A Dama Pálida
de Julius
Eu era só
um garoto quando recebi essa moeda, veja bem! Eu acreditei por muito tempo que
ela era falsa, acredite teria pagado algumas contas vendendo uma moeda de dez
Cruzados. Uma moeda de ouro puro que só o peso dela já vale pelo menos um mês
de aluguel.
Mas hoje
passados mais de vinte anos desde que eu a ganhei tenho certeza absoluta que
não irei vendê-la. Espero que caso eu morra ou decida passar para frente esse
pedaço de ouro quem o receba tome a mesma decisão. Sabe de uma coisa: Pouca
gente conhece os segredos das grutas e caminhos atlânticos de São Paulo. Eu
mesmo pouco caminhei por lá e a história que vou te contar trata de alguém que
teve um breve vislumbre dessas paisagens pouco convencionais para um Estado feito
de concreto e vidro, pelo menos para nós que somos da capital.
Assim como
você, eu tinha o sonho de ficar rico, ter o mundo aos meus pés e consumia
vorazmente todas essas estúpidas dicas para ficar milionário. Adorava os caras
do meu tempo: Rockfeller, os Matarazzo e toda essa corja rica. Nasci pobre e
acredite, era bem mais difícil ser pobre na década de 80. As coisas só mudaram
quando ganhei essa moeda! Quem a me deu foi um homem que encontrei, ele era um
datilógrafo aposentado e estava prestes a retornar para a sua antiga cidade
próxima ao litoral. Eu sempre o via ali, apoiado na janela, fumando um cachimbo
e baforando colunas de fumaça por trás de um grosso bigode já amarelado pelo
alcatrão. Se não fosse a mudança seria só mais uma figura anônima sem qualquer
importância. Naquele dia ele precisava de ajuda para carregar uma pesada mala
pelas escadas e prontamente o ajudei. O homem tinha um problema no braço
direito que o impedia de carregar peso e levar as sacolas de roupa era uma
tarefa impossível. Já era bem de noite e demoraria até a chegada do ônibus e
por isso conseguimos conversar bastante.
Ele
começou a contar a história quando percebeu que eu carregava um livro, como
esses que você lê, que pretensamente ensinam qualquer idiota a enriquecer
fácil. Rapidamente me repreendeu quando viu o título, respondi que desejava
ficar rico e conseguiria se fosse obediente ao gerente da fábrica e me
esforça-se para ser um bom advogado. Ele disse com desdém -Garoto, nunca confie
num milionário! E nem queria ser um lixo humano como um desses.
Ri da sua
posição e ele então irritado puxou do bolso a moeda de ouro, me entregou em
mãos e continuou -Confia em mim, vou te contar a minha história. Essa moeda é
para você acreditar no que estou te dizendo. Se tem dúvida, corre atrás e vai
ver que ela é de ouro puro.
Disse sem
perder a pose -Tá bem! Me convença- Seu
nome era Pedro, nascerá em um povoado que cresceu com o café logo no final do
XIX. Ali moravam barões que fizeram fortuna vendendo o pequeno fruto vermelho
torrado para a Europa e assim como eu queria ser um magnata da indústria e das
finanças ele na juventude desejava ser um grande barão do café.
…
A fim de
suprir o seu sonho, Pedro desde jovem embrenhou-se nos cargos de adulação a um
dos fazendeiros locais. Um homem rico, que despontava no começo da década de 30
como também um poderoso industrial. O datilógrafo nunca me revelou o seu nome e
por isso o chamarei de Leonardo.
O coronel
era um homem antiquado até para o seu tempo, ainda que muito atento aos
investimentos que lhe rendessem um bom lucro. Vestia-se com roupas finas, botas
de cano longo e um chapéu de abas largas tal qual os poderosos do século
anterior. Tinha postura altiva, voz firme e um sorriso carismático. A mão
estendida erguia-se para os miseráveis que lhe vendiam a produção e aceitavam
sua ajuda. Ficou um tanto recluso quando a primeira esposa, consumida pela
loucura, arremessou-se em um rio e afogou-se quando já seus asseclas ocupavam a
câmara da cidade. Foram dias de luto oficial e novenas rezadas pela cidade
inteira. Todos o amavam e todos o temiam. Tinha tudo que desejava e a todos
conquistava. Era isso que almejava o ex-datilógrafo que o via como um pai.
Pedro
também caiu nas graças de Leandro, que com ele formou uma sólida amizade. Como
muito bem alfabetizado apesar de só dezesseis, trabalhava com o livro caixa da
fazenda, sabia de cor os valores de cada saca e remessa, conseguia redigir
contratos e aprendia rápido todos os segredos do comércio. Sempre acompanhado
como escudeiro do senhor do café, já se aproximara dos altos círculos citadinos
e conhecera pessoalmente importadores dos lucrativos mercados da França,
Inglaterra e Estados Unidos. Tudo indicava que se um dia Pedro tivesse acesso a
um lote de terra relativamente grande, e não ao pequeno punhado que o deixava a
clientela do coronel, seria ele um grande empresário assim como era o seu
barão.
Um dia, já
próximo à virada para o para o seu décimo sétimo ano de vida, Leandro o
convocou para uma reunião particular. Era uma quinta feira, se lembrava bem
disso, no final de uma tarde ensolarada.
A noite
era quente e flutuava no ar as lucilias brilhando em tons de azul e verde entre
os ramos de café. Eram servidos pelas empregadas vestidas de branco xícaras do
líquido escuro, broa de milho e geleias de goiaba e marmelo. Não era incomum
que o jovem sentasse junto ao senhor no final de um dia de trabalho, era até
comum frente à sua eficiência e lealdade bem recompensadas por um homem que
considerava justo e nobre. Por vezes o coronel o perguntava -Ei garoto, tem
interesse por política?- confuso Pedro o perguntava -Um pouco senhor- o coronel
sorridente o advertia -Se continuar assim, será um ótimo vereador!- Mas aquele
final de tarde o barão não estava interessado em debater política. Outro
assunto parecia perturbá-lo, olhava sempre as anotações em uma caderneta e
batia a ponta do lápis na folha. Uma hora, olhando para a extensa plantação,
perguntou para o subordinado:
-Meu caro,
posso lhe fazer uma pergunta? Mas já adianto que é muito pessoal.
-Claro,
coronel! Não tenha problemas com isso -Respondeu condescendente.
-Bem!
Vamos lá então. Você já...Se deitou com alguma mulher?
O rosto de
Pedro ficou enrubescido com a pergunta e tentou responder da forma mais direta
que conseguia -É que…bem…não. Eu...Nunca tive a oportunidade. Tenho me
ocupado...demais com o trabalho e não consegui ainda…
-Não
precisa falar mais nada- Sorriu o cafeicultor -Veja bem, eu sei que essa é uma
pergunta deverás complicada para ser respondida por um homem. Alguns diriam que
é inclusive uma vergonha um homem não ter se deitado com mulher alguma, mas eu
não acredito. Tenho uma proposta para lhe fazer -Pedro olhou desconfiado para o
superior que logo percebeu a estranheza na postura do funcionário- Não, não é nada
disso que você está pensando- sorriu- É que preciso de alguém para me ajudar
numa coisa, não nessas imundices meu amigo, eu preciso de você assim. Puro.
-Como
assim?
-Bem! Já
ouviu falar da mulher da gruta?
-Não,
nunca ouvi falar. -Continuava olhando desconfiado para o seu mestre.
-Pois bem!
Dizem que no interior dessas matas -Disse apontando o charuto para uma serra
não muito distante dali que ainda hoje é coberta por um trecho da mata original
-Há uma mulher meio serpente meio dama que se alguém puro lhe deitar sangue aos
pés pode levar os tesouros que ela carrega.
Pedro
gargalhou em desdém da história contada pelo superior -Coronel! O senhor por
acaso enlouqueceu? Mulher cobra! Que ideia absurda- O barão o olhou sério e
continuou -Ora, acreditei que você não me levaria a sério. Mas tenho algo para
lhe provar -Então retirou do bolso uma pesada moeda de ouro e um rubi os
colocando sobre a mesa onde eram servidos os quitutes– Há muito tempo, fui
pobre, porém fui esforçado como você. Eu e minha finada esposa fomos até lá com
nossa amada filha, que Deus cuide bem delas, e carregamos todo ouro que
conseguimos. Foi assim que consegui comprar as minhas terras e ter dinheiro
para investir na tinturaria em São Paulo -Dizia com firmeza e seriedade típicas
da sua pessoa
Avaliando
compulsivamente a moeda de ouro, que dissiparam metade da descrença do
contador, Pedro o inqueriu -Mas Por que não voltou lá?
-Ela não
aparece sempre meu bom amigo. Ela só aparece quando a segunda lua nova de um
mês surge numa sexta-feira. Algo que acontece quase nunca. Nessa hora ela
aparece na gruta, brilhante como uma estrela e cercada de tesouros. Se você
deitar sangue sobre o ouro pode levá-lo para si. Só não podemos cometer erros
ou tomá-lo levianamente.
-Se não o
que acontece?
-A dama se
torna em cobra grande e devora aquele que erra. Por isso é importante que leve
um animal grande e gordo. Se formos lá enriqueceremos juntos! Ficaremos com
meio a meio de tudo que ela pode dar. Aceita?
Hipnotizado
pelo ouro e a joia oferecidos de bom grado pelo barão, Pedro o olhou aterrado e
acenou com a cabeça.
-Pois bem!
Na sexta-feira venha aqui e partiremos logo no final da tarde.
Chegado o
dia, partiram em um Ford T guiado por um motorista particular até os pés do
morro. Pedro abraçava firme o maior porco das suas terras, pesando quase 15
quilos, que logo foi amarrado nas suas costas enquanto o seu patrão levava
consigo um lampião e um facão para abrir a trilha.
-Vamos!
Temos muito o que seguir -Dizia animado o barão- Ela surge na hora grande!
Temos que chegar logo.
A
caminhada foi árdua. O terreno era íngreme e escorregadio. As temperaturas do
verão faziam os mosquitos e outros animais daninhos tornarem-se mais ativos e
devorarem os dois conforme adentravam na floresta. À noite, sem lua brilhando
no céu, era tão escura que Pedro mal conseguia ver além de dois palmos do seu
nariz e seguia confuso o brilho da chama do lampião do patrão que bruxuleava na
mata como um fogo-fátuo dançando entre os galhos.
Quando
pensava em desistir, Leandro gritava -Vamos! Ande e será mais rico do que será
numa vida inteira!
Sentido-se
incapaz de continuar, Pedro gritou para o barão a quase uma dezena de metros à
frente -Senhor! Eu não estou mais conseguindo respirar. Mal consigo dar um
passo. Preciso parar, pelo menos, meia hora para retomar o fôlego.
Leandro
revoltado desceu do barranco com o facão em mãos e o colocou no pescoço do
subordinado -Você já não tem mais opção, entendeu bem! Estamos só nós dois aqui
e já não tem para onde correr. Ou você vem comigo ou irei sozinho e você já não
vai mais a lugar algum, entendeu bem?
Pedro
engoliu seco. Pensou em puxar a faca amolada na cintura, pronta para o abate do
porco, mas tremeu diante a possibilidade de assassinar alguém e estava cansado
demais para uma reação mais rápida do que um movimento ágil do patrão com a
lâmina já em mãos. Coube só aceitar a ordem que seguiu-se com um imperativo
-Vá na
frente. Agora você dita a caminhada eu estarei logo atrás iluminando o caminho.
O contador
seguiu carregando o porco nas costas, quase sempre caindo de cansaço, mas
sempre quando pensava em parar o barão lhe encostava a ponta do facão nas
costelas e gritava -Anda! Temos que chegar logo.
Após horas
de trilha chegaram em uma grande boca aberta entre as rochas. Era próximo ao
pico da serra. Dos dentes calcários de estalactites no alto da caverna podia
ouvir o som das gotas escorrendo até um lago no interior da gruta -Chegamos!-
Disse animado Leandro para o jovem Pedro -Entre, temos que encontrá-la -Apontou
com o facão para o interior da caverna.
Descendo
na escuridão com o porco agitado pendurado nas costas, Pedro quase escorregou
pela superfície lisa e úmida do solo subterrâneo, mas por fim conseguiu chegar
ao fundo da caverna. Caiu de joelhos depois de deixar o leitão de lado,
arrastou-se até o lago formado pela infiltração que escorria entre as pedras e
tomou um gole d’água. Leandro desceu pouco depois iluminando as profundezas da
caverna que se afunilava até infinitos despenhadeiros no interior da escarpa. O
barão ergueu o lampião para o alto e sorriu -Agora é só esperar! Pedrinho,
seremos ricos – Disse o agitando pelo colarinho -Você será mais rico do que
jamais sonhou em ser.
As horas
se passaram. Pedro já duvidava da sanidade do mestre, pensava em uma forma de
fugir, mas como? Ele o atacaria caso decidisse escapar subindo a escadaria de
pedras e deixou claro que a lâmina o esperava ao menor sinal de dúvida. Pensou
em esfaqueá-lo pelas costas mas percebeu que o coronel o observava atentamente,
ainda que sorridente, a fim de simular a inexistência de qualquer animosidade
entre os dois.
-Estamos
aqui a horas coronel. Acho melhor a gente voltar, não me sinto muito seguro
aqui -Respondia preocupado.
-Espera
garoto. As coisas acontecem no seu tempo.
Passado
mais alguns minutos o barão correu para as margens quebrando o olhar atento no
subordinado e o chamou -Vem garoto! Está na hora! Venha.
Pedro
caminhou para próximo a margem e pode ouvir na distância o som sibilante de uma
serpente e o desenho de escamas no fundo da caverna. A luz refletida na água
dobrava-se com as ondulações subaquáticas no pequeno lago formado dentro da
gruta. Um vento forte soprou apagando a chama do lampião, mas de forma alguma a
caverna ficou mais escura. Um brilho pálido surgiu das águas e rastejou até
próximo às margens como se um anjo se estive prestes a se libertar.
Emergiu
dali uma figura etérea. De pele tão alva como a lua e cabelos e olhos
prateados. Vestia só joias de prata, diamantes e pérolas, pendurado em colares,
brincos e pulseiras que adornavam a beleza sublime surgida diante dos dois
homens. Pedro assustado pensou primeiro em correr até a olhar, caindo
perdidamente apaixonado pela visão divina que os agraciava com um sútil
contorno dos lábios. O barão caiu de joelhos e derramou lágrimas de felicidade
ao vê-la de braços abertos e com um sorriso emocionado aos seus dois
salvadores.
-Bravos os
cavaleiros que vem ao meu resgate -Disse a aparição lunar estendendo o braço
aos dois com voz doce e gentil -Vós de sangue puro que se entrega de corpo e
alma. Doarei aos seus os tesouros que junto a mim foram encantados -E com um
suave gesto um véu brilhante caiu sobre as águas revelando pilhas de ouro e
joia deixados aos delicados pés da musa pálida -Venha a mim aquele que ainda
não caiu no pecado de amar e entregue-se para que para sempre possamos viver em
eterna paixão.
Pedro
levou o porco aos pés da dama branca cercando-se das joias e moedas que tanto
ambicionava e ergueu o punhal. A dama de prata expressou tristeza e com uma
lágrima rolando como pérola sussurrou -Não!- Ele olhou no fundo das órbitas
vazias da beldade e viu sua expressão mudar quando ela mirou emocionada para
além dele. Curioso, olhou sobre o ombro. Pode só jogar o corpo para o lado
impedindo um golpe letal contra o pescoço. O sangue esguichou pelo tesouro e
respingou sobre a dama da caverna que regojizou em volúpia ao ter as gotas
rubras roçando a pele porcelana. Leandro havia talhado um golpe profundo no
braço e o olhava com ódio -Por quê? - perguntou assustado para o mestre.
Leandro riu e correu em sua direção com a lâmina no alto. A dama branca
assistia anestesiada pelo prazer do sangue, palpitando e suspirando emocionada
enquanto deliciava o sangue o esfregando pelo corpo.
O contador
enfiou a faca amolada no estômago do coronel e gotas de sangue ímpio escorreram
pelas mãos do barão. A pálida caiu de joelhos puxando os cabelos, o rosto
contorceu-se em uma carranca e ela rastejou pelo lago com brados de ódio. Tudo
escureceu-se quando a luz prateada afundou nas águas do lago. Pedro teve tempo
de pegar um punhado de moedas tocadas pelo próprio sangue e correu. Leandro com
o facão erguido e pressionando a ferida o seguia. Atrás dele pode ouvir um sibilar de serpente
e quando se virou para trás curioso a única coisa que pode ver foi Leandro
sendo erguido por uma coluna de sombras e engalfinhado por um braço de mais
completa escuridão. Dois olhos flamejantes o seguiram rastejando pela mata
enquanto ele rolava morro abaixo e por fim desmaiou.
Quando
acordou fugiu por um dia inteiro até chegar em um povoado próximo. Pedro usou o
punhado de moedas para tratar do ferimento infeccionado, comprar uma passagem
para a capital e desapareceu por mais de cinquenta anos.
CAL - Comissão de Autores Literários
Bruno Olsen
Cristina Ravela
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