Os Olhos da Mãe
de Gabriel Themotheo
Era
o mais novo dos três filhos. Franzino, quase raquítico, ria quando lhe contavam
as costelas. Saltava com dificuldade por entre as largas pedras que margeavam o
rio seco, pescando piaba, catando manga, caju, banana. Sempre com a cachorra
Flora entre as pernas, acompanhando seus passos, como unha e carne. Mal sabia
se atrepar nos altos pés-de-pau daquele imenso terreiro, a se perder de vista.
Seu mundo. Um mundo sem fim.
O pai era ainda mais magro do que os
filhos. Velho canoeiro, batalhando para manter o sustento da casa, pagava com o
próprio sangue os mirrados peixes que trazia do rio, por isso cada uma de suas
crias tinha também que trabalhar e botar comida na mesa. De olhos fundos, pele
carcomida pelo sol e pelo tempo, quase um farrapo. O serviço sugou-lhe a vida
como um sanguessuga ou uma centena de lombrigas. Fedia.
À noite, depois da janta,
sentavam-se ao redor de uma fogueira, para espantar as muriçocas e contar
histórias do tempo de quando o velho era menino. Ele enrolava um cigarro de
palha e reunia os três. A cachorra, obediente, deitava-se junto à roda. O mundo
lá fora era um breu infinito.
O filho mais moço tinha medo. A
imensidão da noite lhe trazia pesadelos. E olhar a boca do pai, quase toda
banguela e escura de mascar fumo quando sorria, embriagado de aguardente, era
como sentir na nuca o sopro frio da morte, ainda mais com o corpo decomposto da
mãe morta enterrado ali a poucos metros, na sombra do jambeiro.
Perderam a genitora para um mal
desconhecido. Tão rápido ela adoeceu, logo foi a óbito. Um passamento
arrebatador, corrosivo. O pequeno era o mais apegado dentre os três. O filho
mimado, o dengo precioso da mãe, o dia inteiro encangado, curiando seus
afazeres. Com um dia de falecimento, o corpo já estava em avançado estado de
putrefação. Os irmãos mais velhos tentaram a todo custo evitar que o caçula
visse a situação da mãe, mas ele era esguio. E antes da última pá de terra
sobre o rosto, olhou nos olhos da morte pela primeira vez. E nunca mais
esqueceu.
Em volta da fogueira, a lenda preferida
dos irmãos mais velhos era a do demônio que mora no grotão do rio, lá no alto,
que se esconde, sorrateiro, num buraco de pedra. “No alto dum pedregulho, entre
os arbustos da Jurema, tem uma ribanceira banhada pela nascente do rio, e lá a
água é escura e densa que nem sangue pisado e a neblina cheira a enxofre.
Escondido, na gruta que mora por trás de um filete de queda d’água, dois olhos
cor de vinho. Espreitando. Quem se banhar naquelas águas olhará nos olhos do
demo e verá a sua verdadeira face. A voz do coiso sussurrando nos ouvidos de
dentro da alma.
Reza a lenda que uma criança foi
brincar pras bandas de lá. Sozinha, querendo ser valente, se meteu onde não
devia. Na hora da janta, o menino não voltou. O pai, desesperado, foi atrás do
filho. Quando o encontrou, no meio das brenhas, espantou-se. Estava escondido,
como se se escondesse do pai, atrás dum tronco de árvore. Brincando de
esconde-esconde. Sorria riso frouxo, sem motivo, de orelha a orelha, saldando
Satã. E, no lugar dos olhos, dois buracos vazios, cheios de tapurus”.
O pai contava que o tio de um velho
amigo foi até lá, tremendo de medo, tirar a limpo aquela estranha lenda, para
ver se aliviava o terror e acalmava os filhos, mas não encontrou nada.
“História pra boi dormir”, resmungava o mais velho, que, apesar de gostar de
ouvi-las, não tinha medo de nada. Com a maior responsabilidade nas costas entre
os três, só tinha olhos para a pesca e o plantio. O do meio se divertia. Não
tinha medo do diabo. Pelo contrário, queria encontrar no riacho os olhos
vermelho-brilhantes entre os galhos da Jurema, só por diversão. O único a ter
medo era o mais novo. A imagem do Demo permeava os seus sonhos e, no meio da
madrugada, acordava em desespero, imaginando o horror de estar naquele grotão
escuro. Enquanto a história era contada, tremia que nem vara verde, para a
alegria e a gargalhada de zombaria dos mais velhos. O canoeiro pegava o pequeno
no colo e mangava do choramingo, despejando o bafo de álcool e fumo no cangote
filho, que logo imaginava se era assim o cheiro de enxofre, se eram aqueles os
olhos do Demo.
A noite caía tarde, as bocas
bocejavam e o mais velho pegava o pai nos braços, desmaiado de aguardente, e o
levava para a sua rede. Apagavam a fogueira e entravam. A cabaninha, no meio do
nada, no mais completo breu e silêncio. Só os grilos e o barulho do vento
raspando suavemente a existência da noite. O novelo do tempo. Como quem
acalenta. E o mais novo lá, no sereno, no breu, tentando encarar o medo, com
medo de ter medo, com medo de ser menos homem por não ser duro igual ao seus.
Sozinho. Ele e Flora.
O tempo passava como brincadeira.
Alguns anos mais se seguiram e os quatro continuaram erguendo o sustento da
casa, aprendendo o cultivo do alimento, o manejo da terra, a criação dos
bichos. Continuaram contando histórias. Como o vento, deixando o rastro dos
seus dias. Entretanto, o mais novo não mais queria viver a vida que vivia.
Desde que a mãe morrera, só pensava em partir. Sonhava com o horizonte, a
distância, as viagens. Conhecer mundos que nem mesmo conseguia imaginar, outras
pessoas, outras vozes. Respirar um outro ar, sonhar um outro sonho. Mas repetia
os mesmos dias, em um ciclo infinito.
Foi quando um inverno rigoroso
desabou sobre a região. Choveu um mês inteiro, sem trégua. De início, a cheia
do rio foi vista com alegria imensa. Era promessa de pesca e colheita fartas,
de mesa cheia, de mata verde. Mas o sentimento se afogou logo com o passar dos
primeiros dias. O toró caía com força, com raiva. Coisa do Demo. A chuva
chicoteava as costas do canoeiro, que pouco pescava em águas tão remexidas e
agitadas e sua canoa era levada rapidamente pela forte correnteza.
Compartilhando do mesmo revés, as plantações, encharcadas, morreram todas. Os
bichos, diante de tanto trovão e relâmpago rasgando o céu, fugiram em disparada, para nunca mais. O vento, de tão forte,
arrancava fora as telhas e derrubava as árvores menores. Castigo.
Em uma manhã de tempo fechado,
escura como noite sem lua, o mais novo acordou com os gritos dos outros. O rio
parecia estar dentro de casa: a água corria como uma correnteza por entre os
móveis de madeira encharcados. Todos tentavam retirar aquele mar doce, com
baldes, para salvar a morada, resguardando o que não foi estragado ou levado
pela enchente, correndo de um lado para o outro, aos gritos, salvando as
últimas cabeças de gado.
“Pai, olha lá!”, gritou o filho do
meio, incrédulo. E o espanto dos quatro não poderia ser maior, pois nunca se
viu coisa igual. Nunca se ouviu falar de algo assim. Entre um relâmpago e
outro, tudo se via. Do lado de fora da casa, através da porta arreganhada,
quase sendo arrancada pela tempestade, o rio. A força do vento, de tão intensa
e arrebatadora, havia invertido a correnteza. Ao invés do fluxo carregar as
águas para a desembocadura, subia morro acima. Forte, pungente, rumo à
nascente, como se aquele fosse o seu destino natural, de tão natural que se
fazia. Os troncos e galhos das árvores entortavam para a esquerda, junto ao
vento, seguindo a direção invertida do rio. Parecia magia. Parecia maldição.
“É o Demo, é o Demo, é o Demo”,
repetia o mais moço, como um mantra de horror, na própria cabeça. Acordara de
um sonho ruim para entrar em outro. O pesadelo tomando conta das camadas da
realidade. Sufocando o real. A mata inteira apontava para uma mesma direção.
Para aquele lugar. E então, sem perceber de forma racional, mas sentindo,
dentro do peito, dentro da alma, entendeu que o medo arrebatador que sentia da
antiga história do pai era, ao mesmo tempo, uma repulsa e uma vontade. Como se
a curiosidade de ver o que jazia por detrás dos pedregulhos e dos galhos da
Jurema fosse insuportável, mas que só cessaria de sofrer quando fosse vista.
Com os próprios olhos. Diante de si. “É o Demo, é o Demo, é o Demo”, insistia.
“É a malícia dele brotando em mim esse sentimento. Ele chama sem ter voz, ele
guia sem ter mãos. Mas eu não vou!”.
E enquanto repetia
para si mesmo aqueles dizeres, entre um clarão e outro, viu a cachorra Flora,
na beira do rio, quase sendo arrastada pelo vendaval, num latido sem fim. Ao
léu. Latia para o breu, na direção do vento, rumo à ribanceira. Sem que se
visse, sem que os outros percebessem, correu atrás da cachorra, que fugia e
latia, de dor e de medo, em direção à nascente, morro acima. “Quieta,
Flora, quieta!”, gritava enquanto corria para salvar a bichinha, tentando
fazê-la parar, mas ela sequer virava o rosto.
Subiram em disparada. Não sabiam nem
se havia como parar. O vento, de tão forte, era como mãos sobre os ombros,
empurrando as duas criaturinhas como empurrava as águas do rio. Flora uivava e
latia. O mais novo chorava. Por mais que tentasse resistir, sabia para onde
estava indo. Sabia por que Flora corria. Era o cão atentando. Dando força para
os pés. Botando ar nos pulmões. Carregando a vontade na palma da mão.
Ninguém fazia ideia de quantas horas
haviam se passado. O tempo escuro, sem sol, impedia de contar os instantes. O
menino e a cachorra apenas seguiam o rumo, saltando de largas pedras,
escorregadias de lodo, se esgueirando entre espinhos de mandacarus. E quanto
mais corriam, mais denso ficava o ar, mais fechada ficava a mata.
Até o instante em que, diante dos
olhos aterrorizados, de súbito, surgiu o grotão. Parado, imenso, reverso. O
menino gritou. Entre os galhos da Jurema, entre os altos e grossos pedregulhos
e cascatas de água invertida, a nascente do rio, o magro rio, como eram magros
todos os homens daquela família, mas que, naquele dia, era imenso e belo, de
uma beleza ignota e perversa, mas belo ainda assim. Um lago escuro que nem
piche, tão denso que a água parecia grossa. A cachorra Flora a olhar para ele.
Não corria nem latia. Deitou-se sobre as patas e recostou a cabeça no chão,
como se concluísse o seu intento. Como se fosse cúmplice.
E, no meio do lago, erguendo-se como
uma entidade, clara como o dia, uma sombra se fazia carne. O substrato da
nascente. De longos cabelos negros e longo vestido branco, diante do filho, a
figura majestosa de sua mãe. Sim. Sua mãe. Caminhando sobre as águas, como
Cristo. Como uma Iemanjá imensa, emanando uma fonte de luz intensa e quente, de
braços abertos. Cantando, mansa, uma antiga canção, passada de geração em
geração pela família. O acalanto de berço, o ninar do sono, que o menino
lembrava tão bem. A mata densa e o tempo escuro ofuscavam qualquer luz, mas ela
reluzia como se o luar de prata estivesse a um palmo do chão. Não havia lugar
para a razão. Cada respiração era a explosão de um sentimento. E sentiu tão
profundo carinho e sossego que se encangou em seu colo. “Meu rebento”, ecoava,
rebentando o firmamento. Os braços enormes, com longas mangas, brancas e
rendadas, enrolavam o filho. Fortes como vinhas, cheias de espinhos. Lentamente a voz terna foi se calando. O
brilho se desfazendo em sombra. O abraço não mais afagava. Olhou para cima,
para o rosto da mãe e, no lugar da sua cabeça, a cabeça da cachorra Flora, de
um cão enorme, de bocarra arreganhada, quase banguela. Fedia. Não sabia se era
enxofre, pois nunca havia cheirado enxofre antes, mas lembrou-se do velho pai,
da cachaça e do fumo. Não emanavam som algum, nem ele nem a entidade. Apenas
respiravam, abraçados e em silêncio. Entranhados, vinhas e arbustos,
floresciam. A flor da Jurema desabrochando, branca. Não mais resistia. Num
último ato de amor, entregou-se. Recolheu o rosto ao peito em decomposição, sentindo
o som dos vermes rastejando por entre o resto de carne apodrecida. Não relutou
aos espinhos. Flutuou sobre as águas. Pairou no tempo. E, no negrume do
meio-dia, apagou-se. Fez-se o breu. E os olhos vermelhos da mãe, imensos,
maiores do que tudo, queimando sua testa.
Quando acordou, a tempestade havia
passado. A correnteza seguia o seu fluxo natural, descendo a ribanceira, rumo à
foz. Os passarinhos, alegres com a melhora do tempo, piavam em conjunto. O pai
e os irmãos estavam ao seu redor, chorando de alegria, ao ver que ele estava
vivo. A cachorra Flora lambia o menino em êxtase. Abraçaram-se, os quatro, atrás deles, o grotão, parado, sereno e imenso.
A água, ao invés de escura, era das
mais cristalinas. Não havia nem sinal da imagem da mãe. Com o despertar, aquela
silhueta foi se desmanchando, e o acalanto dos irmãos apagavam, lentamente, o
medo que sentira. O pai, com o filho no colo, chorava, mas o menino não sabia
dizer se de dor ou alegria, olhava-o
incrédulo, algo
estava diferente. Foi a última vez que o velho
canoeiro olhou o filho nos olhos.
Muito tempo se passou desde aquele
dia. A região voltou a ser seca e improdutiva, de sustento escasso. O filho
mais moço era evitado pelo pai, ano após ano. Talvez aquele dia tivesse levado
alguma coisa embora. Talvez o pai não mais o amasse. Não entendia. Aonde fosse,
o velho se afastava. Não mais brincava. Não mais ria. Não mais sentavam juntos
em volta da fogueira. O conto do Demo virou tabu. Com o tempo, pareceu que
nunca acontecera, as memórias se desmanchavam,
etéreas.
Os anos levaram o pai e a cachorra
Flora, que foram enterrados ao lado da mãe, nas margens do rio. O mais velho
manteve o serviço do pai, tornando-se um respeitado pescador da região. O do
meio casou e abriu um comércio, junto à esposa, negociando com as cidadezinhas
da vizinhança o pouco que colhiam. Apenas o mais novo foi embora. Decidiu por
tentar a vida em outras terras, adquirindo estudo, conhecimento e trabalho na
cidade grande. Sozinho.
Entretanto, aqueles tempos nunca
saíram dele. Por mais que os anos passassem, jamais esqueceu daquele dia. Não
se casou. Não teve filhos. Viveu uma vida solitária, como se não se encaixasse
de verdade em qualquer coisa. Um dia, enquanto caminhava pelas ruas do centro,
debaixo de uma forte chuva, como num súbito estalo de discernimento, entendeu o
porquê do pai não o olhar nos olhos, mas não ousou dizer as palavras.
Escureceu-se. As terras de menino eram a própria sombra, e para onde olhasse
via os fantasmas do pai, da mãe e da cachorra Flora.
Tentou viver, aprendeu a trabalhar e a sobreviver com as
ferramentas proporcionadas pela cidade grande. Ganhou dinheiro e sustento, mas
jamais deixou de ser menino. Com medo, tentara
fugir dos ciclos, mas eles estavam dentro de si. Entranhados, como os galhos da
Jurema. Nele, no pai, em cada membro torto e calado daquela família. Aonde quer
que fosse, seria seguido pela própria sombra, e nunca deixaria de esperar,
temendo e querendo vê-la, de canto de olho, no espelho, na esquina, na padaria
ou no supermercado. Por trás de um letreiro ou no rosto gentil de uma senhora.
Em qualquer lugar.
Jamais saberá se o que viveu fora
verdade ou mentira. Jamais saberá se um dia haverá resposta. Não importava. Não
existe mentira ou verdade quando um fantasma se debruça sobre o seu existir. E
o pesadelo, imenso, nunca terá fim. Pois o Demo está instaurado, inscrito, nos
olhos de dentro. Pois o Demo é a chaga que cada um carrega, na parte mais
entranhada do peito, entre um emaranhado de vinhas. Entre os arbustos da
Jurema. O Demo é o peso dos anos, o Demo é a querela do tempo. É o trauma que carregamos para
ser quem somos.
E o menino, sem saber viver, reza
pela mãe morta. E o menino, sem saber existir, reza pelo pai morto. E o menino
espera, sempre esperará, até o fim de seus dias na Terra, temendo e querendo,
pelo instante em que verá (ele sabe que verá), em si mesmo, ou nos olhos do
filho, os olhos do Demo. Os olhos mortos da mãe. Primeiro o vermelho brilhante.
Depois as órbitas vazias. Ocas. Sem nada. Cheias de tapurus.
CAL - Comissão de Autores Literários
Bruno Olsen
Cristina Ravela
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