido. Ignorou no instante euforizado pela presença do amigo pintor, que os momentos subsequentes traduziriam seu tenro afeto em angústia e ansiedade. Caprichosa, queria a pintura ali, enfeitando o mesmo local onde fora concebida, onde décadas atrás, quando ainda fazia sentido ter o retrato dos senhores da casa no centro da sala principal, se encontrava um outro, similar àquele, com a imagem de seus bisavôs, com aquelas mesmas vestes e postura.
Na temporada que se escondeu no sítio, o fugitivo casal
devorava-se a todo instante. Poucos segundos na presença um do outro e logo se
tornavam uma só massa energética, frenética, em constantes e consonantes
movimentos materiais e astrais. Se a sinergia encontrava seu ápice, explodia e
logo tornava a se reerguer. Viviam todos os dias como se fosse o último. No
primeiro ano, era difícil comer, dormir, ler e até pensar, tinham medo pela
própria segurança e pela de seus companheiros, até que quase perderam a mente
para o isolamento... No meio do segundo ano de refúgio, aprenderam a manipular
o entendimento da realidade ao ponto de se deixarem levar naturalmente pelas
mais avassaladoras motivações epicuristas. Sempre que podiam, compravam um
vinho barato e o apreciavam junto a uma improvisada macarronada a’la italiana, enquanto
atuavam em seus fetiches romanescos, idealizando um estilo de vida pós Regime.
Às vezes loucos, às vezes se amando lucidamente, iam vivendo.
Quando findava o segundo ano, eles já não se preocupavam mais em obter notícias da capital, reviviam o casal original, perdidos num mundo que era só deles. As raras crises de lucidez os embevecia de desalento, mas tinham o outro ali, pronto para repassar os mínimos detalhes rota da fuga e conduzir a percepção de volta a um lugar seguro. Sem notar, viviam em um ostracismo divinal. Foi assim até a visita do amigo pintor...
Meu intento não é alentar as desilusões de vocês com uma breve história crônica de
amor, tampouco meu intento é rememorar os infortúnios de uma geração. Queria lhes
falar do Retrato e da jovem, talvez viúva, sentada numa sala vazia. Realidade
essa, para nosso alento, ficcional, é também a face múltipla e documental de
tantos outros sentimentos, que tornam a assombrar nossas lembranças uma época
ou outra da vida, como o despertar aflito de quem não se enxerga no retrato, de
quem nota a falta, de quem perde um pedaço que se partiu.
Ela se mantém inerte, cai no chão e ergue os olhos em direção ao retrato, resistindo à natureza mutável da vida. Encontra o sorriso do amado ausente, o retribui... Os dias tão quentes... “Podem estragar a pintura!”, as chuvas tão intensas... “Se a umidade borrar a pintura?”. Não se aquietava em eleger o ponto da casa mais adequado para guardar o sagrado objeto. “O que fazer se a casa for encontrada?”... Os riscos de saque eram iminentes. “E se eles foram descobertos?”... Virão nos buscar! Entrarão pela minha casa e estragarão a pintura!
Dias,
semanas, meses, milênios, infindas horas, por aqui e por acolá com o quadro seguro
entre os braços. Sem medida de tempo, desconfiava da barriga que ainda não
aparecera, como ele
havia prometido. Tampouco se findava de uma vez suas esperanças, visto que
também suas regras não desciam. “Será que o bebê morreu dentro de mim?”. “Como
ele pôde me deixar, sozinha?”. Num átimo de insânia, embevecida de frágeis
esperanças, intuiu que seu amado não mais retornaria, foi quando o sangue que
escorria por entre
suas pernas anunciou o mau presságio: Estava só!
Permitiu-se louca. Riu, chorou, estapeou-se. Espatifou
contra a parede tudo o que era quebrável, quando, enfim, seu impulso pôs em
risco o dito o Retrato... Fraquejou. O mundo girava, ela não, escolhera
permanecer na espera. Sendo os dias tão quentes, as chuvas tão intensas e os
riscos de invasão tão iminentes, a jovem viúva todos os dias corria para a
mata; cavucava um buraco raso junto a eleita árvore mais vistosa; embalava o
quadro em um lençol grosso e o enterrava, para seu próprio bem. Completamente sozinha, ela voltava para casa
e mirava a parede vazia, o dia inteiro, até o último raiar do sol, quando já
era hora de desenterrar o tal Retrato. O apreciava durante toda a madrugada, e,
na aurora do outro dia, tornava a enterrá-lo. Habituou-se à rotina. Fazia-o,
pois o sol poderia derreter e danificar a pintura, a umidade certamente iria
borrar e estragar a pintura... E se viessem prendê-la? “O quadro não!”. O
abraçava, beijava, cheirava. Olhos nos olhos, como antigamente. Ela e ele,
sorrindo sem mais, como antes...
As madrugadas na companhia do Retrato eram sempre regadas a
lirismos e delírios deliciosos. Durante o dia, a fadiga e a ansiedade competiam
por seu majoritário domínio. Dias e mais dias, tinha como companhia a certeza
de que o Retrato se mantinha intacto em contraponto à profusão dos sentimentos
que já foram seus a cada cerrar de olhos. Ela merecia mais, era mais forte e
decidida que a tola da imagem, que ainda o tinha ao lado. Invejava o passado
com a certeira intensidade de quem tem como alvo outra versão de si. Era assombrada
pela própria desesperança, revivendo fantasiosos instantes de inéditas
lembranças enquanto durava o dia, até que a madrugada trazia de volta com a chegada do Retrato a paz,
que reclamava permanência.
Assim, nos primeiros raios de sol, a fim de certificar a segurança do Retrato e manter a própria sanidade, a determinada senhora é resoluta: enterra-se com ele.
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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